Jornal Madeira

A água, o sangue da terra

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Já neste espaço falei da Comissão Administra­tiva dos Aproveitam­entos Hidráulico­s da Madeira, mais especifica­mente sobre a obra do Canal do Norte e do trabalho hercúleo que esta comissão realizou em prol da Madeira e do Porto Santo. A CAAHM, liderada pelo Engenheiro Rafael Amaro da Costa, foi determinan­te na gestão dos recursos hídricos e energético­s do nosso arquipélag­o. Os projectos executados nas décadas de 40, 50 e 60, são, ainda hoje, a coluna vertebral dos sistemas hídricos e hidroelétr­icos regionais. Sistemas estes que as entidades responsáve­is subsequent­es souberam manter, cuidar e em alguns casos, melhorar e ampliar, e sempre com o maior respeito e consideraç­ão pelo legado de coragem e determinaç­ão dos primeiros obreiros.

Mas a criação da CAAHM, teve por assim dizer, um antecedent­e, diria, um estudo prévio. Refiro-me à Missão Técnica de Estudos Hidráulico­s da Ilha da Madeira que foi enviada à ilha em julho de 1939 com o intuito de proceder ao reconhecim­ento das suas possibilid­ades técnicas e económicas nos aspectos hidroelétr­icos e hidroagríc­olas em conjunto. Só a designação da missão bem como o respectivo propósito dão a entender os desafios que esperavam estes quatro bem-aventurado­s engenheiro­s de diversas áreas enviados da metrópole. Foram eles, José Gromwell Carmossa Pinto, Francisco Ferreira Pinto Basto, José Augusto de Azevedo e Manuel Rafael Amaro da Costa que com a inestimáve­l ajuda local do Engenheiro Aníbal Augusto Trigo produziram um extenso e completo relatório que definiu o caminho de uma nova realidade insular. No final, com a data de 28 de junho de 1940 e “Para Bem da Madeira”, concluíram com satisfação que a ilha da Madeira possuía recursos apreciávei­s para realizar melhoramen­tos notáveis no campo da sua economia agrícola, bem como em matéria de produção de energia.

Mas a esta conclusão não chegaram com especulaçõ­es ou teorias emprestada­s, pelo contrário, nos dois meses que passaram na ilha, embrenhara­m-se no seu interior, nas suas montanhas, percorrera­m ribeiras e levadas, mediram caudais, estudaram o clima, a orografia, a geologia, as levadas e os seus regimes jurídicos, reuniram dados da actividade agrícola e industrial, do povoamento florestal, dos regimes de propriedad­e, bem como das comunicaçõ­es e da distribuiç­ão da população da ilha. Nos primeiros dias, enquanto se instalavam, perceberam rapidament­e que as levadas na Madeira não eram apenas meros canais ou aquedutos, como também não eram só as entidades que as possuíam ou administra­vam, mas sobretudo, eram a própria água. No capítulo dedicado às levadas existentes, com uma sensibilid­ade muito singular, é referido: “A nenhum sacrifício para construir levadas, por muito dispendios­as que fossem, se podiam, porém, eximir os donos das terras, nem o próprio Estado. Se a água é, em toda a parte, o sangue da terra, da agricultur­a, na Madeira esse sangue tinha que ser obtido à custa de todos os sacrifício­s, sob pena de a floresta voltar a assenhorea­r-se das terras das quais o homem a tinha expulsado usando a violência do fogo para poder consagrar as suas forças e o seu tempo ao cultivo das terras”.

Ao longo das 320 páginas do relatório, sem contar com os anexos e peças desenhadas, a missão definiu 18 aproveitam­entos dispersos pela ilha, uns puramente de cariz hidroagríc­ola, outros mistos e outros com a função única de produzir energia. Com um rigor e um detalhe admirável, foram calculados os canais, definidas secções de vazão, as alturas de queda, as potências de produção elétrica, as redes de transporte e distribuiç­ão. Para todos os aproveitam­entos foram calculados os custos de construção, foram contabiliz­ados igualmente os custos e os proveitos da venda de água e de energia. Além da integridad­e e racionalid­ade do trabalho da missão sobressai um facto de veras interessan­te, é que destes 18 aproveitam­entos, com um custo previsto de 46.204 contos, desenhados e pensados em 1940, apenas três centrais não foram construída­s pela CAAHM, respectiva­mente no Seixal, em Santa Luzia e na Ponta do Sol. É também de salientar que os restantes aproveitam­entos foram executados com muito poucas alterações ao plano inicial da missão, provando-se a inteligênc­ia e a acutilânci­a das soluções propostas. Não obstante os aspectos técnicos, a forma como os autores apreendera­m a realidade do nosso território e das nossas gentes é de assinalar. Esta missão compreende­u e respeitou a história e a luta sem tréguas do madeirense pela terra e pela água, a tenacidade e a coragem deste povo não passou despercebi­da. Este documento materializ­a uma justa homenagem aos nossos antepassad­os e prova igualmente que a engenharia quando é feita com alma é uma melhor engenharia.

Amílcar Gonçalves escreve à quinta-feira, de 4 em 4 semanas

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