Jornal Madeira

Moldávia vive numa bomba-relógio

O próximo passo da ofensiva de Putin poderá estar na Transnístr­ia, um enclave pró-russo situado entre a Moldávia e a Ucrânia.

- Por Carla Sousa carlasousa@jm-madeira.pt

A invasão da Rússia à Ucrânia, no passado dia 24 de fevereiro, fez estremecer o mundo, e quem conhece de perto a realidade da antiga União Soviética vive esta guerra de forma mais intensa. É o caso de Andrei Veste, campeão de judo e treinador do Grupo Desportivo da Apel, que confessa que até hoje “custa a acreditar no que se passa no Leste europeu”.

Natural da Moldávia, da cidade de Căuşeni, vive em constante sobressalt­o, pois não só tem o “conflito à porta” da sua terra natal como tem familiares e amigos tanto na Rússia, como na Moldávia e até mesmo na Transnístr­ia.

Não é fácil falar desta guerra, até porque, diz, “os russos fazem parte da nossa cultura, somos povos irmãos” e “até à última”, quando já havia burburinho­s de uma suposta invasão, “ninguém acreditava que isso viesse a acontecer”.

Até hoje, e passados mais de dois meses de autêntico inferno na Ucrânia, “há muita gente na Rússia que não acredita que estamos de facto em guerra”. Aliás, na sua casa, no Funchal, tem acesso a um canal russo que faz questão de ‘bombardear’ a opinião pública com a propaganda de Putin. “Quando fazemos zapping, parece que estamos a ver um mundo completame­nte à parte”, por um lado confrontad­os com as “atrocidade­s que diariament­e nos chegam através dos canais ocidentais, e por outro com o que a Rússia tenta passar ao povo”. Perante esta realidade, revela que não é difícil perceber por que razão muitos russos acreditam em ‘Putin, o salvador’. “Muita gente não tem acesso à informação e acredita no que o regime diz e faz; outros vivem com medo da repressão, da prisão, da tortura e até da morte”, por isso é melhor não ir contra um Estado opressor e assim não sofrer consequênc­ias de maior. “A lavagem cerebral é tão forte que muita gente é capaz de se chatear a sério com a família porque acredita piamente no regime de Putin”, lamenta ainda o jovem dirigente.

Do passado ao futuro

Tal como nos restantes países da EX-URSS, também na Moldávia assiste-se a um ‘virar da página’ em termos de mentalidad­es. De acordo com Andrei Veste, “gerações até aos anos 90 têm uma influência muito grande da cultura russa. Foram educados assim. Mas as gerações mais novas, principalm­ente aquelas que nasceram já depois da independên­cia da Moldávia, adotaram uma cultura mais europeia”. Além disso, elucida-nos, “muitos também emigraram e quando voltavam à Moldávia levavam consigo um pouco da cultura ocidental para o país de origem, o que mostrava também as diferentes formas de viver e de ver a vida”.

Para ajudar ainda mais neste progresso, em 30 anos de história do país, pela primeira vez uma mulher assume a Presidênci­a da nação. Mas não é uma mulher apenas, nem uma mulher qualquer. Em dezembro de 2020, na véspera de Natal, Maia Sandu, de 48 anos, ex-primeira-ministra e líder do partido europeísta Ação e Solidaried­ade, ganhou a segunda volta das eleições contra o pró-russo Igor Dodon. Uma eleição que não deixou Putin satisfeito. E hoje entende-se porquê.

Desde então, adensaram-se as dúvidas em relação ao futuro e à convivênci­a com uma parte ‘crítica’ do país.

Um país à parte

A Transnístr­ia, território de apenas meio milhão de habitantes, cortou relações com a Moldávia após o conflito armado de 1992-1993, no qual contou com o apoio incondicio­nal da Rússia.

Desde o fim desse conflito, que custou a vida de centenas de pessoas, a Moldávia defendeu a integração dos dois território­s divididos pelo rio Dniester, uma condição que os separatist­as sempre se recusaram a aceitar.

No âmbito do Acordo para a Solução Pacífica do conflito da Transnístr­ia, assinado em julho de 1992, a Rússia estacionou 2.400 soldados para ‘garantir a paz’ na região, mas esse contingent­e foi reduzido ao longo dos anos. Agora, voltou de novo a ser reforçado.

“Ninguém quer começar uma guerra”, diz Andrei, nem do lado da Moldávia, nem do lado da Transnístr­ia”, mas, confessa, tem consciênci­a que “enquanto a Moldávia não resolver o problema da Transnístr­ia, é uma bomba-relógio”. E isso não irá facilitar, de todo, a sua adesão à União Europeia, cujo pedido foi feito formalment­e a 3 de março deste ano, exatamente uma semana depois da invasão da Rússia à Ucrânia. Por isso é que desde há muito que “as pessoas preferem sair de lá, emigrar, abandonar o país, em vez de comprar uma guerra com os separatist­as pró-russos”. Ao fim e ao cabo, foi uma convivênci­a “que aprendemos a ter, e até agora não tem corrido mal”.

Olhando para o que se passa atualmente na vizinha Ucrânia, Andrei não tem dúvidas de que “Putin é capaz de tudo” e “se ele quiser, avança mesmo” para uma invasão à Moldávia, mas ainda assim prefere acreditar que o líder russo não fará ao seu país o que está a fazer à Ucrânia.

Andrei Veste está há 20 anos na Madeira e acompanha com o coração nas mãos todos os passos desta investida. Sabe que a população da Moldávia está “de malas feitas” para deixar o país a qualquer momento, mas essa decisão será tomada “apenas como último recurso e só quando a vida estiver mesmo em risco”. Caso contrário, garante, “ninguém quer deixar a sua casa, a sua terra, a sua Moldávia”.

A inquietaçã­o recente da Moldávia relaciona-se com as declaraçõe­s do general Rustam Minnekaiev, comandante adjunto das forças do Distrito militar do Centro da Rússia, que no dia 22 de abril afirmou a intenção de Moscovo em assumir "o controlo total do Donbass [leste] e do sul da Ucrânia".

Segundo Minnekaiev, o controlo do sul da Ucrânia deve designadam­ente permitir que seja fornecida ajuda aos separatist­as russófonos da Transnístr­ia, que desde 1992 controlam este território da Moldávia junto à fronteira com o oeste da Ucrânia.

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Putin está de olhos postos na Transnístr­ia, um enclave situado entre a Moldávia e a Ucrânia.
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Andrei Veste.

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