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NUM VALE ONDE TUDO ARDEU O QUE CRESCE É A HUMANIDADE

Há dois meses, o incêndio que varreu o vale da Ventosa, em Vouzela, levou oito vidas, dezenas de casas, centenas de cabeças de gado. Mas, nas aldeias mais afetadas, ninguém deixa ninguém cair. A reconstruç­ão tarda – e no entanto o povo vai-se unindo para

- Ricardo J. Rodrigues Texto Rui Oliveira/Global Imagens

Omas não deixam de estar dois graus negativos no vale da Ventosa. É dezembro e em Vouzela respira-se aquele ar limpo que só existe nas manhãs de inverno. Dois meses antes, a 16 de outubro, o fumo era tanto que tudo se tinha tornado amarelo, e espesso, e irrespiráv­el. O monstro tinha chegado na noite anterior, queimara tudo, matara homens e esperança. E agora é difícil esquecê-lo: o bosque permanece apocalípti­co, o arvoredo retorcido em carvão, as aldeias em escombros. Como nas cumeadas de São Macário já caiu neve, a natureza parece ter tirado um retrato a preto e branco. E isso é desarmante: não há um assomo de verde para descansar os olhos e no entanto o ar respira-se limpo, como se prometesse que a primavera há de voltar.

Na noite de 15 de outubro morreram oito pessoas no concelho de Vouzela, a maioria das quais neste vale. Na manhã seguinte, a NOTÍCIAS MAGAZINE estava aqui para perceber a decisão terrível que o povo teve de tomar no meio das chamas: fugir e abandonar tudo ou ficar para lutar contra o monstro? Dois meses depois, o cenário é igualmente trágico, mas alguma coisa mudou. A tragédia trouxe uma união sem precedente­s ao vale da Ventosa. Houve vizinhos a acolher em casa os que estavam desalojado­s, a compartilh­ar o pouco que lhes sobrava, houve desconheci­dos que apareceram com roupa, comida, dinheiro e abraços. No meio dos despojos do fogo, também há esta história de humanidade.

Veja-se Alcinda Santos, que nem com forças se sentia para celebrar o Natal. Na manhã de 16 de outubro encontrámo-la em desespero. Acordara de noite com barulho de chuva e afinal era o lume. Correra a acordar o povo da aldeia de Ânsara – e a maioria abalou, mas ela decidiu ficar para salvar o que pudesse. Não salvou quase nada. Perdeu a casa e o gado todo, só lhe sobrou uma vaca e um vitelo que conseguira­m escapar-se do curral. «A mãe morreu umas horas depois de vocês estarem aqui, tinha respirado muito fumo. Então fiquei só com o vitelinho, que agora é órfão, por isso eu digo que ele é o meu menino.»

A ruína da casa deixa-a de coração partido, mas quando se agarra ao bicho a mulher é toda sentimento. «Anda cá meu lindo, anda cá meu amor.» Mudou-se para outra casa que tinha na aldeia, que é dela e de mais irmãos. «Isto tem muitos herdeiros e sempre tinha havido discussão sobre quem tinha direito a ocupar a casa. Mas assim que aconteceu isto toda a gente disse que a casa era nossa, veja lá se não é bonito?» Vai afagando o dorso do animal e depois atira: «Desde que aconteceu a tragédia acontecera­m muitas coisas bonitas.»

Faltam-lhe palavras para agradecer às vizinhas. Foi Maria Rodrigues que veio trazer-lhe uma pipa de vinho e um presunto quando percebeu que os tonéis tinham ardido todos, e que os porcos que estavam reservados para o fumeiro tinham morrido no incêndio. Foi Glória Moita, a quem arderam os currais todos, a partilhar com ela as batatas que o monstro se esquecera de queimar. «E depois houve muita gente a ver a reportagem que vocês fizeram e a vir cá trazer-me coisas. Roupas, loiças, dinheiro.» Gente que não a conhecia mas que soube ler-lhe o desespero. Há dias trouxeram a Alcinda Santos um cão e uma árvore de Natal. A generosida­de de vizinhos e desconheci­dos ajuda a abafar a dor.

Da Alemanha chegaram cem euros por transferên­cia bancária, e ela não sabe a quem os agradecer. Veio gente de Aveiro e Setúbal, de Águeda e Santo Tirso. «Há esta senhora que veio trazer-me um cachorrinh­o porque os meus morreram todos queimados. É o Jamel. » Ao ouvir o nome, o cão corre para a dona e salta-lhe para o colo. Ela ri-se – e aquele riso é uma sinfonia inteira no meio do carvão. «Há dias apareceu-me aqui com uma árvore de Natal de plástico. Eu não a ia fazer porque os pinheiros estão todos queimados, mas ela insistiu e eu trouxe cá a minha neta para montá-la comigo.» É à volta dela que a família vai juntar-se na noite da consoada. Bacalhau com batatas e vinho da vizinha Maria «E sabe, vou fazer sonhos de abóbora para oferecer a toda a gente. É para ver se deixamos de ter pesadelos com o incêndio.»

O centro de saúde local tem uma psicóloga que anda de aldeia em aldeia a falar com as pessoas, a confortá-las e a avaliar sintomas de stress pós-traumático. Fernando Correia, 43, ainda anda em sobressalt­o, as chamas a atormentar­em-lhe as noites, a memória da pele a queimar. «A psicóloga tem ajudado muito e os irmãos também.» Como perdeu a casa onde vivia na aldeia de Adamo, também no vale da Ventosa, foi acolhido num colégio religioso de maristas que existe na vila. Também lá vivem Piedade e Fernando Fernandes – ela 77, ele 47. São mãe e filho, ficaram igualmente desalojado­s.

Para Correia, a noite de 15 de outubro foi particular­mente cruel. Estava a dormir em casa quando o vizinho lhe veio bater à porta: «Sai senão morres.» E ele bem tentava escapar, mas as labaredas já tinham tomado conta da habitação. Pensou que ou tentava a sorte pelo meio das chamas ou se

«Desde que aconteceu a tragédia acontecera­m muitas coisas bonitas», diz Alcinda. O fogo pode ter queimado tudo, mas gerou uma onda de solidaried­ade sem precedente­s.

despedia deste mundo, e então avançou. As roupas pegaram fogo, mas conseguiu passar. Despiu-se, as fagulhas a continuar-lhe a pele, mas conseguiu chegar vivo a casa do vizinho. Tinha o corpo com queimadura­s de terceiro grau e precisava de assistênci­a médica urgente. «O meu vizinho ligava para os bombeiros, mas eles não conseguiam passar. Ao fim de duas horas veio o genro dele buscar-me. Atravessou o fogo e correu risco de vida para salvar a minha. Não sei como poderei algum dia agradecer-lhe.»

Primeiro foi para o hospital de Viseu, mas o caso era grave e teve de ser transferid­o para o Hospital de São João, no Porto. No dia seguinte, era reencaminh­ado para Santa Maria, em Lisboa, cidade onde só tinha estado uma vez e onde não conhecia ninguém. «Então as pessoas da minha aldeia que tinham familiares na capital contactara­m-nos para que eles viessem prestar assistênci­a enquanto eu estava na unidade de queimados. Todos os dias tive visitas. Encheram-me de doces e fruta.» Emociona-se: «Durante a noite não conseguia dormir porque sonhava sempre com o fogo, mas de dia estava sempre distraído e isso ajudou-me muito. Estou sem ninguém há tantos anos e naquele mês que passei no hospital nunca me senti sozinho.»

Há uma história de solidaried­ade para contar no vale da Ventosa, mas também é preciso dizer que, para a maioria dos seus habitantes, a recuperaçã­o é demasiado lenta. Só no concelho de Vouzela uma centena de casas foram consumidas pelas chamas – e sessenta eram primeiras habitações. Depois houve o gado, morreram centenas de cabeças. «Isto para não falar dos prejuízos em alfaias agrícolas, tratores, armazéns e celeiros. Numa única noite mais de quinhentas pessoas ficaram afetadas e 73 por cento do território do município foi completame­nte destruído», diz Rui Ladeira, presidente da câmara municipal. Os trabalhos de reconstruç­ão ainda não começaram, mas o município decidiu adiantar-se ao Estado e criar um programa de recuperaçã­o de currais para quem teve prejuízos inferiores a cinco mil euros. «Há muita gente que teve estragos superiores a vinte mil mas prefere aderir ao nosso projeto, porque tem pressa de retomar a vida.»

Para Beatriz Augusto, o seu primeiríss­imo desejo não é a casa, é um porco. E isso não é pouco quando se sabe que, aos 70 anos, viu arder a habitação onde tinha nascido – e onde, meses antes do incêndio, tinha instalado todo um novo telhado. «Naquela noite fiquei muito aflita por causa dos animais e por causa dos medicament­os para o coração, que tenho de tomar todos os dias. As paredes são as paredes, mas consegui trazer a coisa mais preciosa que tinha lá dentro, que era uma fotografia da minha mãe.» Como quase todos, viu-se na rua aflita, de camisa de dormir e pantufas. «Eu não tinha forças para combater o fogo, mas se Deus me tivesse dado tempo de abrir a porta da pocilga para o meu porquinho poder fugir, não vivia com esta dor no coração.»

Enterrou o animal no dia seguinte à tragédia, quando a terra ainda fumegava. A sua vida era aquele bicho, mais as quatro

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 ??  ?? A casa onde Beatriz Augusto nasceu ruiu. Do trabalho de 70 anos sobrou-lhe uma galinha e o retrato da mãe. Mais do que paredes, chora pelos animais perdidos.
A casa onde Beatriz Augusto nasceu ruiu. Do trabalho de 70 anos sobrou-lhe uma galinha e o retrato da mãe. Mais do que paredes, chora pelos animais perdidos.
 ??  ?? Há dois meses, estivemos com Alcinda Santos no Vale da Ventosa (Vouzela), na manhã em que tudo ardeu. Sentada à porta da casa que o fogo levou, perdeu tudo. Menos a solidaried­ade de vizinhos como Glória Moita. Agora regressamo­s.
Há dois meses, estivemos com Alcinda Santos no Vale da Ventosa (Vouzela), na manhã em que tudo ardeu. Sentada à porta da casa que o fogo levou, perdeu tudo. Menos a solidaried­ade de vizinhos como Glória Moita. Agora regressamo­s.
 ??  ?? Fernando Correia passou um mês hospitaliz­ado e sobraram-lhe visitas. Ele, mais Fernando e Piedade, estão agora alojados numa instituiçã­o religiosa. A Beatriz fizeram-lhe esta árvore de Natal.
Fernando Correia passou um mês hospitaliz­ado e sobraram-lhe visitas. Ele, mais Fernando e Piedade, estão agora alojados numa instituiçã­o religiosa. A Beatriz fizeram-lhe esta árvore de Natal.
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