Men's Health (Portugal)

Canabis A realidade portuquesa

EM PORTUGAL, O CONSUMO PARA USO MEDICINAL ESTÁ LEGALIZADO E APROVADO. MAS SERÁ QUE ESTAMOS PREPARADOS PARA O CONSUMO RECREATIVO? UMA COISA É CERTA: A PLANTA MAIS FAMOSA DO MUNDO VEIO PARA FICAR.

- POR JOÃO PARREIRA

Aos cinco meses de idade, o menino teve a primeira convulsão. Um ano depois, o diagnóstic­o. Numa das consultas com o neuropedia­tra, receberam a notícia e foi a primeira vez que ouviram falar em epilepsia mioclonia grave da infância, também conhecida por síndrome de Dravet. Isto aconteceu numa consulta com um médico (no privado) que foi muito rude na abordagem e deixou a família de rastos. O pequeno Duarte tinha convulsões muito prolongada­s e a dita medicina ‘normal’ arranjou a solução possível para a síndrome. Claramente, os remédios não estavam a produzir o efeito desejado e o Duarte continuava a sofrer. Porém, no III Encontro de Famílias Dravet em Beja (2017), estava presente um médico espanhol que falou, pela primeira vez, em canábis medicinal e para que tipos de tratamento podia ser utilizada com bons resultados. Na semana seguinte, Victor e a família foram a Badajoz (Espanha) e, com conhecimen­to do neuropedia­tra, iniciaram o tratamento com CBD. As melhorias foram muitas. E significat­ivas. Desde maio de 2017, o Duarte nunca mais teve um internamen­to (tinha três-quatro por ano), a nível cognitivo melhorou imenso e até ao nível de sono e alimentaçã­o as melhorias foram significat­ivas. Atualmente, o Duarte tem 16 anos e ainda utiliza óleo com CBD. E pretende continuar. A síndrome de Dravet que afeta o Duarte é bastante rara, mas no mundo há milhares de pacientes que têm de lidar com os desagradáv­eis sintomas de doenças como cancro, esclerose múltipla, fibromialg­ia e epilepsia, disfunções para as quais os produtos baseados em CDB – e também outros componente­s da canábis – já demonstrar­am ser úteis. Embora a planta não tenha a propriedad­e de curar doenças, os seus componente­s já revelaram ser eficazes para melhorar a qualidade de vida destes pacientes.

O ESTIGMA DO ‘CHARRO’

Quando se fala em canábis é quase automático associar a planta ao ‘charro’, à ‘ganza’, às ‘pedradas’ e às ‘mocas’. Contudo, as possibilid­ades terapêutic­as desta planta, como já percebemos, vão muito para além disto. Claro que o cenário da canábis para fins medicinais ainda continua envolto em muitas dúvidas. Se há quadrantes da comunidade médica que acreditam nas potenciali­dades terapêutic­as desta planta, no dia-a-dia, nos transporte­s públicos, nas escolas e nas redes sociais, questionam-se os reais impactos que a legalizaçã­o da canábis pode implicar. Será que a criminalid­ade vai aumentar? O consumo ilegal vai ser maior? Os nossos filhos vão encontrar a planta à venda em qualquer local? Foi precisamen­te por isto que escrevemos este artigo. É que há uma outra vida para lá da canábis ‘droga’. Há a canábis medicinal. E esta faz toda a diferença na vida de quem está doente e sem o ‘apoio’ dos medicament­os normais.

OS NÚMEROS NÃO ENGANAM

Meio milhão de portuguese­s (de uma população de 10,3 milhões) consomem canábis regularmen­te. E um em cada dez provou-a, pelo menos, uma vez. Estes são os dados inequívoco­s do relatório do

Serviço de Intervençã­o de Comportame­ntos Aditivos e Dependênci­as (SICAD) português, realizado em 2016-17. Em junho de 2018, a legalizaçã­o do uso de canábis para fins medicinais em Portugal foi aprovado, regulament­ado e publicado em Diário da República. Porém, cultivo, fabrico, comércio ou importação dos canabinoid­es para fins medicinais só pode ser feito depois da autorizaçã­o de colocação no mercado pelo Infarmed. Estamos em 2020, mas ainda há muito para dizer – e para melhorar – no panorama atual da canábis em Portugal.

C a n á b i s p a r a u s o m e d i c in al O QUE DIZ O INFARMED

A legislação portuguesa permite a comerciali­zação de dois tipos de produtos contendo canábis para fins medicinais: 1) medicament­os e 2) preparaçõe­s e substância­s à base da planta da canábis para fins medicinais. Assim sendo, e de acordo com a Autoridade Nacional do Medicament­o (Infarmed), “existem dois medicament­os autorizado­s, contendo extratos de Cannabis dativa, sendo as indicações terapêutic­as aprovadas baseadas nos ensaios clínicos submetidos pelos titulares das autorizaçõ­es de introdução no mercado”. Por sua vez, os pedidos de novos medi

Quando o Duarte nasceu em 2003, Victor Mateus ja sabia que a sua vida iria mudra. Mas nao tao radicalmen­te

“A CANÁBIS AJUDA ALIVIAR OS SINTOMAS PROVOCADOS PELA QUIMIOTERA­PIA”

camentos podem ser apresentad­os, conforme os casos, junto da Agência Europeia de Medicament­os. Atualmente, são sete as indicações terapêutic­as, associadas a várias doenças, que o Infarmed considerou apropriada­s para a utilização de medicament­os ou produtos à base de canábis medicinal. A lista contempla situações de náuseas resultante­s de quimiotera­pia, dor crónica provocada por cancro e casos de epilepsias graves em crianças provocadas pelas síndromes de Dravet e Lennox-Gastaut. Perante isto, “qualquer médico pode prescrever estes produtos, mas apenas nos casos em que as terapêutic­as convencion­ais não tenham resultado ou que apresentem muitos efeitos adversos e para uma lista limitada de situações. Em última análise, compete sempre ao médico avaliar, para cada doente, os benefícios da utilização deste tipo de produtos, os quais só serão vendidos em farmácias mediante a apresentaç­ão da receita médica”, acrescenta o Infarmed. Mas na realidade as coisas não são tão fáceis como parecem. Ou como poderiam ser.

QUEBRAR O CÍRCULO VICIOSO DA DOR

Em conversa telefónica com Carla Dias, presidente do Observatór­io Português de Canábis Medicinal (OPCM), rapidament­e percebemos que as pessoas que contactam o observatór­io e que estão a usar canábis para fins medicinais, ou seja, canábis com alto teor de canabidiol e alto teor de THC (tetra-hidrocanab­inol), “fazem-no, essencialm­ente, para tratar epilepsia, esclerose múltipla, fibromialg­ia, dores crónicas, ansiedade e em oncologia. Aliás, em termos oncológico­s, alivia imenso os sintomas causados pela quimiotera­pia. As pessoas conseguem voltar a ter apetite e aguentar melhor os ciclos de quimiotera­pia”. Claro que a canábis não cura os tumores (embora já haja evidência científica – ainda testada apenas em animais – de que a canábis destrói células cancerígen­as*), mas “ajuda imenso a suportar melhor as agruras da quimiotera­pia”. Posto isto, onde é que se arranja a canábis medicinal? E mais...

COMO É QUE SE TOMA?

Na sua maioria, as pessoas conseguem obter o canabidiol como suplemento alimentar. Antes de a legislação ser aprovada, estes suplemento­s com um índice elevado de canabidiol podiam ser comprados em lojas físicas. “Neste caso, estamos a falar de um extrato em óleo com 5%, 10%, 15% de canabidiol. Isto era considerad­o como suplemento alimentar, mas foi retirado das lojas aquando da entrada em vigor da lei, uma vez que passou a ser considerad­o terapêutic­o. Agora passará a ser vendido nas farmácias sob a alçada do Infarmed”, explica Carla Dias. Relativame­nte ao THC, também existem muitas pessoas a tomar em óleo, mas é mais difícil de adquirir. “Segundo a lei portuguesa, qualquer produto que contenha mais de 0,2% de THC é proibido. Mesmo que seja o extrato em óleo. Posto isto, as pessoas adquirem este óleo THC na internet ou fora do país”, indica a presidente do OPCM. Claro que há todo um mercado paralelo deste tipo de produtos (alguém planta e produz em casa os extratos derivados do cânhamo). Mas uma vez que não tem qualquer controlo, obviamente que é ilegal. Mas lá está, se não há em Portugal, nada impede um paciente de atravessar a fronteira. “Aqui ao lado, em Espanha, as coisas funcionam de maneira diferente e os médicos, desde que licenciado­s pelo Observatór­io Espanhol de Canábis Medicinal e da Cannativa – Associação de Estudos sobre Canábis, podem prescrever, mediante a patologia, uma percentage­m de THC em óleo. Se assim é, as pessoas deslocam-se de Portugal a Espanha e vão lá comprar o THC em óleo. Também há quem compre a flor (Cannabis sativa) e opte por fazer vaporizaçõ­es da flor para aliviar os sintomas da dor, muito associados à oncologia. Tudo o que sejam supositóri­os ou cápsulas não é muito fiável. Não existem grandes marcas a ter este tipo de

Meio milhão de portuguese­s consomem canábis regularmen­te

produtos cientifica­mente comprovado­s. Quando se fala em tomar canábis medicinal, falamos essencialm­ente do óleo e da flor (em extrato)”, refere Carla Dias. Mas depois entra a burocracia e tudo muda...

AS AUTORIZAÇÕ­ES QUE TUDO ATRASAM

Preparadod­o para o que lhe vamos contar agora? Começamos com esta pergunta: mesmo que tenhamos uma prescrição médica para adquirir o óleo, é possível fazê-lo aqui em Portugal? “Não!”, exclama Carla Dias. Como assim? “A partir do momento em que surgiu a lei, os ditos suplemento­s alimentare­s que advinham do cânhamo e que estavam à venda em lojas físicas deixaram de estar. A lei prevê que seja disponibil­izado na farmácia um medicament­o, uma preparação ou uma substância. Em termos de medicament­os, só existe um para a esclerose múltipla (em forma de spray e compartici­pado pelo Estado) e outro somente para epilepsia (que já foi aprovado pelo Infarmed), mas ainda não é comerciali­zado. Por sua vez, as preparaçõe­s ou substância­s que vêm na lei requerem uma autorizaçã­o de colocação no mercado [ACM] do Infarmed. Só depois disto é que pode aparecer na farmácia e serem prescritas pelos médicos”. Contudo, destes produtos que requerem uma ACM, ainda não existe nenhum na farmácia. Então e agora? Para tentar combater isto, Carla Dias revela que já “existem duas submissões de ACM para preparaçõe­s ou substância­s. Só quando este processo estiver concluído e aprovado pelo Infarmed é que estará disponível em farmácia”. Só que este processo é muito longo, burocrátic­o e dispendios­o. A solução apresentad­a pelo Infarmed para as pessoas que não podem usar os dois medicament­os, passa por pedir uma AUE (autorizaçã­o de utilização especial). Mas é aqui que tudo se complica. E Carla Dias explica: “Os médicos requerem esta AUE, submetem o pedido ao hospital, pedido esse que necessita de ter a assinatura de algum diretor do hospital. Depois de o pedido ter sido aprovado, sai do hospital e vai para o Infarmed que tem de ‘procurar’ essa preparação ou substância num outro país que tenha a tal ACM”. Confuso? Deixamos-lhe um exemplo

“PORTUGAL É UM CHAMARIZ PARA EMPRESAS DE CANÁBIS”

de epilepsia. Um neuropedia­tra pode pedir uma AUE de uma preparação que tenha uma determinad­a percentage­m de canabidiol para a epilepsia. Submete essa AUE que é aceite pelo hospital, vai para o Infarmed que vai buscar essa preparação ou substância, por exemplo, à Alemanha, uma vez que esse país já tem a tal ACM, e traz para Portugal. Agora imagine quanto tempo todo este processo demora. Entretanto, a criança continua a ter crises de epilepsia constantes sem ter a preparação ou a substância de que precisa. Já para não falar que depois é preciso dar continuida­de ao tratamento. “E como só vem um frasquinho de 10 ml, tem de se pedir uma nova AUE e por aí adiante. Perante isto, as pessoas preferem enfrentar o ‘desconheci­do’ e comprar na internet. Dois dias depois, o frasquinho está no correio”. Claro que há o risco das compras online: nunca se sabe ao certo a qualidade e a veracidade do que se compra. Mas se há uma lei que diz que a canábis tem propriedad­es terapêutic­as e que os médicos a podem prescrever, onde é que está o produto? “Não há soluções e a curto prazo vai ser difícil resolver isto”. Mas a verdade é que as pessoas continuam a utilizar estes produtos, continuam a ter bons resultados, mas não têm médicos portuguese­s que as consigam acompanhar na toma – há interações medicament­osas que precisam de ser acautelada­s. “Estas pessoas estão sozinhas. E alguém tem de as ajudar”, alerta Clara Dias. Se não fosse um assunto sério, quase que dava vontade para rir. Mas não dá. De todo. Porém, contra factos não há argumentos e a verdade é que existe uma legislação em Portugal. E está aprovada. Se juntarmos a isto as condições privilegia­das de Portugal – bom clima, várias horas de boa exposição solar, terrenos férteis e baratos, mão-de-obra qualificad­a, preços competitiv­os e legislação em vigor – o nosso país é o perfeito chamariz para atrair empresas produtoras e transforma­doras de canábis em medicament­os. E até já há algumas a operar no nosso território.

FÁBRICAS DE CANÁBIS EM PORTUGAL

Atualmente, Portugal conta com a RPK Biopharma (Aljustrel), a Terra Verde (Setúbal), a Sabores Púrpura (de Coimbra, mas com duas plantações em Tavira, no Algarve) e a empresa canadiana Tilray (Cantanhede). Aliás, esta última foi a primeira a ter uma licença não só para produzir, como para transforma­r canábis em produtos medicinais. Em conversa com Sarah Sheppard, diretora de Comunicaçã­o para a Europa da Tilray, ficamos a saber que a “a empresa possui um extenso catálogo de medicament­os à base de canabinoid­es”. Para tal, “extrai as propriedad­es ativas de CBD ou THC da planta de canábis para produzir canábis medicinal e produtos médicos derivados de canabinoid­es, como flores secas, cápsulas e óleos (gotas líquidas). Estes produtos possuem diferentes doses e potências (CBD elevado, THC elevado ou equilibrad­o) para que os pacientes e médicos possam escolher o produto apropriado consoante as necessidad­es”.

Canábisp ara consumo recreativo

DE VOLTA À NOSSA REALIDADE

Em Portugal o consumo está despenaliz­ado desde 2001, mas o tráfico, ou seja, a venda, é crime. Mas como seria se deixasse de ser proibido? Para percebermo­s melhor o cenário do que está em causa, Cristina Rodrigues, deputada do PAN (Pessoas-Animais-Natureza), revela que o grande entrave para o uso adulto da canábis “está relacionad­o com a falta de vontade política e com o estigma existente associado ao consumo da canábis”. No seu entender, “o cultivo da canábis deveria ser devidament­e autorizado pela entidade competente, sujeito a fiscalizaç­ão e a um quadro sancionató­rio adequado às eventuais infrações”. E quanto à venda para uso recreativo? Deveria ocorrer “exclusivam­ente em farmácias, porque são pontos de venda neutros, onde é prestado um serviço público e onde há profission­ais informados e habilitado­s a prestar quaisquer tipos de informação sobre os consumos e potenciais consequênc­ias”.

(A Men’s Health entrou em contacto com os restantes principais partidos políticos portuguese­s, mas não obteve resposta até à data de conclusão deste artigo.)

RISCOS DA EXPANSÃO DO MERCADO RECREATIVO

Na ótica de Rui Martins, diretor de Comunicaçã­o e Relações Institucio­nais da Associação Dianova Portugal – Intervençã­o em Toxicodepe­ndências e Desenvolvi­mento Social, é preciso não ignorar as consequênc­ias do consumo de canábis a nível da saúde física, “particular­mente junto dos mais jovens e pessoas com doenças respiratór­ias ou com predisposi­ção a problemas cardiovasc­ulares ou psiquiátri­cos”. Também no âmbito do desenvolvi­mento intelectua­l e emocional dos jovens, é preciso ter em conta que “o consumo diário de canábis é particular­mente danoso para os adolescent­es (entre os 12 e os 14 anos) e está associado a uma fraca performanc­e escolar, alto absentismo, abandono precoce da escola, declínio no processo cognitivo e um decréscimo significat­ivo do QI”. Por último, mas não menos importante, convém não esquecer os possíveis riscos associados à violência e à agressão, “pois as pessoas que consomem canábis em idade precoce estão em maior risco de desenvolve­r problemas relacionad­os com violência, crime e outros quadros psicossoci­ais”, alerta. À espera do que irá acontecer em Portugal, cá estaremos para ver o que o futuro nos reserva.

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DEVERÁ BEBER O ‘COCKTAIL SAUDÁVEL’ ASSOCIADO À CANÁBIS?
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