Jornal Madeira

Perguntas em cadeia

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Era uma manhã fresca de primavera, estava sozinha em casa e apeteceu-me fazer um bolo. Na cozinha, após consultar o caderno das receitas, meto mãos à obra. Para me sentir acompanhad­a, ligo a televisão e, de imediato, sou atraída pela reportagem a ser transmitid­a. Um jornalista (inglês ou americano – não cheguei a saber) acompanhav­a a rotina de uma família russa, enquanto esta se preparava para participar na Marcha do Regimento Imortal — um evento promovido pelo poder político para homenagear os combatente­s que pereceram a defender as causas ou o território russos.

A família é constituíd­a por três elementos: o casal e um rapazito que terá cerca de quatro anos. A mãe acabou de pôr a comida na mesa e chama para a refeição. Como o filho demore, ela instiga-o: “Despacha-te. Tens de comer para teres força e seres um bom soldado”, acrescenta, quando o miúdo entra na divisão com um bivaque na cabeça e uma arma plástica na mão. O jornalista questiona se não a incomoda a ideia de o filho vir, um dia, a ser enviado para a frente de batalha, e ela responde: “Não os criamos só para serem bonitos. Criamo-los para que sirvam a pátria”. Fico chocada e penso o quão terrível seria para mim ter um filho a combater.

Já pesei os ingredient­es, preparei a forma, separei as gemas das claras e, para batê-las em castelo, ligo a batedeira cujo zumbido abafa o som do televisor. As palavras da mãe russa continuam a ecoar-me na mente e as perguntas vão-me surgindo em cadeia: como se consegue levar um povo a desejar uma guerra? Seríamos nós capazes de aceitar o sacrifício dos nossos filhos por uma questão de patriotism­o? E, no entanto, há cerca de meio século, os jovens portuguese­s também eram convocados para defender a nação. Até que ponto ficariam as mães orgulhosas desse serviço aos interesses pátrios?

Quando volto a dar atenção ao ecrã, já decorre a marcha na capital russa, com largos milhares de cidadãos a desfilar, exibindo a foto de um, ou vários, antepassad­os seus.

Perdido o interesse, procuro um dos canais emissores de música. Opto pelo da Rádio Lusitânia, dedicado, em exclusivo, à música portuguesa e fico a cantarolar com o Jorge Palma, O Bairro do Amor, enquanto envolvo as claras na massa e verto tudo na forma. Cheira divinament­e a raspa de limão, maçã e canela. Fecho o forno, verifico a temperatur­a e só me resta esperar. Como não me posso afastar da cozinha — se o faço, sei que corro o risco de só me voltar a lembrar do bolo quando o fedor a queimado se impuser por toda a casa —, decido ir buscar um livro e sentar-me a ler, ali perto.

Aproximo-me do televisor para o desligar, mas a letra do fado que está a tocar trava-me o gesto, pois, nem de propósito, parece vir responder-me. Reconheço-o; era habitual ouvi-lo, quando menina, mas já o esquecera completame­nte. Diz o refrão assim: Rastejamos como sapos/ com as fardas em farrapos/ pela terra de ninguém/ mas cá dentro o pensamento/ corre mais alto que o vento/ voando para nossa mãe./ E se eu morrer na batalha/ só quero ter por mortalha/ a bandeira nacional/ e na campa de soldado/ só quero um nome gravado/ o nome de Portugal.*

E, nas tardes de música pedida, de olhos postos nos pontos do filitro ou da tela, as mães trauteavam com a telefonia, talvez orgulhosas ou talvez sufocando a aflição, para a qual, desta e de outras formas mais ou menos subtis, eram levadas a crer não haver alternativ­a.

Carmo Marques escreve à sexta-feira, de 4 em 4 semanas

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