Men's Health (Portugal)

TEMPO & MARÉS

Elas não esperam por ninguém, exceto por Kelly Slater. A MH foi ter à praia com o deus do surf antes de ele pendurar o wetsuit e retirar-se, após quatro décadas a surfar ondas. Vamos perceber como conseguiu ser o melhor de todos durante tanto tempo e como

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Kelly Slater é – sem dúvida – o maior atleta de todos os tempos. Também é, sem qualquer hipótese, o maior surfista mundial, idolatrado por legiões de fãs e responsáve­l por arrastar multidões para os melhores spots de surf do planeta. Mas hoje está sozinho. Senta-se na primeira fila de um pequeno avião que voa de Joanesburg­o para Port Elizabeth, ambos na África do Sul. Após aterrar, espera pela bagagem (com um capuz preto a cobrir a cabeça). Uma mulher idosa deixa cair a mala. Ele baixa-se, em vez de a ignorar, e apanha a mala. Pega na sua prancha e vai até ao parque de estacionam­ento. Nada do que faz revela que estamos perante a elite da elite em termos de atletas desportivo­s. Nem sequer existe alguém à espera dele com um letreiro. “Detesto essas merd#*!”, revela-me no dia a seguir. Estamos sentados no jardim de uma casa em frente à praia em St. Francis Bay, a pouca distância de Jeffreys Bay, onde o Corona Open J-Bay, uma das originais e melhores etapas do Championsh­ip Tour da World Surf League, vai decorrer no dia a seguir. Às vezes, Slater viaja com companhia – a namorada Kalani Miller, designer de fatos de banho, ou com um fotógrafo –, mas nos últimos anos tem-se tornado mais solitário. “Costumava viajar com o meu grupo de amigos, mas com o tempo todos eles foram saindo do tour, constituír­am família e coisas assim”, conta. “Até que acabei por ser o único a ficar até ao fim.”

Normalment­e, Slater costuma dormir em casas de amigos sempre que viaja. Desta vez, instalou-se numa propriedad­e de luxo alugada pela marca de relógios Breitling para fotografar a próxima campanha que, além dele, conta com mais duas surfistas: Stephanie Gilmore e Sally Fitzgibbon­s. Os três formam a Equipa de Surf da Breitling. O nível de produção da Breitling é gigantesco, composto por estrelas de cinema como Brad Pitt, Charlize Theron, Adam Driver e Daniel Wu. “Há pouco estava dentro de água a olhar para a praia e a pensar que estavam 50 pessoas na areia naquele momento”, revela.

NÍVEL ESPIRITUAL

Os membros da Equipa de Surf da Breitling não se deixam intimidar pelo nível desta produção, mesmo que Slater seja o único a estar habituado a este tipo de tratamento cinco estrelas. “Ele é Hollywood”, diz a surfista Gillmore, seis vezes campeã mundial. Sally Fitzgibbon­s, ficou três vezes em segundo lugar no campeonato mundial. As duas australian­as louras são surfistas altamente respeitada­s, mas o onze vezes campeão mundial Slater – com os recordes de surfista mais novo (20) e mais velho (39) a conquistar o título mundial – tem um grau de respeito maior, conferido pela idade, feitos alcançados e o facto de, claro está, ser o Kelly Slater. Sally Fitzgibbon­s tem estado a ver vídeos das prestações dele em J-Bay para “observar e aprender”. Slater faz surf ali desde 1994 (ela nasceu em 1990) e já ganhou esta etapa quatro vezes. No ano passado, estava a fazer free surf antes de competir no segundo heat quando a prancha lhe bateu no pé e quase que o partiu ao meio. “Tive de meter um pé novo”, disse ele a brincar. “Felizmente que estou na reta final da minha carreira e não no princípio, pois acho que naquela altura não podiam ter tratado tão bem do meu pé como fizeram agora”. Este é o tipo de lesão capaz de acabar com a carreira de qualquer surfista e isso lançou a especulaçã­o de que Slater seria forçado, desta vez, a retirar-se para sempre. (Ele retirou-se em 1998, aos 26 anos, após ter ganho cinco títulos consecutiv­os, mas regressou em 2002).

Apesar de tudo, regressou e vai competir amanhã. Ou melhor, talvez. “Se calhar nem dá para surfar nesta semana. O meu pé ainda não está em condições”. A única coisa certa é que ele vai voltar a competir, mais cedo ou mais tarde, pois interpreto­u a lesão no campo espiritual e não como um sinal cósmico a dizer que devia abandonar. “Eu sinto que sempre que me aleijei foi porque não estava a prestar a devida atenção a alguma coisa na minha vida”, explica. “Talvez tivesse conseguido evitar isto se fosse mais consciente. Por isso mesmo, têm sido bons tempos para ser paciente e aprender mais sobre mim mesmo.” No entanto, não me revelou quais as coisas a que devia prestar mais atenção. “São assuntos pessoais que deixo passar sem dar o meu melhor.”

NADA A PROVAR

Enquanto um lado dele não sente falta alguma da pressão dos grandes eventos, outro lado desespera avidamente pela competição. Slater tenciona entrar no tour do próximo ano. “Estou a construir este novo objetivo”, afirma. “Preparar as pranchas, preparar o corpo, ajustar a alimentaçã­o, surgir rejuvenesc­ido e, quem sabe, terminar a minha carreira dessa forma.” É um “talvez”, mas parece ser a decisão certa para ele. Este tempo afastado da competição deu-lhe liberdade e uma visão do que é a vida sem ter a exigência de uma concentraç­ão permanente. Mas fazendo o papel de advogado do diabo: para quê sujeitar-se a mais um ano de pressão? Já não tem nada a provar.

“Não tem nada que ver com isso. Não estou a provar nada”, afirma. Depois faz uma pausa. “Bem, não é bem assim. Como competidor, há sempre algo que desejamos provar. Mas vejo-me a fazer um último ano em jeito de triunfo: dizendo obrigado a todos os meus fãs e a todas as pessoas que estiveram comigo nos últimos anos.” Ele tenciona passar esta última etapa de forma consciente, apreciando tudo ao máximo, todos os locais e todas as pessoas. “Talvez depois entre em pequenos eventos, mas este será o meu tipo de 'até à próxima' ao mundo do surf.”

Antes disso, tem de tratar do corpo e da alimentaçã­o. Slater tem experiment­ado o veganismo e nesta última semana mudou para um novo proto-

“Apesar de Slater não sentir falta da pressão, anseia pela competição”

colo suplementa­r com “ervas chinesas, extratos de cogumelos e coisas assim”. Mas é suposto isso ajudá-lo nalguma coisa? “Claro. Em tudo.” Esta alimentaçã­o contém nutrientes para o pé, articulaçõ­es, cérebro e saúde em geral: silicone, iodo, magnésio e outros suplemento­s. Alguns são para uma manutenção geral, outros para “limpar o corpo dos alimentos processado­s e fazer um detox ao corpo”. E ele está entusiasma­do com os potenciais benefícios. “Sou superapaix­onado por tudo relacionad­o com saúde” (em inglês, health). E acrescenta: “Também é por isso que não dispenso a Men's Health!” Slater começa todos os dias com um copo de água morna com limão para “limpar” o organismo e depois com um batido que contenha espinafres, brócolos, proteína vegetal, banana, cacau cru e sementes de chia. Ele gosta da ideia e do aroma do café, mas como não gosta do sabor, adiciona leite de coco ou amêndoa sempre que precisa de um boost de cafeína. Há mais de vinte anos que não consome produtos lácteos e não é apenas por razões éticas: “No passado nunca fui muito saudável e penso que existe uma ligação.” Hoje bebe cerveja, mas não muita. “Sou do tipo que só bebe duas cervejas. É que a diversão só existe nas duas primeiras. Tudo o resto é de mais.” Relativame­nte ao corpo, tem feito pilates, de que gosta, e “alongament­os e coisas tipo yoga”. Também faz muita fisioterap­ia. Por outro lado, sente que recupera naturalmen­te o nível de força necessária para surfar, simplesmen­te por surfar. Um pouco de crosstrain­ing é bom, mas não gosta de exagerar. Flexibilid­ade, força nas pernas e cardio são os pilares para os objetivos de Slater, mas a musculação não. “Ganhar demasiada massa muscular podia deixar-me mais rígido.” Com apenas 1,75 metros e 73 quilos, em pessoa é mais baixo e magro do que possa parecer, apesar do invejável tronco em V, verdadeira­mente impression­ante para um tipo que já vai nos 40 e muitos.

A TEMPESTADE PERFEITA

Mesmo para os atletas mais novos, o surf é capaz de levar o corpo ao extremo. Neste caso, o pé. Slater já partiu o pé quatro vezes durante a carreira. Os tornozelos e os joelhos também sofrem bastante. “Mas os membros superiores não escapam à porrada”, diz Gilmore. “Três dos meus melhores amigos estão neste momento com lesões sérias na zona lombar e não podem surfar”, acrescenta Slater. E depois há a questão do afogamento e dos tubarões – o veterano Mick Fanning sobreviveu a um ataque de tubarão em J-Bay em 2015 (o vídeo está em menshealth.pt). Então, qual o segredo para tanto sucesso?

“A minha história é a perfeita tempestade de uma quantidade de coisas, tais como dinâmica familiar e posição socioeconó­mica”, diz. O pai de Slater tinha dinheiro, mas o avô perdeu tudo ao ajudar pessoas (maioritari­amente

“Os atletas mais velhos têm a vantagem da experiênci­a ganha ao longo dos anos”

mulheres) que se aproveitar­am dele. O pai de Slater passava os dias na praia, bebia cerveja e não tinha amarras nem empregos permanente­s. Basicament­e, era a mãe que mantinha a família à tona de água. Mas a dada altura estiveram prestes a perder a casa por falta de pagamento. “Todas estas coisas constroem a nossa personalid­ade”, revela. Começou a participar em competiçõe­s com 8 anos. Uma das vezes, a mãe vendeu a pequena viola para ele poder entrar numa prova. Felizmente, conseguiu juntar dinheiro suficiente para tomar conta da família. Também teve de lidar com algumas desilusões amorosas. “Isto fez que me focasse em ganhar. Não queria deixar de ganhar”, confessa. Estes tempos agitados levaram-no a vitórias implacávei­s (muitas delas sem as saborear devidament­e). “Mas a dada altura ultrapassa­mos tudo isto. Hoje sinto-me confortáve­l com o que fiz. Se não voltasse a competir, seria feliz. Agora posso competir mais um ano sem me preocupar se ganho ou se perco e apreciar o surf só pelo surf”, confessa. “Claro que vou estar sempre a tentar ganhar ao meu adversário, mas agora sei apreciar melhor os momentos.” Parte do que fez Slater ser tão bom durante tanto tempo foi o próprio “tanto tempo”. A experiênci­a e o fitness são inversamen­te proporcion­ais: à medida que a primeira aumenta a segunda diminui e no meio existe sempre aquele momento perfeito antes de o corpo começar a “falhar”. Mas se um surfista conseguir manter a parte física, ou melhor, lidar com o declínio físico, então – como Slater – pode misturar a capacidade atlética com a experiênci­a e tomadas de decisões aperfeiçoa­das ao longo do tempo. E é aqui que um surfista consegue realmente aumentar o seu nível. Deixa de ser “a onda certa” para ser “o modo como a onda é surfada”, explica o campeão, que faz surf desde os 5 anos.

O AMOR PELO SURF

A minha motivação agora é apreciar o que estou a fazer e partilhar com quem está à minha volta”, diz Slater. O ponto de partida dele era ter propriedad­es nos melhores spots de surf. Quando comprou o primeiro apartament­o na Austrália, o colega de quarto comparava as competiçõe­s a mobílias: “Tens de ganhar um novo sofá Kelly.” Slater acredita que o argumento para encontrar “o melhor atleta de sempre” é muito discutível. “Como é que se pode comparar o Roger Federer com a lenda do críquete Don Bradman?

ONDAS CERTAS

Após perder o primeiro heat para Kanoa Igarashi, que nem era nascido quando ele ganhou o quinto título mundial, Slater anuncia o seu plano para se retirar no final da próxima época. No segundo round, acaba por ser eliminado, muito por causa das condições do mar com ondas fracas e desalinhad­as.

Slater brinca e diz que estar a pensar nas propriedad­es é uma boa motivação para continuar, mas apesar de a sua carreira só lhe ter garantido quatro milhões de dólares (muito pouco em comparação com os 116 milhões de Federer), está descansado face aos outros investimen­tos que tem feito. Fundou a sua própria marca de roupa, OuterKnown, após ter terminado o contrato de 23 anos que o ligava à Quicksilve­r. Além disso, é sócio maioritári­o na empresa de pranchas de surf FireWire. Entretanto, o Campeonato Mundial de Surf apostou na Kelly Slater Wave Company, que converteu um lago da Califórnia num “rancho de surf” através de uma tecnologia de ondas artificiai­s que Slater ajudou a desenvolve­r. Face às condições desfavoráv­eis do torneio que decorreu hoje, não é difícil perceber que o maior legado que Slater vai deixar para este desporto talvez seja esta inovação, que permite a todos os surfistas (mesmo os que não têm praias por perto ou vivam em países sem mar) colocarem à prova as suas capacidade­s. E é claro que os patrocinad­ores não vão deixar escapar esta oportunida­de. Desenvolvi­da por peritos da Universida­de da Califórnia do Sul (EUA) e provocada por um hidrofólio arrastado através da água, esta tecnologia pode revolucion­ar a filosofia deste desporto: a onda perfeita deixa de ser um mito que pode levar uma vida inteira a ser encontrada e que só existe em lugares exóticos. A partir de agora, pode ser “encomendad­a”. E se o surf chegar a ser considerad­o nos próximos Jogos Olímpicos em Tóquio, em 2020, basta aplicar esta tecnologia numa piscina. E não se admire se Kelly Slater for o capitão da equipa dos EUA e subir ao pódio para receber a medalha de ouro.

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AS DÉCADAS DESUCESSO EM CIMA DA PRANCHA DEIXARAM UM LEGADO INSUBSTITU­ÍVEL
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SLATER, GILMORE E FITZGIBBON­S NO 'ESCRITÓRIO'

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