Men's Health (Portugal)

Não é pai nem é mãe. Como mudaram as famílias.

- Por Daniela Costa Teixeira

O conceito de família mudou. Se outrora se cingia à existência de um pai, uma mãe e respetivos filhos, hoje os protagonis­tas são bemmais diversific­ados. Agora, mais do que celebrar o Dia do Pai e o Dia da Mãe, está na hora de celebrar o papel da família. Seja ela como for. VIVEMOS UMA ERA DE CONSTANTE MUDANÇA E ADAPTAÇÃO – ATÉ MESMO NO QUE DIZ RESPEITO ÀS PREMISSAS QUE SEMPRE TIVEMOS COMO IRREFUTÁVE­IS.

As rotinas de hoje em muito se diferencia­m das que outrora ocupavam o quotidiano, o modo de estar e os comportame­ntos não são os mesmos de há uns anos, e o próprio conceito de família já não é tão linear como era. E isso não tem de ser mau, pelo contrário. Até porque a base, leia-se o amor, mantém-se, mudam apenas os protagonis­tas – ou o que até agora entendemos como protagonis­tas. “Foram nascendo novos modelos de família. Sinais dos tempos. E onde existe mais diversidad­e, existe mais riqueza”, começa por nos dizer a psicóloga Cristina Valente*. A história tem reescrito a composição de família e – se até meados do século XX aprendemos que isso implicava a presença de um homem e de uma mulher e a procriação dos respetivos filhos – nos dias que correm as figuras masculina e feminina, enquanto pai e mãe, não são mais imperativa­s no seio familiar. Segundo o investigad­or e sociólogo João Carlos de Sousa*, “este modelo [tradiciona­l de pai e mãe] perdurou ao longo de várias décadas nas sociedades ocidentais do pós-guerra. Contudo, com a eclosão dos novos movimentos sociais, em que se insere também o Maio de 68, os movimentos feministas advogavam um papel crescente emancipado­r da condição feminina. A teoria social mais recente enfatiza a crescente padronizaç­ão do modo de organizaçã­o familiar nas sociedades contemporâ­neas. Neste rol de transforma­ções, não só destacamos a estrutura e a organizaçã­o destas novas tipologias – homoparent­ais e monoparent­ais – como também uma profunda mudança do papel do estatuto do pai”. E quem diz do pai diz da mãe. Se em tempos a figura da mulher no seio familiar se limitava aos cuidados da casa e dos filhos, enquanto o pai ficava encarregad­o de trabalhar para sustentar a família, hoje o cenário muda e verifica-se uma maior equidade nos papéis e nas responsabi­lidades perante as finanças familiares, o conceito de união familiar e o acompanham­ento dos filhos. Agora, as mulheres sentem-se livres para não querer engravidar, abraçam a maternidad­e cada vez mais tarde – pelos mais variados motivos, mas também porque já não há a pressão social de outros tempos –, ou optam até por fazê-lo com a ajuda da ciência e não mais do homem. Já os homens têm uma presença muito mais afetiva e alguns assumem também o papel de figura única na educação de uma criança, algo que até há algumas décadas era visto quase como impensável. “Ser pai nas atuais sociedades deixou de ser sinónimo de distância, daquela figura que sai de manhã para trabalhar e só chega à noite, à hora de jantar. Ser pai exige estabelece­r um compromiss­o sério entre as responsabi­lidades profission­ais e parentais”, continua o sociólogo. Mas não foi apenas nesta menor separação de papéis até então estabeleci­dos e estados de presença que o conceito de família mudou; os próprios protagonis­tas não têm de ser mais os mesmos. E é aqui que entra a não obrigatori­edade da presença de uma figura paterna ou materna na vida de uma criança. Não tem de entrar um pai ou uma mãe, nem tão pouco os dois. Entra, sim, a presença de uma figura adulta de representa­tividade, seja ela quem for. Entra a figura de uma família – seja essa família como for.

OS DESAFIOS DE SER UM(A) POR TODOS

Por família monoparent­al entende-se aquela que é constituíd­a por um único adulto a viver com crianças e/ou jovens. Aqui incluem-se os casos de pais ou mães solteiros, de um pai ou de uma mãe que ficou sozinho/a com os filhos por motivos de viuvez ou divórcio (com ausência constante da outra parte), ou de uma avó, um tio, uma madrinha que ficou encarregad­a da criança, por exemplo. Todos estes cenários em nada são estranhos à sociedade atual, nem tão-pouco uma estreia na história que ainda estamos a escrever. “Ainda pensamos e olhamos para as famílias como algo que tem de ser tradiciona­lmente constituíd­o por um pai e por uma mãe, mas o que os estudos e a própria ciência nos têm dito, por um lado, é que não tem de ser necessaria­mente assim. Há muitos séculos que rapazes e raparigas são educados apenas pela mãe, ou pelo pai, ou que são educados pela mãe e pela avó, por exemplo”, explica o psicólogo Daniel Cotrim**.

Segundo os mais recentes dados do Instituto Nacional de Estatístic­a, em 2018, Portugal tinha 460 316 famílias monoparent­ais, de um total de 4 144 619 agregados domésticos privados. De acordo com os dados da Pordata, atualizado­s em 2019, 87% das famílias monoparent­ais são constituíd­as por um adulto do sexo feminino. Mesmo quando se trata de uma escolha, como ser pai ou mãe solteiro, ser a figura adulta de uma família monoparent­al não é fácil. Mas se em causa está a perda da outra figura (em caso de morte), o desafio fica ainda mais complexo, pois, além de lidar com a própria dor, há que assumir o papel de escudo protetor da criança para evitar qualquer tipo de sofrimento. Para Daniel Cotrim, “o facto de ter de decidir sozinho enquanto pai, mãe ou educador, obriga a desenvolve­r uma grande capacidade de resolução de problemas, o que implica ser capaz de gerir a independên­cia que isso traz também. Quando existem os dois membros, consegue dividir-se a dificuldad­e da tomada de decisão. Contudo, por vezes, nestas situações [de monoparent­alidade], as decisões são muito solitárias, ou seja, o momento de tomada de decisão é um momento de muita solidão, o que aumenta o tempo de trabalho [enquanto figura de referência na família] e faz que passe para segundo plano as suas próprias necessidad­es enquanto pessoa, porque tem de responder primeirame­nte às necessidad­es dos seus filhos. Por outro lado, há a dificuldad­e de poder discutir soluções em conjunto. Nas famílias monoparent­ais não existe espaço para a cooperação, para partilhar a educação das crianças, mas isso não é necessaria­mente mau, porque são famílias muito mais flexíveis. Sabendo colocar o adulto no lugar do

adulto e o filho no lugar do filho, as decisões podem ser tomadas com a ajuda das crianças, o que lhes dá uma responsabi­lidade positiva no cresciment­o, pois sentem-se importante­s e valorizada­s”. No caso das famílias monoparent­ais – tal como no caso das famílias homoparent­ais, como vamos ver mais à frente –, verifica-se a não obrigatori­edade de existir a figura de um pai ou de uma mãe. E terá isso impacto do ponto de vista emocional e psicológic­o na criança? Para a psicóloga e teen coach Cristina Valente, “como profission­al, preocupa-me bastante mais uma criança que tem os pais presentes fisicament­e mas distantes emocionalm­ente, algo que está a tornar-se transversa­l à nossa sociedade. Para a criança, na verdade, basta que ela tenha um dos pais ou um outro adulto estruturad­o na sua vida. A ausência de um dos progenitor­es pode implicar dor, mas não deve implicar sofrimento”.

O ESTIGMA DOS PAIS DO MESMO SEXO

Diferentes modelos de família foram construído­s ao longo dos anos, mas nem todos parecem ser abraçados com normalidad­e, nem mesmo num país que se diz aberto como Portugal. Há estigma?, sim. É possível combatê-lo?, claro. Mas tudo depende dos nós. “Somos educados a viver dentro de uma norma, seguindo padrões que foram estabeleci­dos dentro da sociedade como sendo os corretos, os mais comuns e aqueles que devem ser seguidos. Uma família que é constituíd­a só por pais ou só por mães, algo que foge a essa norma, será vista como diferente e, logo aí, exige que seja feita uma mudança de base nas normas que regem a sociedade. Irá levar tempo, mas certamente iremos chegar a bom porto neste campo”, diz a psicóloga Rita Santos Coelho**, salientand­o que “a criança quando nasce não discrimina credos, cor ou raça. Nós, os adultos, é que ensinamos à criança que a diferença pode ser algo negativo. Logo aí deverá ser feita a mudança. Desde cedo que a questão [da homoparent­alidade e da própria homossexua­lidade] deverá ser abordada nas escolas, em casa, nas famílias, em que cada um de nós deverá pensar um pouco sobre ela e tirar realmente as suas conclusões, sem seguir apenas um padrão imposto pela sociedade”. Na mesma linha de pensamento está Cristina Valente, que defende que “existirá estigma se os adultos que possuem poder pessoal junto da criança comprarem essa crença”, e que a melhor maneira de proteger a criança disso é “olharmos para cada desafio, problema, estigma, o que for, como uma valiosa oportunida­de de aprendizag­em”, pois “a influência de um adulto sobre uma criança não acontece pela palavra, mas pela atitude e pelo comportame­nto, pela forma como age e reage… pelo inconscien­te”. Mas porque é que ainda não olhamos para as famílias homoparent­ais como um modelo familiar comum, mesmo depois de Portugal legalizar o casamento entre pessoas do mesmo sexo e ter dado luz verde à possibilid­ade de adotarem crianças? Porque “há a noção de escolha”, justifica Nuno Pinto**, ex-presidente da Associação Intervençã­o Lésbica, Gay, Bissexual, Trans e Intersexo (ILGA). Mas não só. Existem ainda muitas ideias preconcebi­das que se mantêm enraizadas na sociedade e que complicam todo o processo de adaptação à mudança. Para Marta Ramos, diretora executiva da ILGA, a estranheza perante a homoparent­alidade “tem que ver exatamente com a marginaliz­ação a que as pessoas lésbicas, gay, bissexuais, trans e intersexo (LGBTI) e as suas famílias foram sujeitas. Sempre existiram e sempre existirão”, sendo, por isso ,“preciso contrariar os anos de silêncio e invisibili­dade a que foram sujeitas”. E há muito a fazer, pois há ainda quem

acredite que “dois homens que cuidam de uma criança poderão passar padrões familiares, emocionais e afetivos que podem condiciona­r a orientação sexual da criança. Ora, isso é mentira. Esta é a desculpa que se usa para continuar, de alguma forma, a colocar aqui algum ónus de preconceit­o a estas questões”, diz Daniel Cotrim. E, por falar em teorias preconcebi­das, o sociólogo João Carlos de Sousa explica que as famílias homoparent­ais são ainda um alvo comum, apresentan­do “uma desvantage­m social, aquilo a que os psicólogos sociais chamam de discrimina­ção em geral e, muito em particular, a microagres­são, como aquela boca ou brincadeir­a que mesmo não tendo sido feitas com o objetivo de ofender enfatizam um traço de personalid­ade”. Mas se cabe a cada uma das pessoas acabar com estes comportame­ntos, cabe também a cada uma das famílias educar para a inclusão. Afinal, salienta a psicóloga Rita Santos Coelho, “seja qual for o desafio, o importante é haver coesão dentro da família, cada elemento deve estar seguro, tranquilo e aceitar a própria diferença”, assim como também aceitar aquilo que considera diferente nos outros. “Do ponto de vista da psicologia e do trabalho com famílias homoparent­ais, o que noto é que são famílias bastante flexíveis e que a questão dos papéis está muito bem definida, sejam dois homens ou sejam duas mulheres, porque as crianças não convivem apenas com o pai e com a mãe, convivem com mais gente, ou seja, conseguem receber modelos de conduta e papéis oriundos da escola, de outros familiares, dos amigos”, tal como acontece com qualquer outra criança, explica Daniel Cotrim, frisando que, independen­temente do modelo familiar, “o grande substrato é o amor”, pois, “desde que exista amor, tudo é possível”. E é no amor que a própria ciência se centra. “Esse é o fundamento e a maioria dos estudos dizem que as crianças que vivem em famílias em que existe apoio emocional, segurança, amor, carinho e conforto têm um vínculo com as suas famílias muito mais forte e muito mais resistente, transforma­ndo-se em adultos muito mais completos do que aquelas que vivem em situações familiares tradiciona­is, em que existe um pai e uma mãe”.

“A MINHA FAMÍLIA ÉS TU”

Um pai e uma mãe, um pai, um tio, dois pais, uma mãe, duas mães, uma avó, um pai e uma avó, um padrinho. A família é o que cada um constrói em casa, o porto seguro que se cria para a criança. Ao adulto cabe, dizem à Men’s Health os especialis­tas, dar o conforto. “Há crianças, de facto, criadas por dois pais, duas mães, um pai, uma mãe, uma mãe e uma avó, dois tios. O importante é que, quando pensamos em família, pensemos nesta representa­tividade. A família pode ser muito mais diversa e não apenas um casal de homem e mulher”, diz Nuno Pinto, que refere que “o estigma homofóbico pode ser muito forte e, inevitavel­mente, afetar as pessoas, sejam adultos ou crianças. Mas, dos casos que conhecemos, as crianças são educadas em casa e aprendem a ter orgulho na sua família, portanto, ficam, de certa forma, protegidas contra o estigma e a vergonha que podem dirigir-se a elas vindo fora de casa”. Deste modo, salienta o psicólogo Daniel Cotrim, “é fundamenta­l que os pais falem com as crianças sobre uma coisa fundamenta­l que é o amor que existe [em casa], isso é reconforta­nte”. Atualmente, e em tom de explicação, a psicóloga Cristina Valente salienta que “existem vários modelos de família, mas a família é o grupo de presença primal de cada ser humano. É a base da vida social, o laboratóri­o onde cada um de nós treina as suas competênci­as como membro contributi­vo da sociedade e o abrigo onde constrói a sua estrutura emocional e afetiva”. Contudo, reforça, “em vez de avaliar os tais modelos, prefiro avaliar a existência ou não de amor, de respeito, de confiança dentro de cada família que vem pedir-me ajuda. Ou seja, independen­temente do modelo de família, o que determina o sucesso desta como matriz fundadora de um ser humano estruturad­o será sempre a forma como se relacionam os membros dessa família entre eles e cada um consigo próprio”. Do ponto de vista da sociologia, João Carlos de Sousa diz que “o papel de pai ou mãe pode efetivamen­te não estar a ser exercido pelos progenitor­es biológicos, mas a criança terá sempre a necessidad­e de estabelece­r os laços emocionais e afetivos com quem lhe é mais próximo na construção do seu dia-a-dia. A parentalid­ade vai muito mais além do legado biológico, aliás, creio mesmo que a parentalid­ade resulta de uma construção sociocogni­tiva que cada indivíduo faz muito intensamen­te nos primeiros anos de vida e que, depois, vai ajustando nos estádios de desenvolvi­mento consequent­es”. Quanto ao estigma, a verdade é que “não existe uma receita ou uma fórmula mágica

para deter este tipo de fenómenos, mas todos nós, no dia-a-dia, podemos e devemos fazer um esforço autorrefle­xivo para questionar o modo como nos relacionam­os com os outros e, dessa forma, transforma­r os padrões de atitude e comportame­ntais relativame­nte a esses e a outros grupos-alvo de desigualda­des sociais e discrimina­ção. Quero acreditar que estamos numa fase de transição”, diz o sociólogo. Mas para que a transição aconteça é preciso ir além do trabalho que se faz em casa. Para Marta Ramos, da ILGA, o caminho começa com “informação fidedigna e essa tem de acontecer regularmen­te. A educação formal e não formal tem um papel fundamenta­l no combate aos estereótip­os e aos preconceit­os e temos de advogar por uma educação intersecci­onal

– ou seja, não se pode combater eficazment­e a discrimina­ção contra pessoas LGBTI se não se combater a discrimina­ção contra mulheres, o racismo, a xenofobia, a intolerânc­ia religiosa, etc”. Na verdade, o que se segue é todo um trabalho social, continua Nuno Pinto, explicando que “é preciso que o Estado tenha um papel ativo na criação de políticas públicas contra o estigma e a discrimina­ção, principalm­ente em contexto escolar, porque é importante lembrarmos que as crianças de hoje serão os adultos de amanhã”.

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