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Sem medo do medo

- JOSÉ LUÍS PEIXOTO * texto e fotografia

Omedo é a fronteira que precisamos de ultrapassa­r para que, realmente, exista deslocação. Se não existe qualquer espécie de medo, não saímos do lugar. Às vezes, quando estamos num comboio parado, os outros comboios a avançarem à nossa volta, a seguirem por linhas paralelas, dão-nos a sensação de movimento. No mundo, não faltam as ilusões de ótica, podemos fazer uma vida inteira a acreditar em ilusões de ótica, a tomá-las por referência. Na dúvida, quando não conseguimo­s avaliar a relevância de uma possibilid­ade, é o medo que esclarece.

Para traçar uma linha no chão, o medo tem de ser real. Não pode ser apenas um receio, apenas uma impressão vaporosa e sem contornos. Tem de nos pôr em causa, tem de ser vida/morte, tem de ser sempre uma luta pela salvação do mundo, como nos filmes de super-heróis. Se o medo for uma faca, está bem afiada.

Por isso, nunca estamos completame­nte preparados para avançar na sua direção, para enfrentá-lo, nunca sabemos ao certo se conseguire­mos sobreviver-lhe. O medo que ultrapassá­mos no passado perdeu toda a sua validade. Para ser verdadeiro, o medo é sempre novo, é moldado pelos caprichos intrincado­s da nossa humanidade.

Porque somos humanos, somos fortes e frágeis ao mesmo tempo. A nossa força e a nossa fragilidad­e são interdepen­dentes, uma existe por causa da outra. São como dois impulsos contrários que se equilibram, que criam a tensão necessária para amparar todo o edifício. As pessoas dão muitos nomes ao genial engenheiro civil que foi capaz de calcular precisão tão milimétric­a.

Dessa forma, o medo é individual, feito à exata medida. Ou seja, o medo é uma casa, um espaço íntimo, onde apenas podemos estar sozinhos, como o quarto da adolescênc­ia. Então, seria mais certo dizer «esse medo» ou «cada medo» porque «o medo», único e absoluto, é uma cidade, um país, um continente, uma civilizaçã­o.

Por todos estes motivos, a sua existência é necessária, como o ar, a água, todos os elementos. Devemos falar com ele e, por muito que nos custe olhá-lo diretament­e, devemos agradecer-lhe. Sem medo não se faz nada.

* Escritor

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