Morto ou vivo
Fui renovar o passaporte. Estava pouca gente na Loja do Cidadão e aquilo foi muito rápido, sempre a abrir. Ponha-se de pé para tirar a fotografia, disse o funcionário. Assim fiz e, embora já soubesse a resposta, perguntei: Sem óculos, não? Ele abanou a cabeça que sim e disse que era por causa dos reflexos.
A máquina andou para cima e para baixo.
– Olhe para a câmara – ordenou. Eu olhei e, de repente, a minha cara apareceu a cores no monitor – lindo.
– Fica assim ou tiramos outra? – Perguntou.
Olhei de relance, sem interesse, e respondi:
– Fica assim.
Bem, estou tal e qual um pistoleiro do faroeste fotografado depois de abatido pelo xerife ou por outro fora-da-lei, como o Jesse James, por exemplo, ou como um cangaceiro do nordeste do Brasil, igualmente baleado, algures no Sertão, no final do século XIX, só que essa gente tinha vida curta e nas fotografias – vivo ou morto – aparece sempre de barba negra, ao passo que a minha está grisalha, quase branca. Pareço um bandido. Se fosse com óculos, ainda ficava com um arzinho de intelectual, vá lá, mas assim – caraças – pareço mesmo um bandido. Ainda por cima, um bandido velho.
– Confira os dados – disse o funcionário.
Fiz uma leitura rápida e concluí que estava tudo certo.
– Este é o seu passaporte – declarou.
A fotografia aparece também no recibo do pagamento, que serve para levantar o documento quando estiver pronto, pelo que daí a bocado mostrei-a à Pat, quando fomos tomar café.
– Estás horrível! – Disse ela, sem sequer pensar.
E repetiu:
– Meu Deus, estás horrível!
Eu cá defendi-me:
– É por isso que ninguém se mete comigo.
Ela criticou a t-shirt preta esgargalada, os olhos semicerrados, o rosto inchado e ao mesmo tempo encovado, a barba hirsuta que mal cabe no quadrado, o cabelo repartido ao meio e puxado para trás sem jeito, mal-amanhado; mas o que é isto, dizia ela, mas o que vem a ser isto, meu Deus, corta-me esse cabelo, corta-me essa barba; e eu a insistir que não ligo nada para isso, era só o que faltava, a explicar que ter mau aspeto até sai em conta, por exemplo quando estamos em lugares perigosos, em ruas escusas, ou então quando atravessamos horas noturnas em cidades no fim do mundo; acredita em mim, dizia eu, vale sempre a pena ter ar de mau, uma pessoa fica mais sossegada, ninguém chateia.
Não foi a troco da minha aparência que a Pat aceitou casar-se comigo, faz agora um ano.
– Estás péssimo! – Disse ela.
Por outro lado – isto já sou eu a dizer-vos em surdina, aqui entre nós que ninguém nos ouve – não foi a troco da minha aparência que a Pat aceitou casar-se comigo, faz agora um ano, o melhor ano da minha vida. Aposto barba e cabelo que não foi por isso. Tenho a certeza de que ela se encantou mais com a forma insinuante como eu dispo a alma, do que com o modo tosco como eu visto o corpo, coisa sem graça e sempre igual, como na Banda Desenhada – camisola, calças de ganga rotas e botas – roupa de vadio.
Sim, meus amigos, o que ela viu em mim não aparece nas fotografias. Não digo que seja melhor ou pior, mas garanto-vos que não aparece nas fotografias. Aliás, essa história de que a fotografia apanha e aprisiona o ser, sobretudo quando é tirada de repente ou com muita arte e mestria, tem mais de tanga do que de substância. Regra geral, uma pessoa não tem nada a ver com a sua imagem. É sempre outra coisa. Eu sei disso porque conheço bem o universo dentro de mim e – digo-vos – o território do mal é muito mais vasto e tenebroso do que revela a minha cara impressa no passaporte.
Vivo ou morto, serei sempre outro.
Duarte Caires escreve à sexta-feira, todas as semanas