Não é pai nem é mãe. Como mudaram as famílias.
O conceito de família mudou. Se outrora se cingia à existência de um pai, uma mãe e respetivos filhos, hoje os protagonistas são bemmais diversificados. Agora, mais do que celebrar o Dia do Pai e o Dia da Mãe, está na hora de celebrar o papel da família. Seja ela como for. VIVEMOS UMA ERA DE CONSTANTE MUDANÇA E ADAPTAÇÃO – ATÉ MESMO NO QUE DIZ RESPEITO ÀS PREMISSAS QUE SEMPRE TIVEMOS COMO IRREFUTÁVEIS.
As rotinas de hoje em muito se diferenciam das que outrora ocupavam o quotidiano, o modo de estar e os comportamentos não são os mesmos de há uns anos, e o próprio conceito de família já não é tão linear como era. E isso não tem de ser mau, pelo contrário. Até porque a base, leia-se o amor, mantém-se, mudam apenas os protagonistas – ou o que até agora entendemos como protagonistas. “Foram nascendo novos modelos de família. Sinais dos tempos. E onde existe mais diversidade, existe mais riqueza”, começa por nos dizer a psicóloga Cristina Valente*. A história tem reescrito a composição de família e – se até meados do século XX aprendemos que isso implicava a presença de um homem e de uma mulher e a procriação dos respetivos filhos – nos dias que correm as figuras masculina e feminina, enquanto pai e mãe, não são mais imperativas no seio familiar. Segundo o investigador e sociólogo João Carlos de Sousa*, “este modelo [tradicional de pai e mãe] perdurou ao longo de várias décadas nas sociedades ocidentais do pós-guerra. Contudo, com a eclosão dos novos movimentos sociais, em que se insere também o Maio de 68, os movimentos feministas advogavam um papel crescente emancipador da condição feminina. A teoria social mais recente enfatiza a crescente padronização do modo de organização familiar nas sociedades contemporâneas. Neste rol de transformações, não só destacamos a estrutura e a organização destas novas tipologias – homoparentais e monoparentais – como também uma profunda mudança do papel do estatuto do pai”. E quem diz do pai diz da mãe. Se em tempos a figura da mulher no seio familiar se limitava aos cuidados da casa e dos filhos, enquanto o pai ficava encarregado de trabalhar para sustentar a família, hoje o cenário muda e verifica-se uma maior equidade nos papéis e nas responsabilidades perante as finanças familiares, o conceito de união familiar e o acompanhamento dos filhos. Agora, as mulheres sentem-se livres para não querer engravidar, abraçam a maternidade cada vez mais tarde – pelos mais variados motivos, mas também porque já não há a pressão social de outros tempos –, ou optam até por fazê-lo com a ajuda da ciência e não mais do homem. Já os homens têm uma presença muito mais afetiva e alguns assumem também o papel de figura única na educação de uma criança, algo que até há algumas décadas era visto quase como impensável. “Ser pai nas atuais sociedades deixou de ser sinónimo de distância, daquela figura que sai de manhã para trabalhar e só chega à noite, à hora de jantar. Ser pai exige estabelecer um compromisso sério entre as responsabilidades profissionais e parentais”, continua o sociólogo. Mas não foi apenas nesta menor separação de papéis até então estabelecidos e estados de presença que o conceito de família mudou; os próprios protagonistas não têm de ser mais os mesmos. E é aqui que entra a não obrigatoriedade da presença de uma figura paterna ou materna na vida de uma criança. Não tem de entrar um pai ou uma mãe, nem tão pouco os dois. Entra, sim, a presença de uma figura adulta de representatividade, seja ela quem for. Entra a figura de uma família – seja essa família como for.
OS DESAFIOS DE SER UM(A) POR TODOS
Por família monoparental entende-se aquela que é constituída por um único adulto a viver com crianças e/ou jovens. Aqui incluem-se os casos de pais ou mães solteiros, de um pai ou de uma mãe que ficou sozinho/a com os filhos por motivos de viuvez ou divórcio (com ausência constante da outra parte), ou de uma avó, um tio, uma madrinha que ficou encarregada da criança, por exemplo. Todos estes cenários em nada são estranhos à sociedade atual, nem tão-pouco uma estreia na história que ainda estamos a escrever. “Ainda pensamos e olhamos para as famílias como algo que tem de ser tradicionalmente constituído por um pai e por uma mãe, mas o que os estudos e a própria ciência nos têm dito, por um lado, é que não tem de ser necessariamente assim. Há muitos séculos que rapazes e raparigas são educados apenas pela mãe, ou pelo pai, ou que são educados pela mãe e pela avó, por exemplo”, explica o psicólogo Daniel Cotrim**.
Segundo os mais recentes dados do Instituto Nacional de Estatística, em 2018, Portugal tinha 460 316 famílias monoparentais, de um total de 4 144 619 agregados domésticos privados. De acordo com os dados da Pordata, atualizados em 2019, 87% das famílias monoparentais são constituídas por um adulto do sexo feminino. Mesmo quando se trata de uma escolha, como ser pai ou mãe solteiro, ser a figura adulta de uma família monoparental não é fácil. Mas se em causa está a perda da outra figura (em caso de morte), o desafio fica ainda mais complexo, pois, além de lidar com a própria dor, há que assumir o papel de escudo protetor da criança para evitar qualquer tipo de sofrimento. Para Daniel Cotrim, “o facto de ter de decidir sozinho enquanto pai, mãe ou educador, obriga a desenvolver uma grande capacidade de resolução de problemas, o que implica ser capaz de gerir a independência que isso traz também. Quando existem os dois membros, consegue dividir-se a dificuldade da tomada de decisão. Contudo, por vezes, nestas situações [de monoparentalidade], as decisões são muito solitárias, ou seja, o momento de tomada de decisão é um momento de muita solidão, o que aumenta o tempo de trabalho [enquanto figura de referência na família] e faz que passe para segundo plano as suas próprias necessidades enquanto pessoa, porque tem de responder primeiramente às necessidades dos seus filhos. Por outro lado, há a dificuldade de poder discutir soluções em conjunto. Nas famílias monoparentais não existe espaço para a cooperação, para partilhar a educação das crianças, mas isso não é necessariamente mau, porque são famílias muito mais flexíveis. Sabendo colocar o adulto no lugar do
adulto e o filho no lugar do filho, as decisões podem ser tomadas com a ajuda das crianças, o que lhes dá uma responsabilidade positiva no crescimento, pois sentem-se importantes e valorizadas”. No caso das famílias monoparentais – tal como no caso das famílias homoparentais, como vamos ver mais à frente –, verifica-se a não obrigatoriedade de existir a figura de um pai ou de uma mãe. E terá isso impacto do ponto de vista emocional e psicológico na criança? Para a psicóloga e teen coach Cristina Valente, “como profissional, preocupa-me bastante mais uma criança que tem os pais presentes fisicamente mas distantes emocionalmente, algo que está a tornar-se transversal à nossa sociedade. Para a criança, na verdade, basta que ela tenha um dos pais ou um outro adulto estruturado na sua vida. A ausência de um dos progenitores pode implicar dor, mas não deve implicar sofrimento”.
O ESTIGMA DOS PAIS DO MESMO SEXO
Diferentes modelos de família foram construídos ao longo dos anos, mas nem todos parecem ser abraçados com normalidade, nem mesmo num país que se diz aberto como Portugal. Há estigma?, sim. É possível combatê-lo?, claro. Mas tudo depende dos nós. “Somos educados a viver dentro de uma norma, seguindo padrões que foram estabelecidos dentro da sociedade como sendo os corretos, os mais comuns e aqueles que devem ser seguidos. Uma família que é constituída só por pais ou só por mães, algo que foge a essa norma, será vista como diferente e, logo aí, exige que seja feita uma mudança de base nas normas que regem a sociedade. Irá levar tempo, mas certamente iremos chegar a bom porto neste campo”, diz a psicóloga Rita Santos Coelho**, salientando que “a criança quando nasce não discrimina credos, cor ou raça. Nós, os adultos, é que ensinamos à criança que a diferença pode ser algo negativo. Logo aí deverá ser feita a mudança. Desde cedo que a questão [da homoparentalidade e da própria homossexualidade] deverá ser abordada nas escolas, em casa, nas famílias, em que cada um de nós deverá pensar um pouco sobre ela e tirar realmente as suas conclusões, sem seguir apenas um padrão imposto pela sociedade”. Na mesma linha de pensamento está Cristina Valente, que defende que “existirá estigma se os adultos que possuem poder pessoal junto da criança comprarem essa crença”, e que a melhor maneira de proteger a criança disso é “olharmos para cada desafio, problema, estigma, o que for, como uma valiosa oportunidade de aprendizagem”, pois “a influência de um adulto sobre uma criança não acontece pela palavra, mas pela atitude e pelo comportamento, pela forma como age e reage… pelo inconsciente”. Mas porque é que ainda não olhamos para as famílias homoparentais como um modelo familiar comum, mesmo depois de Portugal legalizar o casamento entre pessoas do mesmo sexo e ter dado luz verde à possibilidade de adotarem crianças? Porque “há a noção de escolha”, justifica Nuno Pinto**, ex-presidente da Associação Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual, Trans e Intersexo (ILGA). Mas não só. Existem ainda muitas ideias preconcebidas que se mantêm enraizadas na sociedade e que complicam todo o processo de adaptação à mudança. Para Marta Ramos, diretora executiva da ILGA, a estranheza perante a homoparentalidade “tem que ver exatamente com a marginalização a que as pessoas lésbicas, gay, bissexuais, trans e intersexo (LGBTI) e as suas famílias foram sujeitas. Sempre existiram e sempre existirão”, sendo, por isso ,“preciso contrariar os anos de silêncio e invisibilidade a que foram sujeitas”. E há muito a fazer, pois há ainda quem
acredite que “dois homens que cuidam de uma criança poderão passar padrões familiares, emocionais e afetivos que podem condicionar a orientação sexual da criança. Ora, isso é mentira. Esta é a desculpa que se usa para continuar, de alguma forma, a colocar aqui algum ónus de preconceito a estas questões”, diz Daniel Cotrim. E, por falar em teorias preconcebidas, o sociólogo João Carlos de Sousa explica que as famílias homoparentais são ainda um alvo comum, apresentando “uma desvantagem social, aquilo a que os psicólogos sociais chamam de discriminação em geral e, muito em particular, a microagressão, como aquela boca ou brincadeira que mesmo não tendo sido feitas com o objetivo de ofender enfatizam um traço de personalidade”. Mas se cabe a cada uma das pessoas acabar com estes comportamentos, cabe também a cada uma das famílias educar para a inclusão. Afinal, salienta a psicóloga Rita Santos Coelho, “seja qual for o desafio, o importante é haver coesão dentro da família, cada elemento deve estar seguro, tranquilo e aceitar a própria diferença”, assim como também aceitar aquilo que considera diferente nos outros. “Do ponto de vista da psicologia e do trabalho com famílias homoparentais, o que noto é que são famílias bastante flexíveis e que a questão dos papéis está muito bem definida, sejam dois homens ou sejam duas mulheres, porque as crianças não convivem apenas com o pai e com a mãe, convivem com mais gente, ou seja, conseguem receber modelos de conduta e papéis oriundos da escola, de outros familiares, dos amigos”, tal como acontece com qualquer outra criança, explica Daniel Cotrim, frisando que, independentemente do modelo familiar, “o grande substrato é o amor”, pois, “desde que exista amor, tudo é possível”. E é no amor que a própria ciência se centra. “Esse é o fundamento e a maioria dos estudos dizem que as crianças que vivem em famílias em que existe apoio emocional, segurança, amor, carinho e conforto têm um vínculo com as suas famílias muito mais forte e muito mais resistente, transformando-se em adultos muito mais completos do que aquelas que vivem em situações familiares tradicionais, em que existe um pai e uma mãe”.
“A MINHA FAMÍLIA ÉS TU”
Um pai e uma mãe, um pai, um tio, dois pais, uma mãe, duas mães, uma avó, um pai e uma avó, um padrinho. A família é o que cada um constrói em casa, o porto seguro que se cria para a criança. Ao adulto cabe, dizem à Men’s Health os especialistas, dar o conforto. “Há crianças, de facto, criadas por dois pais, duas mães, um pai, uma mãe, uma mãe e uma avó, dois tios. O importante é que, quando pensamos em família, pensemos nesta representatividade. A família pode ser muito mais diversa e não apenas um casal de homem e mulher”, diz Nuno Pinto, que refere que “o estigma homofóbico pode ser muito forte e, inevitavelmente, afetar as pessoas, sejam adultos ou crianças. Mas, dos casos que conhecemos, as crianças são educadas em casa e aprendem a ter orgulho na sua família, portanto, ficam, de certa forma, protegidas contra o estigma e a vergonha que podem dirigir-se a elas vindo fora de casa”. Deste modo, salienta o psicólogo Daniel Cotrim, “é fundamental que os pais falem com as crianças sobre uma coisa fundamental que é o amor que existe [em casa], isso é reconfortante”. Atualmente, e em tom de explicação, a psicóloga Cristina Valente salienta que “existem vários modelos de família, mas a família é o grupo de presença primal de cada ser humano. É a base da vida social, o laboratório onde cada um de nós treina as suas competências como membro contributivo da sociedade e o abrigo onde constrói a sua estrutura emocional e afetiva”. Contudo, reforça, “em vez de avaliar os tais modelos, prefiro avaliar a existência ou não de amor, de respeito, de confiança dentro de cada família que vem pedir-me ajuda. Ou seja, independentemente do modelo de família, o que determina o sucesso desta como matriz fundadora de um ser humano estruturado será sempre a forma como se relacionam os membros dessa família entre eles e cada um consigo próprio”. Do ponto de vista da sociologia, João Carlos de Sousa diz que “o papel de pai ou mãe pode efetivamente não estar a ser exercido pelos progenitores biológicos, mas a criança terá sempre a necessidade de estabelecer os laços emocionais e afetivos com quem lhe é mais próximo na construção do seu dia-a-dia. A parentalidade vai muito mais além do legado biológico, aliás, creio mesmo que a parentalidade resulta de uma construção sociocognitiva que cada indivíduo faz muito intensamente nos primeiros anos de vida e que, depois, vai ajustando nos estádios de desenvolvimento consequentes”. Quanto ao estigma, a verdade é que “não existe uma receita ou uma fórmula mágica
para deter este tipo de fenómenos, mas todos nós, no dia-a-dia, podemos e devemos fazer um esforço autorreflexivo para questionar o modo como nos relacionamos com os outros e, dessa forma, transformar os padrões de atitude e comportamentais relativamente a esses e a outros grupos-alvo de desigualdades sociais e discriminação. Quero acreditar que estamos numa fase de transição”, diz o sociólogo. Mas para que a transição aconteça é preciso ir além do trabalho que se faz em casa. Para Marta Ramos, da ILGA, o caminho começa com “informação fidedigna e essa tem de acontecer regularmente. A educação formal e não formal tem um papel fundamental no combate aos estereótipos e aos preconceitos e temos de advogar por uma educação interseccional
– ou seja, não se pode combater eficazmente a discriminação contra pessoas LGBTI se não se combater a discriminação contra mulheres, o racismo, a xenofobia, a intolerância religiosa, etc”. Na verdade, o que se segue é todo um trabalho social, continua Nuno Pinto, explicando que “é preciso que o Estado tenha um papel ativo na criação de políticas públicas contra o estigma e a discriminação, principalmente em contexto escolar, porque é importante lembrarmos que as crianças de hoje serão os adultos de amanhã”.