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NUM VALE ONDE TUDO ARDEU O QUE CRESCE É A HUMANIDADE
Há dois meses, o incêndio que varreu o vale da Ventosa, em Vouzela, levou oito vidas, dezenas de casas, centenas de cabeças de gado. Mas, nas aldeias mais afetadas, ninguém deixa ninguém cair. A reconstrução tarda – e no entanto o povo vai-se unindo para
Omas não deixam de estar dois graus negativos no vale da Ventosa. É dezembro e em Vouzela respira-se aquele ar limpo que só existe nas manhãs de inverno. Dois meses antes, a 16 de outubro, o fumo era tanto que tudo se tinha tornado amarelo, e espesso, e irrespirável. O monstro tinha chegado na noite anterior, queimara tudo, matara homens e esperança. E agora é difícil esquecê-lo: o bosque permanece apocalíptico, o arvoredo retorcido em carvão, as aldeias em escombros. Como nas cumeadas de São Macário já caiu neve, a natureza parece ter tirado um retrato a preto e branco. E isso é desarmante: não há um assomo de verde para descansar os olhos e no entanto o ar respira-se limpo, como se prometesse que a primavera há de voltar.
Na noite de 15 de outubro morreram oito pessoas no concelho de Vouzela, a maioria das quais neste vale. Na manhã seguinte, a NOTÍCIAS MAGAZINE estava aqui para perceber a decisão terrível que o povo teve de tomar no meio das chamas: fugir e abandonar tudo ou ficar para lutar contra o monstro? Dois meses depois, o cenário é igualmente trágico, mas alguma coisa mudou. A tragédia trouxe uma união sem precedentes ao vale da Ventosa. Houve vizinhos a acolher em casa os que estavam desalojados, a compartilhar o pouco que lhes sobrava, houve desconhecidos que apareceram com roupa, comida, dinheiro e abraços. No meio dos despojos do fogo, também há esta história de humanidade.
Veja-se Alcinda Santos, que nem com forças se sentia para celebrar o Natal. Na manhã de 16 de outubro encontrámo-la em desespero. Acordara de noite com barulho de chuva e afinal era o lume. Correra a acordar o povo da aldeia de Ânsara – e a maioria abalou, mas ela decidiu ficar para salvar o que pudesse. Não salvou quase nada. Perdeu a casa e o gado todo, só lhe sobrou uma vaca e um vitelo que conseguiram escapar-se do curral. «A mãe morreu umas horas depois de vocês estarem aqui, tinha respirado muito fumo. Então fiquei só com o vitelinho, que agora é órfão, por isso eu digo que ele é o meu menino.»
A ruína da casa deixa-a de coração partido, mas quando se agarra ao bicho a mulher é toda sentimento. «Anda cá meu lindo, anda cá meu amor.» Mudou-se para outra casa que tinha na aldeia, que é dela e de mais irmãos. «Isto tem muitos herdeiros e sempre tinha havido discussão sobre quem tinha direito a ocupar a casa. Mas assim que aconteceu isto toda a gente disse que a casa era nossa, veja lá se não é bonito?» Vai afagando o dorso do animal e depois atira: «Desde que aconteceu a tragédia aconteceram muitas coisas bonitas.»
Faltam-lhe palavras para agradecer às vizinhas. Foi Maria Rodrigues que veio trazer-lhe uma pipa de vinho e um presunto quando percebeu que os tonéis tinham ardido todos, e que os porcos que estavam reservados para o fumeiro tinham morrido no incêndio. Foi Glória Moita, a quem arderam os currais todos, a partilhar com ela as batatas que o monstro se esquecera de queimar. «E depois houve muita gente a ver a reportagem que vocês fizeram e a vir cá trazer-me coisas. Roupas, loiças, dinheiro.» Gente que não a conhecia mas que soube ler-lhe o desespero. Há dias trouxeram a Alcinda Santos um cão e uma árvore de Natal. A generosidade de vizinhos e desconhecidos ajuda a abafar a dor.
Da Alemanha chegaram cem euros por transferência bancária, e ela não sabe a quem os agradecer. Veio gente de Aveiro e Setúbal, de Águeda e Santo Tirso. «Há esta senhora que veio trazer-me um cachorrinho porque os meus morreram todos queimados. É o Jamel. » Ao ouvir o nome, o cão corre para a dona e salta-lhe para o colo. Ela ri-se – e aquele riso é uma sinfonia inteira no meio do carvão. «Há dias apareceu-me aqui com uma árvore de Natal de plástico. Eu não a ia fazer porque os pinheiros estão todos queimados, mas ela insistiu e eu trouxe cá a minha neta para montá-la comigo.» É à volta dela que a família vai juntar-se na noite da consoada. Bacalhau com batatas e vinho da vizinha Maria «E sabe, vou fazer sonhos de abóbora para oferecer a toda a gente. É para ver se deixamos de ter pesadelos com o incêndio.»
O centro de saúde local tem uma psicóloga que anda de aldeia em aldeia a falar com as pessoas, a confortá-las e a avaliar sintomas de stress pós-traumático. Fernando Correia, 43, ainda anda em sobressalto, as chamas a atormentarem-lhe as noites, a memória da pele a queimar. «A psicóloga tem ajudado muito e os irmãos também.» Como perdeu a casa onde vivia na aldeia de Adamo, também no vale da Ventosa, foi acolhido num colégio religioso de maristas que existe na vila. Também lá vivem Piedade e Fernando Fernandes – ela 77, ele 47. São mãe e filho, ficaram igualmente desalojados.
Para Correia, a noite de 15 de outubro foi particularmente cruel. Estava a dormir em casa quando o vizinho lhe veio bater à porta: «Sai senão morres.» E ele bem tentava escapar, mas as labaredas já tinham tomado conta da habitação. Pensou que ou tentava a sorte pelo meio das chamas ou se
«Desde que aconteceu a tragédia aconteceram muitas coisas bonitas», diz Alcinda. O fogo pode ter queimado tudo, mas gerou uma onda de solidariedade sem precedentes.
despedia deste mundo, e então avançou. As roupas pegaram fogo, mas conseguiu passar. Despiu-se, as fagulhas a continuar-lhe a pele, mas conseguiu chegar vivo a casa do vizinho. Tinha o corpo com queimaduras de terceiro grau e precisava de assistência médica urgente. «O meu vizinho ligava para os bombeiros, mas eles não conseguiam passar. Ao fim de duas horas veio o genro dele buscar-me. Atravessou o fogo e correu risco de vida para salvar a minha. Não sei como poderei algum dia agradecer-lhe.»
Primeiro foi para o hospital de Viseu, mas o caso era grave e teve de ser transferido para o Hospital de São João, no Porto. No dia seguinte, era reencaminhado para Santa Maria, em Lisboa, cidade onde só tinha estado uma vez e onde não conhecia ninguém. «Então as pessoas da minha aldeia que tinham familiares na capital contactaram-nos para que eles viessem prestar assistência enquanto eu estava na unidade de queimados. Todos os dias tive visitas. Encheram-me de doces e fruta.» Emociona-se: «Durante a noite não conseguia dormir porque sonhava sempre com o fogo, mas de dia estava sempre distraído e isso ajudou-me muito. Estou sem ninguém há tantos anos e naquele mês que passei no hospital nunca me senti sozinho.»
Há uma história de solidariedade para contar no vale da Ventosa, mas também é preciso dizer que, para a maioria dos seus habitantes, a recuperação é demasiado lenta. Só no concelho de Vouzela uma centena de casas foram consumidas pelas chamas – e sessenta eram primeiras habitações. Depois houve o gado, morreram centenas de cabeças. «Isto para não falar dos prejuízos em alfaias agrícolas, tratores, armazéns e celeiros. Numa única noite mais de quinhentas pessoas ficaram afetadas e 73 por cento do território do município foi completamente destruído», diz Rui Ladeira, presidente da câmara municipal. Os trabalhos de reconstrução ainda não começaram, mas o município decidiu adiantar-se ao Estado e criar um programa de recuperação de currais para quem teve prejuízos inferiores a cinco mil euros. «Há muita gente que teve estragos superiores a vinte mil mas prefere aderir ao nosso projeto, porque tem pressa de retomar a vida.»
Para Beatriz Augusto, o seu primeiríssimo desejo não é a casa, é um porco. E isso não é pouco quando se sabe que, aos 70 anos, viu arder a habitação onde tinha nascido – e onde, meses antes do incêndio, tinha instalado todo um novo telhado. «Naquela noite fiquei muito aflita por causa dos animais e por causa dos medicamentos para o coração, que tenho de tomar todos os dias. As paredes são as paredes, mas consegui trazer a coisa mais preciosa que tinha lá dentro, que era uma fotografia da minha mãe.» Como quase todos, viu-se na rua aflita, de camisa de dormir e pantufas. «Eu não tinha forças para combater o fogo, mas se Deus me tivesse dado tempo de abrir a porta da pocilga para o meu porquinho poder fugir, não vivia com esta dor no coração.»
Enterrou o animal no dia seguinte à tragédia, quando a terra ainda fumegava. A sua vida era aquele bicho, mais as quatro