Jornal Madeira

Morto ou vivo

- DO FIM AO INFINITO Duarte Caires duartevelo­sacaires@gmail.com

Fui renovar o passaporte. Estava pouca gente na Loja do Cidadão e aquilo foi muito rápido, sempre a abrir. Ponha-se de pé para tirar a fotografia, disse o funcionári­o. Assim fiz e, embora já soubesse a resposta, perguntei: Sem óculos, não? Ele abanou a cabeça que sim e disse que era por causa dos reflexos.

A máquina andou para cima e para baixo.

– Olhe para a câmara – ordenou. Eu olhei e, de repente, a minha cara apareceu a cores no monitor – lindo.

– Fica assim ou tiramos outra? – Perguntou.

Olhei de relance, sem interesse, e respondi:

– Fica assim.

Bem, estou tal e qual um pistoleiro do faroeste fotografad­o depois de abatido pelo xerife ou por outro fora-da-lei, como o Jesse James, por exemplo, ou como um cangaceiro do nordeste do Brasil, igualmente baleado, algures no Sertão, no final do século XIX, só que essa gente tinha vida curta e nas fotografia­s – vivo ou morto – aparece sempre de barba negra, ao passo que a minha está grisalha, quase branca. Pareço um bandido. Se fosse com óculos, ainda ficava com um arzinho de intelectua­l, vá lá, mas assim – caraças – pareço mesmo um bandido. Ainda por cima, um bandido velho.

– Confira os dados – disse o funcionári­o.

Fiz uma leitura rápida e concluí que estava tudo certo.

– Este é o seu passaporte – declarou.

A fotografia aparece também no recibo do pagamento, que serve para levantar o documento quando estiver pronto, pelo que daí a bocado mostrei-a à Pat, quando fomos tomar café.

– Estás horrível! – Disse ela, sem sequer pensar.

E repetiu:

– Meu Deus, estás horrível!

Eu cá defendi-me:

– É por isso que ninguém se mete comigo.

Ela criticou a t-shirt preta esgargalad­a, os olhos semicerrad­os, o rosto inchado e ao mesmo tempo encovado, a barba hirsuta que mal cabe no quadrado, o cabelo repartido ao meio e puxado para trás sem jeito, mal-amanhado; mas o que é isto, dizia ela, mas o que vem a ser isto, meu Deus, corta-me esse cabelo, corta-me essa barba; e eu a insistir que não ligo nada para isso, era só o que faltava, a explicar que ter mau aspeto até sai em conta, por exemplo quando estamos em lugares perigosos, em ruas escusas, ou então quando atravessam­os horas noturnas em cidades no fim do mundo; acredita em mim, dizia eu, vale sempre a pena ter ar de mau, uma pessoa fica mais sossegada, ninguém chateia.

Não foi a troco da minha aparência que a Pat aceitou casar-se comigo, faz agora um ano.

– Estás péssimo! – Disse ela.

Por outro lado – isto já sou eu a dizer-vos em surdina, aqui entre nós que ninguém nos ouve – não foi a troco da minha aparência que a Pat aceitou casar-se comigo, faz agora um ano, o melhor ano da minha vida. Aposto barba e cabelo que não foi por isso. Tenho a certeza de que ela se encantou mais com a forma insinuante como eu dispo a alma, do que com o modo tosco como eu visto o corpo, coisa sem graça e sempre igual, como na Banda Desenhada – camisola, calças de ganga rotas e botas – roupa de vadio.

Sim, meus amigos, o que ela viu em mim não aparece nas fotografia­s. Não digo que seja melhor ou pior, mas garanto-vos que não aparece nas fotografia­s. Aliás, essa história de que a fotografia apanha e aprisiona o ser, sobretudo quando é tirada de repente ou com muita arte e mestria, tem mais de tanga do que de substância. Regra geral, uma pessoa não tem nada a ver com a sua imagem. É sempre outra coisa. Eu sei disso porque conheço bem o universo dentro de mim e – digo-vos – o território do mal é muito mais vasto e tenebroso do que revela a minha cara impressa no passaporte.

Vivo ou morto, serei sempre outro.

Duarte Caires escreve à sexta-feira, todas as semanas

 ?? ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal