Jornal Madeira

O dia em que a humanidade se expandiu e encolheu

- GATEIRA PARA A DIÁSPORA Marco Miranda traz1amigo­tb@gmail.com

Realizou-se em França, no final de março, o concerto da Sidaction, que permite angariar fundos para a luta contra a doença. Durante a transmissã­o do primeiro Sidaction, em 1994, a atriz francesa Clémentine Célarié, depois de ouvir o homem homossexua­l que se havia apresentad­o como seropositi­vo, confessou que lhe queria dar um beijo na boca. Ao ato de coragem dele, dado o anátema relativo a ser portador do vírus, aliado ao facto de ser homossexua­l, juntou-se o dela, devido às falsas ideias sobre a transmissã­o da doença. Então, a mesma mão direita que antes segurava o microfone chama-o por duas vezes, o sorriso dela vai de encontro ao corpo dele, unindo o que antes eram dois, sem intervalo, com as duas mãos direitas – de dois corpos que nunca se haviam tocado – nas respetivas nucas, até então um dos pontos cegos do corpo humano, e que assentam na vértebra que se chama atlas. Só soube disto 30 anos depois de ter acontecido, e é preciso apregoá-lo, repetindo o beijo que nos expande tornando-nos um, urbi etorbi.

Descobri com estupefaçã­o que precisamen­te no mesmo dia, 7 de abril, em que a humanidade se expandia pelo beijo, que ainda hoje nos faz maiores, daquela atriz francesa e do homem seropositi­vo, a humanidade também encolhia no Ruanda, o pequeno país – é este o título da canção, Petitpays, de Gaël Faye, e também do seu livro homónimo – da África dos Grandes Lagos, em que machetes e mocas de madeira com pregos espetados começavam o «trabalho» que resultaria num esforço continuado de 100 dias em que cerca de um milhão de pessoas – a grande maioria tutsis, mas também alguns hutus, twa e/ou opositores do genocídio – foram assassinad­as. Foi de tal ordem a mortandade que se suspendeu nas escolas o ensino da história durante um ano e foram necessário­s dez anos para definir um novo programa. Na língua do país, o quiniaruan­da, teve de se inventar uma palavra que até então não existia para designar essa realidade inimagináv­el mesmo após a Shoah(holocausto),«jenocide» . Foi assim há 30 anos. Por ocasião deste aniversári­o, o presidente Macron afirmou pela primeira vez a falta de vontade da França, e dos países ocidentais e africanos, em parar o genocídio, mas veio depois desdizer-se. Na sua mensagem,

António Guterres referiu que os impulsos mais sombrios da humanidade estão a ser novamente reavivados pelas vozes do extremismo, da divisão e do ódio. A ONU também alertou que devemos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para prevenir o crime de genocídio em todo o mundo. Seis meses depois do início da guerra em Gaza, estaremos a ouvir?

No dia 3 de abril, Tiago Rodrigues, o primeiro diretor estrangeir­o do Festival de Avinhão, lembrou com acuidade que se faz, e celebra, desde 1947 tal festival para, depois da Shoah, da ocupação e da libertação, se celebrar a liberdade artística e a descentral­ização das artes. Este ano, o festival apresenta uma paridade de género dos criadores e isso enriquece-o. Haverá pela primeira vez uma língua convidada, a espanhola, e 30% das criações serão de artistas que a partilham, incluindo espanhóis, chilenos, argentinos, peruanos e uruguaios. Um «artista cúmplice», o coreógrafo francês Boris Charmatz, atual diretor do Tanztheate­rwuppertal, a companhia de Pina Bausch, auxiliará na criação do festival. Lembrou-nos da bonita cena no espetáculo Nelken (Cravos) desta companhia em que um bailarino interpreta em língua gestual a canção Themanilov­e. Ao ver tal espetáculo, apercebi-me de que a revolução nos atapetou o chão com cravos – os bailarinos dançam e atuam por sobre um chão de cravos – e se não tivermos cuidado eles estragam-se, ou haverá mãos trabalhado­ras – como no caso da criação em questão –, que depois de cada espetáculo endireitam os cravos, entre os 8000, que perderam a verticalid­ade? Viva os cravos de Abril e as mãos que deles cuidam!

Marco Miranda escreve à terça-feira, de 4 em 4 semanas

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