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Formiga-leão

- FERREIRA FERNANDES

Aminha primeira escola era numa vivenda com dois mamoeiros raquíticos que sabiam que nunca lhes deixaríamo­s amarelecer os frutos. A escola tinha uma magnífica instalação desportiva com o único senão de o bairro a considerar rua, de terra batida. Jogávamos com as regras da football associatio­n local: se um carro passa, para-se a bola apesar do caminho aberto até à baliza. Ainda não se tinha inventado o videoárbit­ro, daí as constantes controvérs­ias dificilmen­te esclarecid­as: «Poças, pá, o jipe já tinha entrado nas quatro linhas!» O golo valia? Questão bicuda, tanto mais que não havia quatro linhas.

Aminha escola chamava-se São Tomás de Aquino e o professor era um branco do mato, angolano de pele de marfim velho, amarelecid­a pelo paludismo. Tinha sido seminarist­a, abandonara, mas alguma fé lhe deve ter restado porque deu à escola o nome do escolástic­o. O professor era triste como os mamoeiros, nunca eu soube porquê. Por estes dias passa mais um aniversári­o de quando ele trouxe para a classe o tema da época: o Menino Jesus. Naquele tempo eu também não sabia que a escolástic­a era uma doutrina conciliató­ria, tentando harmonizar a fé e a razão. Pus o dedo no ar e fiz a minha primeira intervençã­o pública.

OMenino Jesus existe – disse eu. Nesse ano, ou talvez no seguinte, já se estava em transição para a hipótese Pai Natal, mas em todo o caso não havia ainda imagens com renas e camiões de Coca- Cola que visualizas­sem a minha tese.

Só pela palavra eu conseguiri­a chegar aos gentios. Mulatos, brancos e negros, quase todos mais pobres do que eu (a declaração de rendimento­s conta nesta história). A minha tese era: as prendas de Natal têm origem misteriosa e a autoria do Menino Jesus (não me lembro se acrescente­i «ou do Pai Natal») era a mais curial... Como não sabia dizer curial pus os olhos a brilhar. Rematei com um argumento demolidor: «A prova de que o Menino Jesus existe é que todos, mesmo os pobres, temos prendas.»

Opaludismo deixa um homem derreado, só permitindo picos de excitação quando o combate vale a pena. O professor encolheu os ombros e mudou de assunto: «Vamos à tabuada.» Alguns dos meus colegas olhavam-me com a mesma atenção perigosa de quando empurrávam­os uma vítima para a armadilha de uma formiga-leão. Estas faziam um cone invertido no chão, inseto que lá caísse esgotava as forças a tentar subir o que a areia solta não permitia. Lá em baixo, no pico invertido, a formiga-leão esperava... Ainda hoje sonho com isso. Naquela véspera de Natal, uma comissão de miúdos veio ter comigo: «Depois das férias, vamos todos trazer as prendas, não te esqueças das tuas!» Soou-me a conversa de formiga-leão.

Mas porque terei eu, ingénuo e puro como me revelara no discurso, desconfiad­o da proposta dos meus companheir­os para a exposição mútua das prendas? Afinal, eu tinha interesse no contrato, o carro de bombeiros, vermelho e com escada Magirus, havia de os deixar invejosos. Mas a questão era: como sabia eu do carro de bombeiros, antes do Natal e antes do meu discurso? Pois é... Eu já tinha encontrado o embrulho de estrelinha­s prateadas, escondido no cimo do guarda-vestidos da minha mãe. Desembrulh­ei, espreitei, embrulhei de forma malamanhad­a e a minha mãe nada disse. Ficou conversa nossa, da minha mãe que sabia que eu sabia que o melhor era ficar assim.

Aminha escola chama-se hoje António Garcia Neto, e a rua (o nosso campo) também. Ele era filho de um cauteleiro do bairro, tinha os pés chatos e era pobre. Jovens, sonhámos o mesmo. Semanas depois de eu me exilar, em 1969, o Garcia Neto foi preso e metido em Peniche; poucas semanas depois de nos reencontra­rmos, ele foi apanhado numa voragem da nossa cidade, foi morto e queimado, a 27 de maio de 1977, em Luanda. Acho que ele sempre soube que não havia Pai Natal e eu sempre tive mais razões para fingir.

PUS O DEDO NO AR E FIZ A MINHA PRIMEIRA INTERVENÇíO PÚBLICA.

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