É a nutrigenética de fiar? Os especialistas dizem.
O conhecimento do perfil genético não é uma novidade na medicina e começa a ganhar cada vez mais destaque no mundo da nutrição. A reação dos genes à alimentação tem o nome de nutrigenética, mas as dúvidas quanto à sua prática rotineira parecem querer tira
Todos estes aspetos encaixam nas preocupações de quem procura um estilo de vida saudável e apresentam, para muitos, um denominador comum para a sua concretização. Falamos, claro, da alimentação, o combustível que a máquina que é o corpo humano precisa para funcionar corretamente durante o máximo tempo possível.
A importância da alimentação para a saúde e o bem-estar é um ponto assente na medicina, mas o erro pode estar quando depositamos toda a esperança somente naquilo que pomos no prato. É assim tão linear a relação entre o que comemos e as doenças que vamos ter? “Não é tão linear. A nossa saúde resulta de vários determinantes e a alimentação é apenas um deles”, começa por nos dizer David Rodrigues, médico, professor na NOVA Medical School e coordenador do projeto Evidentia Médica.
Numa altura em que os testes de nutrigenética – muitas vezes comercializados como a dieta do ADN – estão nas bocas do mundo, a Men’s Health quis perceber até que ponto podemos depositar toda a nossa fé na genética e no que ela diz que temos ou não de comer. Mas, primeiro, vamos a uma pequena lição.
O QUE É A NUTRIGENÉTICA?
Segundo Miguel Brito, doutorado em Biologia e professor na Escola Superior de Tecnologia da Saúde de Lisboa, a nutrigenética é a ciência que “avalia a associação entre a variabilidade genética do indivíduo e a resposta à nutrição”.
Ora, na perspetiva da nutrigenética, “o conceito de que todos nós teremos de ter obrigatoriamente a mesma alimentação não é uma realidade, a resposta de cada um de nós perante os alimentos e os fatores ambientais não é igual e poderá haver nutrientes que são vantajosos para umas pessoas pelo seu perfil genético, mas para outras não”. Na prática, a nutrigenética diz-nos como os nossos genes reagem aos alimentos (ao contrário da nutrigenómica, que diz como aquilo que comemos pode influenciar a expressão dos nossos genes).
“Os defensores das dietas baseadas no ADN sugerem que os indivíduos metabolizam os macronutrientes de forma diferente, em função da sua composição genética. No fundo, o plano nutricional terá como base os princípios de uma alimentação saudável, mas adaptado à resposta do organismo perante a presença de determinados alimentos”, diz Micaela Morgado, mestre em Nutrição Clínica e investigadora em Atividade Física e Saúde na Faculdade de Desporto da Universidade do Porto. E para chegar a tal plano alimentar é necessário fazer um teste de nutrigenética (com recolha de saliva, por exemplo), do qual falaremos mais à frente.
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PORQUE É QUE ESTÁ NA MODA?
A resposta aqui é simples: toda e qualquer dieta que prometa resultados duradouros e altamente eficazes – especialmente se não se focar apenas na perda de peso, mas, à mistura, conseguir prevenir umas quantas doenças – facilmente cai nas graças de qualquer pessoa. E a nutrigenética chama à atenção porque ao analisar a forma como os nossos genes reagem ao que comemos é capaz de perceber o que pode ou não estar a fazer mal e como cada alimento (ou conjunto de alimentos e nutrientes) poderá ter uma implicação na nossa saúde.
Para Tiago Almeida, nutricionista e diretor da Clínica de Nutrição (Maia), que realiza “testes de predisposição genética associados à alimentação”, não é possível alterar a genética “através da modelação da alimentação, o que conseguimos fazer, sim, é compreender o perfil individual de cada indivíduo, as suas reações aos nutrientes e ao ambiente, e moldar a alimentação a essas características, diminuindo riscos de complicações, potenciando as características positivas”. No entanto, e ao contrário do que muitas pessoas pensam, mais do que encontrar a dieta perfeita ou a solução para todos os males, “a principal vantagem” em investigar a genética de cada pessoa relaciona-se com a “possibilidade de estabelecer relações entre genes e nutrientes na predisposição para a ocorrência de determinado tipo de doenças ou a capacidade de estar ‘protegido’ relativamente a outras patologias”, diz Micaela Morgado. A mesma linha de pensamento tem o professor Miguel Brito, que defende que “a relação entre os genes e os nutrientes, e vice-versa, é importante por vários motivos”, mas isso não quer dizer que faça sentido qualquer pessoa submeter-se a este teste (e a toda a infinidade de informação complexa que o resultado irá trazer), mas já lá vamos.
ALIMENTAÇÃO & CIA.
Embora o marketing de guerrilha nos leve a ver a dieta baseada na genética como a forma mais eficaz de encontrar a dieta perfeita (seja lá o que for), o certo é que “a genética é apenas responsável por uma pequena parte da nossa resposta aos alimentos”, afirma o médico David Rodrigues, deixando, porém, claro que “é bastante consensual que dormir bem, fazer exercício e evitar excessos de açúcar, álcool e comida processada tem efeitos benéficos na nossa saúde. A alimentação é também uma variável importante nesta equação e terá de ser individualizada no sentido em que deve respeitar os ritmos, as preferências, os contextos e as culturas de cada pessoa. Não há uma dieta universal”. Contudo, na hora de olharmos para a saúde e a longevidade do ser humano, há que pensar para lá da alimentação, e são muitos os fatores que contribuem para o bem-estar físico e emocional e para o aparecimento e a prevenção de doenças. David Rodrigues dá apenas alguns exemplos: “O local onde vivemos, o ambiente à nossa volta, o nosso trabalho e os nossos rendimentos, o nível de educação, o relacionamento com amigos e familiares, o acesso a cuidados de saúde ou ainda o nosso estilo de vida, ou seja, o que comemos, o exercício que fazemos, os tóxicos que consumimos, com o tabaco e o álcool em grande destaque”. No fundo, lamenta, “reduzir todos esses fatores a uma determinação genética das doenças é errado, mais ainda porque conseguimos controlar tudo isso com a alimentação”.
Neste sentido, a nutricionista Ana Sofia Guerra, do Clube VII, em Lisboa, defende que o conhecimento da “interação entre os genes e os nutrientes pode ser importante para a prevenção de algumas doenças”, mas devemos ter ainda em conta “a influência do meio envolvente sobre o indivíduo [epigenética]”. Também Carla Guilhas, bióloga e especialista em medicina preventiva personalizada da SYNLAB (clínica que realiza o teste de genética nutrihealth), defende que o estilo de vida é determinante para o bem-estar e a longevidade de cada pessoa, tendo efeitos que variam de indivíduo para indivíduo e de acordo com cada fase da sua vida. “Os nossos genes não mudam. A genética é a impressão digital, não muda ao longo da vida, mas a sua sensibilidade depende do meio ambiente”, frisa.
NUTRIGENÉTICA É MAIS DO QUE A DIETA PERFEITA
O QUE DIZ A CIÊNCIA?
Miguel Brito, docente no ISCTE, não olha para a nutrigenética como o caminho para a dieta perfeita, nem sequer a vê como uma presença frequente na rotina médica, nem mesmo David Rodrigues, que diz que “há consenso de que esta é uma área essencialmente da investigação e que ainda não está pronta para a aplicação clínica”. E isto porque “a investigação séria e com métodos adequados (o que infelizmente nem sempre acontece) na nutrigenética não demonstraram resultados que permitam uma aplicação direta na área clínica de forma generalizada a qualquer pessoa”, alerta. E para justificar, o médico fala-nos de dois estudos recentes: o Predict e o Dietfits*. O primeiro mostra que gémeos geneticamente idênticos tiveram respostas diferentes a alimentos, sendo certo que “outros fatores, como hábitos de sono, exercício, stress e até o microbioma intestinal, parecem desempenhar um papel muito maior nas nossas respostas individuais à dieta”, e o segundo conclui, depois de analisar mais de 600 adultos com excesso de peso, “que não houve diferença significativa na perda de peso em 12 meses entre as dietas e que nem o padrão genótipo nem a secreção basal de insulina foram associados aos efeitos da dieta na perda de peso”.
O médico e docente da NOVA Medical School não tem dúvidas de que “estes estudos põem completamente de lado a utilidade de testes genéticos que tentem desenhar dietas baseadas exclusivamente na nossa genética. É muito mais complexo do que os nossos genes. É redutor limitar a dieta a um teste genético”. Porém, ressalva, a nutrigenética “é uma área legítima e necessária de investigação clínica. Da mesma forma que hoje temos quimioterapia altamente direcionada a determinadas células que apresentam determinados genes, ou da mesma forma que começamos a entender que diferentes indivíduos metabolizam e respondem de forma diferente aos medicamentos, o caminho da investigação clínica na genética deve continuar a ser feito de forma a personalizar cada vez mais a medicina, seja através da identificação de riscos individuais, da personalização de alvos terapêuticos ou no ajuste individual de comportamentos”.
Para já, reforça o professor Miguel Brito, todas as atenções deste tipo de testes genéticos estão centradas na saúde e “a nutrigética, tal como a farmacogenética, pode fazer sentido na rotina médica”, mas não de uma forma generalizada – muito menos para fins de dietas milagrosas. Diz o especialista que este ramo de avaliação pode ser bastante benéfico para casos concretos, os chamados subgrupos que partilham semelhanças no perfil genético. “As pessoas têm de perceber que os testes são importantes em caso de patologias, mas não podemos querer generalizar. Se a pessoa é saudável, tem uma alimentação saudável, não faz sentido [submeter-se a esta análise]”.
PERIGOSA CURIOSIDADE E FALTA DE INFORMAÇÃO
Uma simples pesquisa no Google sobre testes de nutrigenética leva-nos a milhares de resultados (direta ou indiretamente relacionados com o tema). Numa primeira e superficial análise, isso poderia levar-nos a crer de que se trata de uma abordagem da nutrição já normalizada e até comum em consultório. Mas não. Segundo Miguel Brito, “do ponto de vista de investigação, é uma área com imenso interesse e imenso desenvolvimento. Se me perguntar se há muita coisa que efetivamente tenha provado que seja passível de ser utilizado numa rotina [clínica], não, não há. Há, sim, algumas ofertas – especialmente na internet e a nível internacional – em que é preciso ter cuidado e perceber até que ponto são um pouco de banha da cobra. Não quer dizer que os resultados não sejam verdadeiros, as associações é que ainda são muito ténues para serem aplicadas no dia-a-dia. Se estamos a pensar num diagnóstico mais específico, como uma intolerância à lactose, aí, sim, já há dados suficientes que possam ser utilizados. O problema é que, por vezes, há outros testes que são mais baratos e que por vezes não há necessidade do ponto de vista de rotina. Daí, se calhar, também o próprio Serviço Nacional de Saúde ainda não os ter introduzido”.
Os testes de nutrigenética estão mais baratos – embora custem cerca de 300 euros –, mas o dinheiro não parece ser um problema. “O que a lei portuguesa e a lei europeia dizem é que estes testes só podem ser feitos em âmbitos clínicos ou pedidos por uma equipa [médica]. O que me assusta é a facilidade que as pessoas
MAISDOQUE OS GENES, OUTROS FATORES TÊMIMPACTO
têm, se tiverem recursos económicos, de mandar uma amostra [de saliva, por exemplo] pela internet para outros países, mas depois não têm literacia para interpretar os dados”, alerta Miguel Brito.
O nutricionista Tiago Almeida lamenta que, “infelizmente, exista ainda muita desinformação sobre o assunto, e também muitas dietas não sustentadas, do ponto de vista científico, com restrições desadequadas. É extremamente importante procurar um local de confiança e creditado para fazer a avaliação genética, que deverá sempre ser prescrita por um médico”. Na Clínica da Nutrição, da qual é diretor clínico, o trabalho é realizado “com um laboratório de referência, que compara o ADN individual com a base de dados internacional, que está em constante atualização. São avaliadas dezenas de marcadores específicos e é construído um relatório personalizado, tendo em conta a informação relacionada com o risco de obesidade, doenças associadas à alimentação, resposta à ingestão de determinados grupos nutricionais, etc.”. Quando questionado sobre a fiabilidade dos testes, Tiago Almeida defende que “sendo a área da nutrição e genética muito recente, é possível que haja algum aproveitamento comercial em locais menos próprios. Cabe à pessoa procurar um local de referência e credibilidade para escolher fazer os seus testes genéticos”. Ainda no que diz respeito à credibilidade e à interpretação dos dados, reforça Miguel Brito, “temos profissionais credenciados para a parte laboratorial, a questão é que a análise desta informação é tão vasta e as pessoas vão ter acesso a um conjunto de informação que não sabem interpretar”, especialmente se a fizerem por conta própria – encomendados online e sem qualquer validação médica.
ORDEM DOS NUTRICIONISTAS DE OLHO NA TENDÊNCIA
Para Carla Guilhas, a nutrigenética deve ser vista como uma prática preventiva e, por isso, é uma “mais-valia”, mas crê que está longe de ser uma análise feita de forma rotineira, embora defenda que “informação é poder” e que todas as pessoas deviam conhecer o seu perfil genético. Mas há que pesar os riscos dessa informação. “Uma dieta baseada no ADN traduz no indivíduo um elevado potencial de credibilidade, contrariamente à lacuna ainda existente na investigação. Grande parte dos testes apresentam resultados ainda ambíguos e que podem induzir a informação errónea”, frisa Micaela Morgado.
Questionada pela Men’s Health sobre a opinião da Ordem dos Nutricionistas (ON) relativamente à realização destes testes, a bastonária Alexandra Bento diz que “o Conselho Jurisdicional da ON está a promover um estudo sobre este procedimento e irá elaborar um posicionamento sobre o tema”. Graça Raimundo, presidente do Conselho Jurisdicional da mesma ordem, revela que “é do interesse da Ordem dos Nutricionistas ter um posicionamento sobre esta questão que tem sido muito discutida e falada”, contudo, “como é uma questão que necessita de uma avaliação séria, está a ser feita uma apreciação por parte de peritos de forma a podermos ter uma opinião válida e, até lá, a Ordem dos Nutricionistas não se pode posicionar nem a favor nem contra, porque estamos, de facto, a aguardar aquilo que serão os pareceres dos peritos para podermos fazer o nosso posicionamento. Este é o ponto de situação atual, é uma questão que requer uma avaliação séria e segura e, para termos um parecer, temos de estar suficientemente sólidos sobre aquilo que vamos defender”.
NUTRIGENÉTICA GANHA FORÇA NA INVESTIGAÇÃO . É CEDOPARAAPRÁTICA CLÍNICA