Jornal Madeira

A palavra como vadio ensebado

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Naquele dia, naquela hora, naquele preciso instante, eu estava a pensar que a luz do meu espírito nunca, em momento algum, excederá o tamanho da sombra do meu corpo. Mesmo que viva cem anos debaixo do sol e este se incline para lá do razoável – pensava eu naquela ocasião – uma jamais será maior do que a outra. Em mim, luz e sombra serão sempre iguais.

Nisto, um tipo surgiu do nada e disse-me assim:

– Sei que sou ensebado e pareço mal. A sua voz fez o meu pensamento estoirar como balão de festa picado por agulha.

Bum.

Mas sem som.

– Hã?!

Ele repetiu:

– Sei que sou ensebado e pareço mal. E, ao dizê-lo, chorou.

Porém, não desistiu.

Fungou e disse:

– Estou só a pedir umas moedinhas para comprar pão e uma lata de conserva.

Fez uma pequena pausa e, redobrando a tristeza e o fingimento, acrescento­u: – Antes que o supermerca­do feche… É claro que, àquela hora, o supermerca­do já tinha fechado. Era demasiado tarde, já de madrugada. Ele fedia, tresandava a álcool e a porcaria, mas eu dei-lhe umas moedas na mesma – todas as que tinha no bolso pequenino das calças de ganga – e segui viagem pela rua abaixo.

Ia agora a pensar que, afinal, nada é igual entre si, embora todas as coisas de todas as épocas contenham parecenças absolutame­nte incríveis. Às vezes até parece que o passado, o presente e o futuro são hoje, aqui e agora e todos os acontecime­ntos para trás e para a frente parecem feitos à imagem e semelhança uns dos outros.

No entanto, o homem move-se e o tempo passa.

Hoje luz. Amanhã sombra.

Isto, meus amigos, era eu há trinta anos, vagueando sozinho na cidade e na noite, à procura do sentido da vida, conforme documentam os meus cadernos de notas. Sabem, eu agora viajo muito nos meus cadernos de notas antigos.

Nos tempos que correm, a rotina deixa-me no mesmo sítio praticamen­te o ano inteiro, como um animal em hibernação. Fico assim meio tonto, babado, à espera que chegue o mês das férias e o respetivo subsídio para então sair daqui. Até lá, não tenho nada que fazer além das obrigações profission­ais e outras coisas que tais e, como tal, também não tenho nada para contar, nada que escrever.

Por isso, ponho-me a folhear os cadernos de notas antigos – os poucos que escaparam às fogueiras da minha loucura – e vou por ali adentro ao reencontro de mim, a redescobri­r com espanto o tanto que do meu ser já esqueci, a luz e a sombra consumadas, o que antes fui, o que disse, o que senti, tudo o que guardei e o muito que me morreu.

A meu ver – escrevi eu naquele tempo – as coisas são simples: Se aquele que escreve gosta de flores, o seu dever é fazer de cada palavra uma flor. Por outro lado, se aqueles que o leem gostam de sexo, o seu dever é fazer de cada palavra um ato sexual como se fosse uma flor. Cada palavra deve ser a imagem da nossa vontade e também da vontade dos outros, dando a cada um aquilo que ele próprio é: fome aos pobres, dinheiro aos ricos, por exemplo.

Bem… eu podia deixar-me destas tretas e dedicar-me à análise da atualidade, podia quebrar o elo encantatór­io que me liga ao mundo e render-me ao século. Sim, meus amigos, eu podia fazer isso com muita frieza e pragmatism­o, como um pivô na hora do telejornal, mas a verdade é que prefiro mil vezes a exposição dos sonhos e a apresentaç­ão da alma, mesmo que seja ridículo e a minha palavra soe a pedincha de vadio ensebado no meio da noite.

– Desculpe lá, por acaso não tem aí um minutinho de leitura para mim?

Duarte Caires escreve à sexta-feira, todas as semanas

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