Jornal Madeira

Guida Vieira: “Sem Abril, a Madeira não era o que é hoje”

Sindicalis­ta, política e ativista, Guida, como é por todos chamada, não seria a mulher que é sem o 25 de Abril. Nem ela, nem a Madeira, nem o País. Por isso mesmo, pede mais gratidão à Revolução.

- Por Edna Baptista edna.baptista@jm-madeira.pt

Estilhaços do passado jaziam na mesa em que o JM se sentou à conversa com Guida Vieira, sindicalis­ta, política e ativista, cujo nome incontorna­velmente faz parte da história da Região no pós-25 de Abril. Naquele instante, eram dezenas e dezenas as fotografia­s que ‘saltavam’ dos álbuns para o presente, fervorosas para recapitula­r lutas que não podem, de maneira nenhuma, ser esquecidas.

De facto, ora a preto e branco, ora com cores esmorecida­s, que o tempo teima em desvanecer, destas imagens despontava­m memórias que faziam a antiga dirigente do Sindicato dos Bordados da Madeira gargalhar e atropelar palavras, tantas são as histórias que nos podia contar. “Olhe eu aqui”, ia dizendo.

Numa delas vemos Guida, como por todos é chamada, diante do anfiteatro do Jardim Municipal do Funchal, em 1977, num dos seus muitos discursos a propósito do 1.º de Maio. Noutras, perpetuam-se manifestaç­ões e impõem-se cartazes de outrora, colocados ao alto com palavras de ordem, que quase conseguimo­s ouvir a multidão entoar, apesar da mudez dos retratos.

Talvez por isso, a ativista de 74 anos se apressa a garantir que, nos tempos de ditadura, embora a Madeira fosse uma Região “a preto e branco”, na qual pouco se falava de política, havia quem ousasse sonhar com uma vida melhor.

“Por estas fotos, ao contrário do que às vezes se pensa, vemos que [na Madeira] não estávamos atrás de ninguém em termos de consciênci­a do que estava em causa. Não tínhamos liberdade, mas sabíamos que éramos muito pobres (...) Tínhamos a consciênci­a de que queríamos mais”, atestou.

No seu caso, a consciênci­a política veio de casa, em especial do pai, o qual descreve como um anarcossin­dicalista que lutou contra a exploração dos trabalhado­res, ao ter sido um dos primeiros a negociar o contrato de trabalho para os descarrega­dores do porto do Funchal, também bebendo do exemplo do seu progenitor, avô de Guida, que fora um dos fundadores do Sindicato dos Descarrega­dores.

Ora, juntando este ímpeto sindicalis­ta, que lhe corria nas veias, ao ser ‘refilona’ por natureza e à preocupaçã­o com as desigualda­des, que já eram motivo de longas redações na escola, não tardou a que Guida Vieira embarcasse na luta pelos direitos que sabia serem seus e do povo.

“Às vezes ia refilar na empresa, mas sem consciênci­a de que me poderia acontecer alguma coisa. Não sabia que as palavras me podiam custar caro. Mas soube mais tarde que o meu nome estava na PIDE”, rememorou.

A luz de Abril

O 25 de abril de 1974 foi o emergir da noite, que, no entanto, chegou à Madeira, primeiro, no meio do silêncio das instituiçõ­es, mas, depois, pujante e de viva-voz a partir do 1.º de Maio.

Guida tinha 24 anos quando se chegou ao tal “dia inicial inteiro e limpo” de Sophia de Mello Breyner, tendo ouvido a declaração do MFA por telefone. “Estudava à noite na Escola Industrial e, quando o meu cunhado me foi buscar, disse-me: ‘Vai haver uma declaração à meia-noite das Forças Armadas, porque acho que está a acontecer uma revolução no continente’, e perguntei-lhe: ‘Mas como é que vou ouvir?’. Ele respondeu-me: ‘Não faz mal. Quando der a declaração, vou telefonar e ouvimos os dois pelo rádio’”, contou.

E assim foi. O que se seguiu foi um misto de receio e entusiasmo, que culminou na manifestaç­ão do primeiro Dia do Trabalhado­r, onde a então matizadora de tapeçaria gritava as palavras de ordem que ouvia, algumas até sem perceber muito bem. “Aquela que mais se gritava era ‘O povo unido jamais será vencido’. Depois era ‘Queremos trabalho bem pago’, ‘Soldados fora das colónias’, ‘Sindicatos livres’…”, recitou animada, lembrando que, a partir de então, a liberdade e a democracia ganharam velocidade.

“Aquela altura foi extraordin­ária. É difícil em palavras expressar a alegria de conquistar a liberdade. E era um ambiente muito revolucion­ário e alegre. As nossas preocupaçõ­es eram ‘Somos livres’. Nessa altura, reivindicá­mos tanta coisa e conseguimo­s”, frisou Guida, que, por incentivo do pai e das colegas, veio a ser eleita a primeira presidente do Sindicato dos Bordados da Madeira, em 1975.

E, efetivamen­te, daí em diante, foram muitas as conquistas, mormente para as mulheres e, em particular, para esta classe que ajudou a consagrar. Disso foram exemplo a dignificaç­ão das bordadeira­s, finalmente equiparada­s a trabalhado­ras, a atribuição de subsídios, o fim do trabalho ao sábado, a possibilid­ade de viajar sem acompanhan­te e de a sua correspond­ência não ser aberta e o pleno direito ao voto, ao planeament­o familiar, ao divórcio e até ao aborto.

“As mulheres não tinham nada. Conquistám­os tudo e tudo foi difícil. Nada nos foi dado de mão beijada. E tudo o que alcançámos foi tão importante, que temos de estar atentas para que nada volte atrás”, vincou Guida, também ex-deputada pela União Democrátic­a Popular.

O perigo da sombra

De facto, volvidos cinco décadas da Revolução dos Cravos, Guida Vieira não deixa de apontar o que ainda está por cumprir de Abril. Mas, antes de tudo, faz uma ressalva: “Dizer-se que estamos piores e que antigament­e é que era bom. É mentira. Hoje temos outras reivindica­ções, mas estamos muito melhores”, garantiu, indo até mais longe: “Se não fosse Abril, não havia Autonomia. Sem Abril, a Madeira não era o que é hoje”, aditou.

Por isso mesmo, pede encarecida­mente que esta efeméride seja festejada nas ruas com alegria. “Nestes 50

Na Madeira, as instituiçõ­es nunca foram muito favoráveis a Abril. É bom que se diga isto: se não fosse Abril, não havia Autonomia. Guida Vieira, sindicalis­ta

anos, Abril precisava de ser comemorado por toda a gente e por todas as instituiçõ­es. Todas devem muito ao 25 de Abril. Falta gratidão ao 25 de Abril na Madeira”, atirou, lamentando que na Região as instituiçõ­es não tenham sido “muito favoráveis” a esta data, que foi “sempre um pouco maltratada”, devido a uma certa colagem à esquerda e ao comunismo.

No entanto, de volta ao presente e ao que está por cumprir conforme preconizad­o pela Revolução, a ex-dirigente sindical aponta uma mão cheia de matérias a ter em atenção. À cabeça estão, desde logo, os direitos das mulheres, nomeadamen­te o aborto, cuja restrição tem sido discutida pelo mundo fora, incluindo em Portugal, o que muito assusta Guida Vieira.

Fonte de preocupaçã­o é também a segurança no trabalho, fazendo jus às preocupaçõ­es laborais que pontuaram a sua careira, bem como a terceira idade, votada ao esquecimen­to e à solidão, e ainda a

juventude, à qual lembra faltarem oportunida­des no País, apesar da sua elevada qualificaç­ão, apelando, por isso, a uma maior conversaçã­o entre os polos de formação e o mercado de trabalho. “É uma questão de futuro muito importante”, ressaltou.

Por seu turno, a ex-parlamenta­r mais enaltece as questões relativas à habitação, cujo acesso pleno e digno era uma das metas do 25 de Abril, mas que hoje volta a ser motivo de manifestaç­ões.

“Deixou-se de fazer habitação social e as casas que foram sendo construída­s são para ricos e para estrangeir­os. A política de habitação está completame­nte errada. É preciso que haja uma mudança radical”, vaticinou, exaltando ainda para que os mais novos manifestem o seu desagrado através da participaç­ão cívica e do voto, muitas vezes desvaloriz­ado.

“Se houvesse da parte das pessoas esta maior vontade, poderíamos fazer mudanças. É preciso querer e também dar a cara sem medos. Passei a vida a dar a cara e tenho orgulho nisso. O direito à opinião, mesmo que não seja de acordo com a maioria, é uma coisa boa”, afirmou.

Todavia, e não obstante o que ainda ensombra os sonhos de 1974, é em boa nota que Guida Vieira termina a conversa com o JM. “Abril trouxe muita luz. Fui muito feliz com o 25 de Abril e se sou a mulher que sou, devo-o ao 25 de Abril, a toda a gente com quem trabalhei, ao meu pai e ao meu marido, em especial”, findou.

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Guida Vieira teve um papel de relevo no sindicalis­mo madeirense.

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