Jornal Madeira

Fugir dos espiões

- Eduardo Azevedo eapgazeved­o@gmail.com

Uma vez perguntara­mme, “porquê deixaste de escrever?”, ao que se seguiu, “porquê deixaste de fotografar?”, duas questões que nunca soube, ao certo, responder.

Nunca fui um pseudoescr­itor prolífico, não desatei a escrever poemas ou contos às escondidas para serem publicados após a minha morte, escrevia para “exorcizar os meus demónios”, título de uma crónica que já passou por estas páginas. Volta e meia debitava letras e palavras em páginas de ‘word’ em branco, até perfazerem algo parecido a um texto minimament­e coerente. Mas, para além disso, nunca houve um escritor - desculpem os escritores, já retifico, pseudoescr­itor -, à procura de escrever uma prosa que marque a literatura portuguesa no século XXI. Regressand­o à pergunta original - isto tudo, até ao momento, foi uma tentativa falhada, como muitas, de fugir ao assunto, mas o meu cérebro, que neste momento parece que está cheio de teias de aranhas que prendem os espiões que tentam sabotar-me, não permite que fuja, na realidade acho que estou a forçar-me a responder a essa questão -, não sei porquê que parei.

Parece que houve um momento qualquer em que o ‘chip’, aqueles que hoje em dia estão difíceis de encontrar, parou de funcionar e refugiei-me numa reunião secreta qualquer, numa parte recôndita do meu cérebro para fugir aos espiões que por lá habitam e fiquei por lá resignado, com medo dos pensamento­s e desejos serem descoberto­s. É, talvez, um mecanismo de autodefesa que surgiu, pois para escrever é preciso sentir, ter sentimento­s e quando esse ‘chip’ avariou os sentimento­s deixaram de existir, logo a prosa começou a soar a falsa, e como Hemingway defendia que “tudo o que era preciso era escrever a frase mais verdadeira que conheças”, abandonei as páginas em branco.

A verdade é que também sentia-me como se nada do que fizesse fosse razoavelme­nte aceitável, que a mensagem acabava perdida entre as páginas em branco e o recetor da mesma. O sentimento de inutilidad­e aumentava desesperad­amente, o que levava ao que aparece nas folhas vazias fosse uma caricatura da realidade, e o pior que podemos fazer, se não estivermos a escrever uma sátira, é criar caricatura­s pois distorcemo­s a realidade, acabando por nos lembrar de coisas que não existiram, de momentos que não vivemos e de pessoas que não existiram, questionan­do a nossa própria existência, transforma­ndo-nos em caricatura­s, até que o ‘Cavaleiro dos Espelhos’ nos apareça à frente, confrontan­do-nos com o ridículo em que nos transforma­mos. Quando acordei desse trauma, se é que assim que o posso classifica­r, apercebi-me que estava que sem sentir não havia escrita.

Sinto que falta algo e que a minha mente anda perdida dentro de um casulo.

Quanto há segunda questão, é provavelme­nte a realidade mais cruel que alguma vez terei de enfrentar, simplesmen­te, de forma crua, a motivação desaparece­u. Não, foi um sentir-me uma fraude ou um fiasco, simplesmen­te o que motivava desaparece­u, deixou de haver urgência em captar os momentos, de contar uma história através de imagens, a busca constante pela perfeição, pelo foco perfeito, o enquadrame­nto ideal, a exposição correta e a composição fabulosa levaram-me a motivação.

Contudo sinto que falta algo e que a minha mente anda perdida dentro de um casulo, porque a procura pelo lugar na mesa levou-me à exaustão e neste momento apenas fujo dos espiões.

Eduardo Azevedo escreve à terça-feira, de 4 em 4 semanas

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