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Eu, o Luís Figo e o feminismo, a palavra do ano

A foto que o ex-jogador pôs no Instagram é tanto uma prova de amor como um sinal dos tempos que ainda não são exatamente como os queremos. No ano do feminismo, há que pensar diferente.

- CATARINA CARVALHO DIRETORA NOTÍCIAS MAGAZINE

NNesta semana Luís Figo postou uma fotografia da filha no Instagram. «My beautiful», era a legenda, com um emoji coração. E foi assim que começou mais um episódio da minha história de feminista-tardia-e-ainda-recalcitra­nte. Li o post porque me foi chamada a atenção pelos jornais que referiam o orgulho do pai Figo na beleza da filha. Isto já é, de si, um pouco estranho: uma espécie de narcisismo biológico. Biológico, sendo a beleza algo perfeitame­nte aleatório, entranhado no mais profundo mistério do ADN. Narcisista porque, apesar de tudo, é obra do ADN de Figo – e da sua mulher Helen Svedin.

Pronto, lá estás tu, disse-me a voz do meu grilo falante, que ainda não se converteu ao feminismo, quando o meu nariz se torceu com a notícia. Qual é o mal de um pai orgulhar-se da beleza da filha e mostrá-lo nas redes sociais? Nenhum. Haverá, aliás, muitos pais que chamam lindas às suas filhas sem que isso correspond­a à realidade. Como haverá casos em que até correspond­e. Mas isso não conta para a equação. Nas relações entre pais e filhos, há coisas muito mais importante­s do que a verdade. Há o coração, que, como sabemos, tem muitas outras razões.

Então? Pois, no feminismo é fácil passar da fase de não questionar nada para questionar tudo. Neste caso, basta fazer a pergunta de ouro: e se fosse um rapaz? Se fosse o filho, Figo escreveria: «Tão lindo?» com um coração à frente? Duvido. Provavelme­nte diria qualquer coisa mais vigorosa como «My boy!», o meu rapaz, e o coração substituíd­o, talvez, por um emoji de luva de boxe.

São estes hábitos que fazem que seja tão difícil erradicar a desigualda­de, mesmo em sociedades desenvolvi­das. A beleza não é fundamenta­l à vida, ao trabalho, à felicidade. E, no entanto, as mulheres carregam este fardo desde que nascem, passando pela fase dos lacinhos cor de rosa até à idade em que têm de «envelhecer graciosame­nte». Como dizia Arianna Huffington num texto sobre roupa de trabalho, a desigualda­de começa quando uma mulher tem de passar mais horas por semana a preocupar-se com coisas que não têm nada que ver com a sua produtivid­ade: saias, calças, unhas, cabelo, maquilhage­m.

A esta pressão, nem a versão chique e moderna do feminismo escapa. Pelo contrário, acentua-o: ah e tal, para ser feminista não é preciso deixar de depilar-se ou queimar sutiãs. E este é um dos últimos redutos da misoginia, até entre homens que não se acham machistas. Enquanto as mulheres forem avaliadas pela aparência, num juízo que precede qualquer outro, partirão sempre em desvantage­m. E isto é válido para bonitas e para feias, giras e desinteres­santes, inteligent­es e burras.

E uma vez que esta crónica sai no final do ano que foi designado como o do feminismo em todo o mundo, proponho então refazer as notícias que saíram nesta semana: Luís Figo emocionado com inteligênc­ia da filha. Luís Figo orgulhoso da bravura da filha. Luís Figo feliz com a capacidade de trabalho da filha. Luís Figo de rastos com a rapidez da filha. Luís Figo não tem palavras para o raciocínio matemático da filha. Luís Figo espantado com o discurso da filha. Luís Figo contente com QI da filha. Luís Figo basófias com a imaginação da filha... Um dia, senhores, um dia…

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