Os desafios de todos os pais.
Novos conceitos de família, novas formas de estar e pensar, novos interesses e novas estratégias educacionais desafiam o homem no papel de pai numa sociedade que evolui ao mesmo tempo que crenças antigas se perpetuam. Os desafios são muitos, mas há soluções.
LONGE VÃO OS TEMPOS EM QUE OLHÁVAMOS PARA O PAI APENAS COMO CHEFE DE FAMÍLIA, UMA FIGURA AUSENTE E AUTORITÁRIA, CUJA PATERNIDADE ERA MEDADA SOMENTE PELO SEU TRABALHO E SALÁRIO.
Nos últimos anos, a visão de um pai provedor tem dado lugar a uma figura paternal que aos poucos se vai construindo e que procura dar e receber afetos, que quer estar presente e que, mais do que ser o sustento da família, quer ter direitos iguais perante os cuidados dos filhos. Numa sociedade de duplo emprego, o duplo cuidado é agora uma realidade nas famílias portuguesas, que procuram adaptar
-se a esta fase de “transição de papéis parentais mais tradicionais para papéis parentais mais igualitários”, começa por explicar Mafalda Leitão, socióloga, investigadora no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e membro do Observatório das Famílias e das Políticas de Família (OFAP). E esta mudança é um dos principais desafios do homem enquanto pai, mas está longe de ser o único.
Nos dias que correm, a internet não veio só trazer uma dependência cega pelo mundo digital que facilmente é imitada pelos mais novos, como cria uma necessidade de manual de instruções para esta nova fase da vida – induzindo, muitas vezes, em erro –, uma incapacidade de filtrar informação e de dar ouvidos ao instinto paternal (e maternal, sim, é também uma questão que diz respeito às mulheres). Os desafios do pai atual são muitos, mas há quatro que se assumem como predominantes. E para cada desafio há soluções.
DESAFIO DA IGUALDADE
Mais presente, mais interessado, mais ativo. O homem veste a camisola da paternidade com um empenho que outrora não era sequer imaginável, mas continua a não ser visto (e nem sempre a ver-se) com a devida importância na vida familiar. Em alguns casos, são os próprios homens que se“equacionam fora deste enredo [familiar]”, diz o pediatra Mário Cordeiro. Mas, aos olhos de muitas pessoas, o papel do pai continua longe dos cuidados básicos de um bebé. “Na maioria dos casos é a sociedade, o mundo laboral, a legislação e muitos outros fatores que ainda olham para os progenitores masculinos como ‘produto de segunda’, descartável até”, frisa o médico. E É AQUI QUE ENTRA O DESAFIO DA IGUALDADE.
Apesar de, em Portugal, ser possível o homem gozar mais tempo de licença de parentalidade do que a mãe* – embora esta tenha sempre um período inicial obrigatório superior, de 42 dias face aos 20 do pai –, “sabemos que é a mãe quem vai gozar” a maioria do tempo, diz Mafalda Leitão. E não é difícil perceber o porquê. Mesmo com a igualdade a reinar na maioria das famílias e com o Estado português a querer a presença do homem nos primeiros dias de vida do bebé – “algo inovador, é um mecanismo de partilha muito interessante, porque vê no pai um igual cuidador, tão competente como a mãe”, diz a socióloga – ainda há a crença de que este não é o papel do homem. “Há uma maioria na população portuguesa a querer igualdade entre homens e mulheres na família e a todos os níveis, mas depois se perguntar se os homens são igualmente competentes para cuidar de bebés pequenos já não há uma maioria, ainda há muitas pessoas a desconfiar das competências dos homens”, explica Sofia Vilarinho, socióloga e também investigadora no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e membro do OFAP. E é esta visão ainda agarrada a ideais do passado que se assume como um entrave ao homem enquanto pai. A socióloga Mafalda Leitão diz mesmo que “nestas mudanças da vida familiar persistem desigualdades e estas desigualdades têm como cerne a parentalidade, há uma certa essencialização dos cuidados do bebé para a mulher”, algo que, a seu ver, é “um obstáculo à participação mais igualitária de ambos” e que deve mudar, pois a parentalidade deve ser vista como uma questão de igualdade, pois “é incontornável a necessidade biológica da licença [da mãe], mas também é incontornável esta necessidade social de envolver o pai nestes cuidados pelas implicações a vários níveis, desde o mercado de trabalho, à qualidade das famílias, à relação, à coesão familiar, à igualdade de género”.
SOLUÇÃO
Começar por alargar a licença de parentalidade – “nunca menos de dois meses para os progenitores masculinos”, sugere Mário Cordeiro – seria o primeiro passo, mas é preciso ir mais além, tal como nos diz a socióloga Mafalda Leitão. “Pode tornar-se o regime ainda mais igualitário. O regime de licenças em Portugal ainda é muito rígido, há este período de licença a tempo inteiro muito bem pago e sem perda de vencimento e depois há um corte e um regresso ao mercado de trabalho”. Num cenário ideal, defende a socióloga, deveria ser introduzida uma maior “flexibilização nas licenças em que se possa combinar trabalho pago com subsídio parental, algo que já acontece em muitos países”. E como funciona
ria? Licenças mais prolongadas para ambos, com períodos em que tanto o pai como a mãe estavam em simultâneo com a criança, nem que fosse em regime de part-time (“40% pago pelo subsídio de parentalidade e 60% pago pela empresa”, sugere). “Temos de encontrar mecanismos em que os pais têm de se organizar”, de modo que “a mãe não fique sobrecarregada e o pai se sinta ‘pai’, pois na própria experiência da licença os homens desenvolvem competências de aprendizagem, não é inato, há uma grande componente relacional. Se o homem tiver a mesma oportunidade da mulher – com o mesmo tempo e circunstâncias –, o homem percebe que as respostas do bebé são equivalentes às que a mãe tem. Tudo faz construir a identidade cuidadora do homem. Esta identidade também se pode construir através de políticas de licenças. Maior igualdade leva a maior bem-estar”, destaca a socióloga.
DESAFIO DA PARTILHA
Em 2018, de acordo com os mais recentes dados da PORDATA, por cada cem casamentos aconteceram 58 divórcios. Os valores não mencionam a presença ou não de filhos, mas é sabido que esta é uma realidade no nosso país e, quando isso acontece, o regime regra, que “apesar de ser expectável acontecer uma alteração a curto/médio prazo”, defende que as responsabilidades parentais são atribuídas a ambos os progenitores, “sendo decretado um deles como progenitor guardião”, explica Ana Eduarda Gonçalves, advogada** e pós-graduada em Direito da Família e Menores pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. No entanto, “importa referir que a evolução da lei acompanha as tendências internacionais, estando a acontecer uma mudança de paradigma, isto é, cada vez mais se pugna pela guarda partilhada com residência alternada, por se entender que em caso de uma convivência saudável entre ambos os progenitores este é o regime que melhor acautela os direitos da criança, passando (no mínimo) uma semana com cada um”. E É AQUI QUE ENTRA O DESAFIO DA PARTILHA.
Embora o bem-estar da criança seja a principal preocupação, conseguir coerência na forma de educação pode não ser uma tarefa fácil – especialmente quando este é o principal motivo de separação. Para a psicóloga Cláudia Madeira Pereira, que dá consultas em Lisboa, “o maior desafio está na educação da criança segundo um referencial comum, através do qual a criança se possa guiar e orientar, com confiança e segurança, nomeadamente em termos cognitivos, comportamentais e emocionais, ao longo do desenvolvimento”. Nestes casos – e divergências à parte –, os pais devem conversar sobre estratégias de educação que façam sentido para ambos e que sejam colocadas em prática pelos dois, pois “quando é sujeita a informações, instruções, ordens, regras, limites e rotinas que são divergentes, inconsistentes ou contraditórios, a criança cresce sem um referencial capaz de potenciar a sua estruturação e organização psicológica”.
Nos casos de guarda partilhada, “o recurso a planos parentais, que ajudam pais e mães a redefinir como vai ser a vida da criança num novo ciclo de vida”, é também uma das estratégias a ter em conta, defende Ricardo Simões, presidente da direção da Associação Portuguesa para a Igualdade Parental e Direito dos Filhos (igualdadeparental. org). Além disso, a mediação familiar pode ajudar bastante os pais. “Entendemos que as crianças necessitam de mais tempo com os pais e as mães, mas para isso também precisam de instrumentos que otimizem a organização da nova vida daquela família e os planos parentais são fundamentais. São instrumentos ainda muito pouco utilizados, mas que necessitam de começar a ser usados em Portugal”, frisa.
SOLUÇÃO
Não existe uma fórmula mágica e que assente que nem uma luva em todos os casos de guarda partilhada, mas a psicóloga Cláudia Madeira Pereira garante que “é importante que os pais se esforcem por desenvolver práticas educativas consistentes, nomeadamente no que respeita às regras, limites e rotinas, bem como nas consequências que aplicam aos comportamentos da criança/adolescente”. Neste último ponto entram os castigos e, claro, as recompensas, uma forma muito usada pelos pais nestes casos mas que, mais do que conseguir ser o progenitor preferido, pode trazer maus hábitos à criança, que se habitua a ter tudo o que
satisfação das necessidades das crianças e da procura, através da audição ativa da criança, das razões que levam a certos comportamentos inadequados e disruptivos por parte da mesma”.
DESAFIO DA INFORMAÇÃO
Livros, blogues e artigos sobre maternidade e paternidade não são uma novidade, mas o certo é que também não eram vistos como (única) fonte de informação para a educação de uma criança como são agora. O (nem sempre) fantástico mundo da internet trouxe uma nova infinidade de autores, sejam eles ou não entendidos na matéria. Esta é uma realidade transversal a todas as temáticas e nem mesmo a parentalidade escapa. E É AQUI QUE ENTRA O DESAFIO DA INFORMAÇÃO.
O pediatra Mário Cordeiro olha para “a procura incessante de ter uma resposta rápida, pronta e sem esforço” como “um sinal dos tempos”, embora errado, especialmente no que toca à parentalitade. E tem uma explicação:
“Assuntos complexos (e criar um filho, por exemplo, é um deles, a par de todos os desafios sistémicos que se colocam) obrigam a obter informação credível e sucinta, refletir, ponderar, analisar, pensar e, depois, escolher se se aplica ou não e em que medida”.
No que toca a este desafio há dois pontos a destacar. O primeiro, é que muitos pais consomem demasiada informação sobre como educar os filhos, quase numa espécie de procura por um livro de instruções, quando, na verdade, não dão ouvidos aos seus instintos, acabando por nem sempre prestar a devida atenção aos sinais que a criança dá. “Não nos podemos esquecer de que a informação disponível tem um carácter genérico e, quando temos uma (ou mais) dificuldades ou problemas, estes manifestam-se de uma forma muito única e particular de acordo com a nossa história e experiência de vida, as nossas características pessoais, familiares, e, por isso, é sempre benéfico procurar a ajuda de um profissional qualificado”, alerta a psicóloga Cláudia Madeira Pereira.
O outro aspeto deste desafio diz respeito à propagação de ideias nem sempre corretas, especialmente online
– e vem à boleia da enchente diária de informação e da incapacidade de a filtrar. Temos o caso da vacinação, mais concretamente uma recente onda de propaganda à não vacinação. Quando
questionado sobre este assunto, o pediatra Mário Cordeiro defende que a internet “pelo imediatismo, acesso livre de quem coloca o que seja, mentiras e falta de rigor que não é escrutinado”, acaba por ser “um mundo onde é fácil propalar e propagar desinformação, como o caso referido das vacinas. As fake news chegam e vencem, e são imediatamente reproduzidas para mais e mais pessoas que acreditam sem sequer pensarem dois minutos sobre o assunto, apenas porque há teorias da conspiração, facilitismo e se nos derem uma resposta imediata ‘em pílulas’ ficamos prontos para ‘partir para outra’ – em ciência é preciso tempo, calma, observação, análise e saber esperar”. Ainda sobre as vacinas, a psicóloga Cláudia Madeira Pereira defende que a “falta de conhecimento” é a principal culpada. Em alguns casos, os pais “estão tão aflitos, sem saber o que fazer, que acabam por se socorrer de qualquer coisa que lhes devolva um pouco de esperança”. E quem fala em vacinas fala em alimentação, terapias alternativas, métodos de aprendizagem, tudo o que possa, naquele momento, ‘salvar’ os pais de um problema (acreditam eles).
SOLUÇÃO
Esta é, talvez, a solução mais simples. Em primeiro lugar, não acredite em tudo o que lê online e não vá na conversa do ‘resultou com o meu filho, vai resultar com o teu’. Filtrar informação é o passo seguinte e uma forma de o fazer é avaliando o meio em que se lê (site, livro ou imprensa, por exemplo) e quem são os autores (sendo os artigos escritos ou fundamentados por médicos, psicólogos, nutricionistas, etc. os mais credíveis). “Importa que os pais saibam desenvolver o seu pensamento crítico, saibam refletir, questionar e escrutinar as informações, em vez de simplesmente aceitarem e acreditarem naquilo que ouvem, veem ou leem. Importa que saibam pesquisar, não só online mas também noutros meios, junto de fontes credíveis, e saibam confirmar e validar a informação a partir de várias fontes”, aconselha a psicóloga.
DESAFIO DA TECNOLOGIA
Os telemóveis, tablets e computadores entram cada vez mais cedo na vida das crianças e tal acontece porque estão cada vez mais presentes na vida dos pais, que passam o dia online fazendo que estes dispositivos móveis quase pareçam uma extensão do próprio corpo. E É AQUI QUE ENTRA O DESAFIO DA TECNOLOGIA.
É comum dizer que as crianças de hoje nascem já ensinadas a mexer em gadgets, mas Mário Cordeiro diz que isso não passa de um mito e que “é bom tirar da ideia que as crianças de hoje são ‘mais inteligentes’ do que eram. Têm porventura mais oportunidades de exercitar competências e de experimentar o mundo, porque a infância é mais protegida e estimulada”.
O uso quase dependente de gadgets e redes sociais é uma realidade transversal à maioria das famílias portuguesas e que não traz apenas dificuldades na educação, como também sérias consequências nas crianças (os adultos do futuro), que cedo entram no mundo das redes sociais, como se tem assistido com o recente fenómeno do TikTok. “Seguramente teremos adultos mais idiotas, mais superficiais, afundados em vacuidade, sem pensamento estratégico, filosófico, metafísico, espiritual, carentes de contemplação e de estádios endorfínicos. Uma sociedade em que não me revejo e que, francamente, não desejo a ninguém, muito menos às gerações subsequentes, porque acaba por ser uma inversão, pela primeira vez na história, dos desígnios civilizacionais do ser humano e da sua transcendência”, lamenta Mário Cordeiro.
A psicóloga Cláudia Madeira Pereira defende que “é muito importante que os pais estabeleçam regras e limites no uso das tecnologias”. Estas regras e limites, diz, “devem ser flexíveis, ajustados às características e dinâmicas familiares, e estendidos a toda a família. É fundamental que os pais deem o exemplo e modelem os comportamentos que querem ver nos seus filhos”. E é aqui que reside o grande desafio. Esta nova forma de estar dos adultos (menos conversas cara a cara, mais troca de mensagens, menos ligação física) é um novo estilo de vida. E isso vai interferir com a educação de um filho? “Muito! As crianças veem nos pais modelos e exemplos. Se há coisa fantástica que o ser humano tem é a comunicação, não apenas a verbal como a gestual, as microexpressões (que tão bem acompanham os sentimentos), etc. Aliás, o tato e o olfato são os dois sentidos mais apurados do ser humano, em termos de promover sentimentos. Acabar com um ‘cara a cara’ ou ‘olhos nos olhos’ para substituir por emojis é vil, em termos de humanidade”.
SOLUÇÃO
Regra e exemplo. Estes são os dois pilares da educação. Para Cláudia Madeira Pereira, os pais devem criar regras e incluir-se nelas. “Outras recomendações passam por acordar em família, por exemplo, um número máximo de horas de visionamento de televisão por dia, uma determinada hora da noite a partir da qual são desligados os equipamentos tecnológicos, um tempo diário dedicado à família (ex., de diálogo, comunicação, atividades, etc.) sem acesso ou recurso à tecnologia”. No fundo, diz, “os pais devem procurar incentivar o gosto e o interesse dos filhos por outras atividades que não apelem à tecnologia, sendo igualmente importante que os próprios pais expressem e modelem o gosto e o interesse por esse tipo de atividades”. Na mesma linha de pensamento está Mário Cordeiro, que defende que “como tudo, [os pais] devem limitar, ter regras (com exceções e transgressões, claro), e mostrar que a vida deve ser alargada, completa e variada, exatamente porque muita gente já se libertou das amarras essenciais da sobrevivência. Queremos pessoas competentes mas completas e não robôs ou androides. Diria o mesmo de uma criança que não fizesse mais nada ao longo do dia do que brincar com legos ou ler”.