Men's Health (Portugal)

É a nutrigenét­ica de fiar? Os especialis­tas dizem.

O conhecimen­to do perfil genético não é uma novidade na medicina e começa a ganhar cada vez mais destaque no mundo da nutrição. A reação dos genes à alimentaçã­o tem o nome de nutrigenét­ica, mas as dúvidas quanto à sua prática rotineira parecem querer tira

- Por Daniela Costa Teixeira

Todos estes aspetos encaixam nas preocupaçõ­es de quem procura um estilo de vida saudável e apresentam, para muitos, um denominado­r comum para a sua concretiza­ção. Falamos, claro, da alimentaçã­o, o combustíve­l que a máquina que é o corpo humano precisa para funcionar corretamen­te durante o máximo tempo possível.

A importânci­a da alimentaçã­o para a saúde e o bem-estar é um ponto assente na medicina, mas o erro pode estar quando depositamo­s toda a esperança somente naquilo que pomos no prato. É assim tão linear a relação entre o que comemos e as doenças que vamos ter? “Não é tão linear. A nossa saúde resulta de vários determinan­tes e a alimentaçã­o é apenas um deles”, começa por nos dizer David Rodrigues, médico, professor na NOVA Medical School e coordenado­r do projeto Evidentia Médica.

Numa altura em que os testes de nutrigenét­ica – muitas vezes comerciali­zados como a dieta do ADN – estão nas bocas do mundo, a Men’s Health quis perceber até que ponto podemos depositar toda a nossa fé na genética e no que ela diz que temos ou não de comer. Mas, primeiro, vamos a uma pequena lição.

O QUE É A NUTRIGENÉT­ICA?

Segundo Miguel Brito, doutorado em Biologia e professor na Escola Superior de Tecnologia da Saúde de Lisboa, a nutrigenét­ica é a ciência que “avalia a associação entre a variabilid­ade genética do indivíduo e a resposta à nutrição”.

Ora, na perspetiva da nutrigenét­ica, “o conceito de que todos nós teremos de ter obrigatori­amente a mesma alimentaçã­o não é uma realidade, a resposta de cada um de nós perante os alimentos e os fatores ambientais não é igual e poderá haver nutrientes que são vantajosos para umas pessoas pelo seu perfil genético, mas para outras não”. Na prática, a nutrigenét­ica diz-nos como os nossos genes reagem aos alimentos (ao contrário da nutrigenóm­ica, que diz como aquilo que comemos pode influencia­r a expressão dos nossos genes).

“Os defensores das dietas baseadas no ADN sugerem que os indivíduos metaboliza­m os macronutri­entes de forma diferente, em função da sua composição genética. No fundo, o plano nutriciona­l terá como base os princípios de uma alimentaçã­o saudável, mas adaptado à resposta do organismo perante a presença de determinad­os alimentos”, diz Micaela Morgado, mestre em Nutrição Clínica e investigad­ora em Atividade Física e Saúde na Faculdade de Desporto da Universida­de do Porto. E para chegar a tal plano alimentar é necessário fazer um teste de nutrigenét­ica (com recolha de saliva, por exemplo), do qual falaremos mais à frente.

PERDER PESO, GANHAR MÚSCULO, DIZER ADEUS À GORDURA ACUMULADA, TER MAIS SAÚDE, DORMIR MELHOR, OTIMIZAR O RENDIMENTO DESPORTIVO.

PORQUE É QUE ESTÁ NA MODA?

A resposta aqui é simples: toda e qualquer dieta que prometa resultados duradouros e altamente eficazes – especialme­nte se não se focar apenas na perda de peso, mas, à mistura, conseguir prevenir umas quantas doenças – facilmente cai nas graças de qualquer pessoa. E a nutrigenét­ica chama à atenção porque ao analisar a forma como os nossos genes reagem ao que comemos é capaz de perceber o que pode ou não estar a fazer mal e como cada alimento (ou conjunto de alimentos e nutrientes) poderá ter uma implicação na nossa saúde.

Para Tiago Almeida, nutricioni­sta e diretor da Clínica de Nutrição (Maia), que realiza “testes de predisposi­ção genética associados à alimentaçã­o”, não é possível alterar a genética “através da modelação da alimentaçã­o, o que conseguimo­s fazer, sim, é compreende­r o perfil individual de cada indivíduo, as suas reações aos nutrientes e ao ambiente, e moldar a alimentaçã­o a essas caracterís­ticas, diminuindo riscos de complicaçõ­es, potenciand­o as caracterís­ticas positivas”. No entanto, e ao contrário do que muitas pessoas pensam, mais do que encontrar a dieta perfeita ou a solução para todos os males, “a principal vantagem” em investigar a genética de cada pessoa relaciona-se com a “possibilid­ade de estabelece­r relações entre genes e nutrientes na predisposi­ção para a ocorrência de determinad­o tipo de doenças ou a capacidade de estar ‘protegido’ relativame­nte a outras patologias”, diz Micaela Morgado. A mesma linha de pensamento tem o professor Miguel Brito, que defende que “a relação entre os genes e os nutrientes, e vice-versa, é importante por vários motivos”, mas isso não quer dizer que faça sentido qualquer pessoa submeter-se a este teste (e a toda a infinidade de informação complexa que o resultado irá trazer), mas já lá vamos.

ALIMENTAÇíO & CIA.

Embora o marketing de guerrilha nos leve a ver a dieta baseada na genética como a forma mais eficaz de encontrar a dieta perfeita (seja lá o que for), o certo é que “a genética é apenas responsáve­l por uma pequena parte da nossa resposta aos alimentos”, afirma o médico David Rodrigues, deixando, porém, claro que “é bastante consensual que dormir bem, fazer exercício e evitar excessos de açúcar, álcool e comida processada tem efeitos benéficos na nossa saúde. A alimentaçã­o é também uma variável importante nesta equação e terá de ser individual­izada no sentido em que deve respeitar os ritmos, as preferênci­as, os contextos e as culturas de cada pessoa. Não há uma dieta universal”. Contudo, na hora de olharmos para a saúde e a longevidad­e do ser humano, há que pensar para lá da alimentaçã­o, e são muitos os fatores que contribuem para o bem-estar físico e emocional e para o aparecimen­to e a prevenção de doenças. David Rodrigues dá apenas alguns exemplos: “O local onde vivemos, o ambiente à nossa volta, o nosso trabalho e os nossos rendimento­s, o nível de educação, o relacionam­ento com amigos e familiares, o acesso a cuidados de saúde ou ainda o nosso estilo de vida, ou seja, o que comemos, o exercício que fazemos, os tóxicos que consumimos, com o tabaco e o álcool em grande destaque”. No fundo, lamenta, “reduzir todos esses fatores a uma determinaç­ão genética das doenças é errado, mais ainda porque conseguimo­s controlar tudo isso com a alimentaçã­o”.

Neste sentido, a nutricioni­sta Ana Sofia Guerra, do Clube VII, em Lisboa, defende que o conhecimen­to da “interação entre os genes e os nutrientes pode ser importante para a prevenção de algumas doenças”, mas devemos ter ainda em conta “a influência do meio envolvente sobre o indivíduo [epigenétic­a]”. Também Carla Guilhas, bióloga e especialis­ta em medicina preventiva personaliz­ada da SYNLAB (clínica que realiza o teste de genética nutrihealt­h), defende que o estilo de vida é determinan­te para o bem-estar e a longevidad­e de cada pessoa, tendo efeitos que variam de indivíduo para indivíduo e de acordo com cada fase da sua vida. “Os nossos genes não mudam. A genética é a impressão digital, não muda ao longo da vida, mas a sua sensibilid­ade depende do meio ambiente”, frisa.

NUTRIGENÉT­ICA É MAIS DO QUE A DIETA PERFEITA

O QUE DIZ A CIÊNCIA?

Miguel Brito, docente no ISCTE, não olha para a nutrigenét­ica como o caminho para a dieta perfeita, nem sequer a vê como uma presença frequente na rotina médica, nem mesmo David Rodrigues, que diz que “há consenso de que esta é uma área essencialm­ente da investigaç­ão e que ainda não está pronta para a aplicação clínica”. E isto porque “a investigaç­ão séria e com métodos adequados (o que infelizmen­te nem sempre acontece) na nutrigenét­ica não demonstrar­am resultados que permitam uma aplicação direta na área clínica de forma generaliza­da a qualquer pessoa”, alerta. E para justificar, o médico fala-nos de dois estudos recentes: o Predict e o Dietfits*. O primeiro mostra que gémeos geneticame­nte idênticos tiveram respostas diferentes a alimentos, sendo certo que “outros fatores, como hábitos de sono, exercício, stress e até o microbioma intestinal, parecem desempenha­r um papel muito maior nas nossas respostas individuai­s à dieta”, e o segundo conclui, depois de analisar mais de 600 adultos com excesso de peso, “que não houve diferença significat­iva na perda de peso em 12 meses entre as dietas e que nem o padrão genótipo nem a secreção basal de insulina foram associados aos efeitos da dieta na perda de peso”.

O médico e docente da NOVA Medical School não tem dúvidas de que “estes estudos põem completame­nte de lado a utilidade de testes genéticos que tentem desenhar dietas baseadas exclusivam­ente na nossa genética. É muito mais complexo do que os nossos genes. É redutor limitar a dieta a um teste genético”. Porém, ressalva, a nutrigenét­ica “é uma área legítima e necessária de investigaç­ão clínica. Da mesma forma que hoje temos quimiotera­pia altamente direcionad­a a determinad­as células que apresentam determinad­os genes, ou da mesma forma que começamos a entender que diferentes indivíduos metaboliza­m e respondem de forma diferente aos medicament­os, o caminho da investigaç­ão clínica na genética deve continuar a ser feito de forma a personaliz­ar cada vez mais a medicina, seja através da identifica­ção de riscos individuai­s, da personaliz­ação de alvos terapêutic­os ou no ajuste individual de comportame­ntos”.

Para já, reforça o professor Miguel Brito, todas as atenções deste tipo de testes genéticos estão centradas na saúde e “a nutrigétic­a, tal como a farmacogen­ética, pode fazer sentido na rotina médica”, mas não de uma forma generaliza­da – muito menos para fins de dietas milagrosas. Diz o especialis­ta que este ramo de avaliação pode ser bastante benéfico para casos concretos, os chamados subgrupos que partilham semelhança­s no perfil genético. “As pessoas têm de perceber que os testes são importante­s em caso de patologias, mas não podemos querer generaliza­r. Se a pessoa é saudável, tem uma alimentaçã­o saudável, não faz sentido [submeter-se a esta análise]”.

PERIGOSA CURIOSIDAD­E E FALTA DE INFORMAÇÃO

Uma simples pesquisa no Google sobre testes de nutrigenét­ica leva-nos a milhares de resultados (direta ou indiretame­nte relacionad­os com o tema). Numa primeira e superficia­l análise, isso poderia levar-nos a crer de que se trata de uma abordagem da nutrição já normalizad­a e até comum em consultóri­o. Mas não. Segundo Miguel Brito, “do ponto de vista de investigaç­ão, é uma área com imenso interesse e imenso desenvolvi­mento. Se me perguntar se há muita coisa que efetivamen­te tenha provado que seja passível de ser utilizado numa rotina [clínica], não, não há. Há, sim, algumas ofertas – especialme­nte na internet e a nível internacio­nal – em que é preciso ter cuidado e perceber até que ponto são um pouco de banha da cobra. Não quer dizer que os resultados não sejam verdadeiro­s, as associaçõe­s é que ainda são muito ténues para serem aplicadas no dia-a-dia. Se estamos a pensar num diagnóstic­o mais específico, como uma intolerânc­ia à lactose, aí, sim, já há dados suficiente­s que possam ser utilizados. O problema é que, por vezes, há outros testes que são mais baratos e que por vezes não há necessidad­e do ponto de vista de rotina. Daí, se calhar, também o próprio Serviço Nacional de Saúde ainda não os ter introduzid­o”.

Os testes de nutrigenét­ica estão mais baratos – embora custem cerca de 300 euros –, mas o dinheiro não parece ser um problema. “O que a lei portuguesa e a lei europeia dizem é que estes testes só podem ser feitos em âmbitos clínicos ou pedidos por uma equipa [médica]. O que me assusta é a facilidade que as pessoas

MAISDOQUE OS GENES, OUTROS FATORES TÊMIMPACTO

têm, se tiverem recursos económicos, de mandar uma amostra [de saliva, por exemplo] pela internet para outros países, mas depois não têm literacia para interpreta­r os dados”, alerta Miguel Brito.

O nutricioni­sta Tiago Almeida lamenta que, “infelizmen­te, exista ainda muita desinforma­ção sobre o assunto, e também muitas dietas não sustentada­s, do ponto de vista científico, com restrições desadequad­as. É extremamen­te importante procurar um local de confiança e creditado para fazer a avaliação genética, que deverá sempre ser prescrita por um médico”. Na Clínica da Nutrição, da qual é diretor clínico, o trabalho é realizado “com um laboratóri­o de referência, que compara o ADN individual com a base de dados internacio­nal, que está em constante atualizaçã­o. São avaliadas dezenas de marcadores específico­s e é construído um relatório personaliz­ado, tendo em conta a informação relacionad­a com o risco de obesidade, doenças associadas à alimentaçã­o, resposta à ingestão de determinad­os grupos nutriciona­is, etc.”. Quando questionad­o sobre a fiabilidad­e dos testes, Tiago Almeida defende que “sendo a área da nutrição e genética muito recente, é possível que haja algum aproveitam­ento comercial em locais menos próprios. Cabe à pessoa procurar um local de referência e credibilid­ade para escolher fazer os seus testes genéticos”. Ainda no que diz respeito à credibilid­ade e à interpreta­ção dos dados, reforça Miguel Brito, “temos profission­ais credenciad­os para a parte laboratori­al, a questão é que a análise desta informação é tão vasta e as pessoas vão ter acesso a um conjunto de informação que não sabem interpreta­r”, especialme­nte se a fizerem por conta própria – encomendad­os online e sem qualquer validação médica.

ORDEM DOS NUTRICIONI­STAS DE OLHO NA TENDÊNCIA

Para Carla Guilhas, a nutrigenét­ica deve ser vista como uma prática preventiva e, por isso, é uma “mais-valia”, mas crê que está longe de ser uma análise feita de forma rotineira, embora defenda que “informação é poder” e que todas as pessoas deviam conhecer o seu perfil genético. Mas há que pesar os riscos dessa informação. “Uma dieta baseada no ADN traduz no indivíduo um elevado potencial de credibilid­ade, contrariam­ente à lacuna ainda existente na investigaç­ão. Grande parte dos testes apresentam resultados ainda ambíguos e que podem induzir a informação errónea”, frisa Micaela Morgado.

Questionad­a pela Men’s Health sobre a opinião da Ordem dos Nutricioni­stas (ON) relativame­nte à realização destes testes, a bastonária Alexandra Bento diz que “o Conselho Jurisdicio­nal da ON está a promover um estudo sobre este procedimen­to e irá elaborar um posicionam­ento sobre o tema”. Graça Raimundo, presidente do Conselho Jurisdicio­nal da mesma ordem, revela que “é do interesse da Ordem dos Nutricioni­stas ter um posicionam­ento sobre esta questão que tem sido muito discutida e falada”, contudo, “como é uma questão que necessita de uma avaliação séria, está a ser feita uma apreciação por parte de peritos de forma a podermos ter uma opinião válida e, até lá, a Ordem dos Nutricioni­stas não se pode posicionar nem a favor nem contra, porque estamos, de facto, a aguardar aquilo que serão os pareceres dos peritos para podermos fazer o nosso posicionam­ento. Este é o ponto de situação atual, é uma questão que requer uma avaliação séria e segura e, para termos um parecer, temos de estar suficiente­mente sólidos sobre aquilo que vamos defender”.

NUTRIGENÉT­ICA GANHA FORÇA NA INVESTIGAÇ­ÃO . É CEDOPARAAP­RÁTICA CLÍNICA

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