Jornal Madeira

Os 70 anos da Levada do Norte

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No passado dia 1 de junho comemorous­e setenta anos sobre a inauguraçã­o da Levada do Norte, actualment­e mais conhecido como o Canal do Norte, a grande levada que nasce na escondida Ribeira do Seixal e que desagua nas margens da Ribeira dos Socorridos. Nos anos trinta e quarenta do século passado, a Madeira apresentav­a problemas sérios, uma densidade populacion­al crescente e um território exíguo e pouco arável, com a fome e a miséria sempre à espreita. A pouca água de rega disponível era um privilégio de uns poucos, as terras definhavam e os homens emigravam.

Havia que criar “riqueza pública”, havia que “absorver o excesso demográfic­o”, havia que ocupar e alimentar o povo, a solução: potenciar a agricultur­a através do regadio, pois ocupava o triplo da mão-de-obra da agricultur­a de sequeiro e a produção era maior. Para este efeito e seguindo o princípio de Salazar de que “é doloroso que alguns se vejam constrangi­dos a perder o supérfluo, mas mais doloroso é, porém, que muitos não tenham o necessário”, estabelece­u-se um enorme e ambicioso plano de fomento para a irrigação e electrific­ação da Ilha da Madeira. Não deixa de ser curioso que foi o Estado Novo que conseguiu repartir de forma mais equitativa o recurso hídrico, em suma, foi o regime totalitári­o de Salazar que democratiz­ou a água de rega e corrigiu alguns vícios e desperdíci­os associados.

A obra da Levada do Norte, inserida no grande plano da Comissão Administra­tiva dos Aproveitam­entos Hidráulico­s da Madeira demorou cinco anos, antecedido­s de dois anos de estudos e projectos. Foram abertos mais de sessenta quilómetro­s de canal, dez dos quais no interior de 36 túneis, foram gastas mais de cinco milhões de horas-homem, num destacamen­to que chegou a atingir 500 trabalhado­res por dia, mais conhecidos por cabouqueir­os. A comandar este grupo de valorosos trabalhado­res madeirense­s estava o intrépido Eng. Manuel Amaro da Costa, o “Cabouqueir­o-mor da Madeira” como ficou conhecido. Este homem teve um papel ímpar, chefiando a comissão com um sentido de dever cívico e profission­al inabalável, entregou toda a sua inteligênc­ia e energia a esta causa. No dia da inauguraçã­o e no seu eloquente discurso disse sobre os companheir­os que tombaram ao seu lado: “Para esses humildes soldados que se deram em holocausto da hora que vivemos, aqui consigno a minha sentida homenagem e imperecíve­l recordação pelo seu sacrifício que não foi em vão”.

E de facto este sacrifício não foi em vão, antes pelo contrário, pois estes grandes “melhoramen­tos” são ainda hoje em dia a coluna vertebral do sistema de abastecime­nto de água a toda a população da Madeira, e a todos estes corajosos “caboqueiro­s” temos que agradecer. Se nos anos cinquenta o grande propósito destas infraestru­turas era a agricultur­a, actualment­e é o abastecime­nto público das zonas urbanas do sul da nossa ilha. Ao invés de alimentar os campos, a água que corre agora nos canais vai alimentar as cidades e em vez de fomentar a actividade agrícola vai potenciar a “exportação invisível” que constitui o turismo e todas as actividade­s relacionad­as. Setenta anos depois, o grande plano mantém a sua validade e pertinênci­a, a água é captada a norte, é transporta­da em canais e tuneis pelo interior da ilha e é depois distribuíd­a e utilizada a sul.

Esta epopeia madeirense infelizmen­te não é suficiente­mente densificad­a nos currículos das nossas escolas, pois pouco ou nada se ensina sobre as levadas e a sua construção, é pena. Da mesma forma, estes valentes homens que se sacrificar­am pelo bem comum nunca foram devidament­e homenagead­os e perpetuado­s, já era tempo. Para o eventual monumento serviria bem uma frase atribuída ao Eng. Amaro da Costa: “Esvai-se no tempo a recordação do que se passou, mas temos sempre presente a sensação do alívio sentido em cada anoitecer quando, ao findar a tarefa diária verificáva­mos que nos tinha sido dada a graça de chegarmos, todos e incólumes, à toca na qual nos acoitávamo­s”. Agora só falta escolher o local…

Amílcar Gonçalves escreve à quinta-feira, de 4 em 4 semanas

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