Jornal de Notícias - Notícias Magazine
DEZEMBRO 2017
«Deixem-nos pelo menos reconstruir os currais», diz uma e outra pessoa, no vale inteiro. A espera não os deixa resolver o luto. galinhas que lhe davam ovos. Sobrou uma, e agarra-se a ela como uma criança protege uma boneca. «No início queriam pôr-me num lar, mas eu não deixei, então quem é que vinha dar de comer à galinha?» Acolheu-a Paula Ferreira, que mora no outro lado da aldeia de Santa Comba, e prometeu-lhe que poderia ali ficar o tempo que fosse necessário. «Agora durmo no quarto da sogra da Paula e até estou mais acompanhada.» Não tem descendência, tinha só o gado.
Beatriz ainda não sabe isto, mas Paula, que perdeu um chibo, 14 cabras e 19 cabritos para o fogo, ainda tem três porcos e é bem capaz de oferecer um deles à vizinha, «para ela não se pôr tão triste». Também arranjou uma árvore de Natal pequenina – pode não haver crianças em casa que os filhos já estão crescidos, mas há uma amiga que tem de esquecer as tristezas por uma noite.
O gesto é bonito, mas talvez não seja preciso cumpri-lo. O presidente da câmara diz que tem um fundo preparado para quem perdeu animais. «Abrimos uma conta solidária no concelho e temos lá oitenta mil euros. O resto eu comprometo-me a utilizar do nosso orçamento, porque sei o afeto com que estas pessoas lidam com o gado, e sei que a espera só ajuda a desmotivar mais a nossa gente.» Passaram afinal dois meses sem que houvesse ainda uma intervenção digna desse nome. «O problema é que esperamos pelas diretivas da direção regional do centro para poder reflorestar as matas, para organizar as obras nos currais e nas casas», diz Rui Ladeira, que antes de ser autarca era engenheiro florestal. «E está certo que assim seja, temos de requalificar a paisagem em toda a região, não apenas no município. Mas o processo tem de ser célere, porque não tarda nada é altura de plantar os fenos, e se isso não acontecer vai ser um ano inteiro perdido para o gado.»
Foi lá no fundo do vale que o monstro provocou a maior infâmia. No cruzamento que dá acesso a Vila Nova de Ventosa foram retiradas as placas que identificam as aldeias mais próximas – em outubro elas estavam todas queimadas, algumas caídas, e agora pura e simplesmente não estão. Mas o caminho preserva-se intacto e a primeira imagem que se vê agora quando se entra na povoação é a do casario queimado, ruínas de pedra e carvão. Só aqui morreram quatro pessoas, uma quando tentava salvar o gado, três que dormiam em casa e não conseguiram sair. À porta do que resta da habitação há um vaso de flores e uma vela com uma imagem do Sagrado Coração de Jesus.
Emília Marques, que na manhã do dia 16 tinha vindo mostrar o palco da desgraça, é quem vai todos os dias regar as plantas – e não é que elas precisem assim tanto, porque os dias têm amanhecido húmidos. «Mas sempre fico aqui a pensar um bocadinho.» Dá uma volta por aquele extremo da aldeia, está tudo igualzinho ao que estava há um par de meses. «Sou eu que faço isto porque
O atraso do Estado é grande. A câmara criou um projeto para adiantar dinheiro a quem teve prejuízos inferiores a cinco mil euros. Há gente com danos de vinte mil a concorrer. O povo quer refazer a vida.
sou a única que consegue cá vir. Ninguém quer cá pôr os pés, muito menos a Camila.» Camila Duarte, 62 anos, perdeu ali dois irmãos e a cunhada – e pediu a Emília que fosse lá a casa, todos os dias, rezar um bocadinho na vez dela. A solidariedade dos vizinhos também se estabelece assim, no alívio da carga que retiram uns aos outros.
«Limpar tudo e reconstruir tudo, é só isso que precisamos», diz agora Camila. «Enquanto estiver tudo em ruínas não conseguimos avançar com a nossa vida.» A ideia é repetida, aldeia a aldeia, até à exaustão. E o presidente da câmara dá razão ao povo. Diz que é urgente intervir nos povoados, mas também nos matos. «Temos de cortar esta madeira toda que está queimada, e ainda não o fizemos porque não temos para onde escoá-la. A maioria das serrações ardeu.» Precisam que o Estado os ajude a despachar tanto carvão dali para fora. Urgentemente.
Apesar da morosidade nas intervenções, o autarca acredita que esta tragédia trouxe uma oportunidade. «Temos de repensar todo o conceito da distribuição da riqueza em Portugal. O Estado tem de garantir serviços públicos nas regiões menos povoadas, tem de incentivar a captação de empresas, tem de proteger e compensar os proprietários para que se crie uma floresta saudável e se ponha termo, de uma vez por toda, a esta calamidade.» Propõe que as novas medidas sejam pagas com impostos das indústrias poluidoras ou com a fatia do IMI do litoral, por exemplo. «Se não mudarmos nada, estamos simplesmente a fazer xeque-mate ao interior do país.»
Mabilde Santos sente-o na pele. Ela, que chegou há dois anos de Bragança ao vale da Ventosa, ainda matuta se não é luta demasiada ficar a trabalhar a terra. Depois daquela noite de outubro, a mulher considerou voltar à cidade. «Foi o Miguel, o meu
Há vizinhos que abriram as portas de casa a quem tinha perdido a sua. Há gente no país inteiro que se mobilizou para ajudar esta gente. Agora começa o tempo da reconstrução.
homem, que me disse que tínhamos de arranjar forças onde não as tínhamos, que havíamos de lutar juntos pelos nossos animais e pelo nosso pedaço de terra.» Só se têm um ao outro, afinal, e agora que ardeu o seu pequeno paraíso, estão a arranjar formas de torná-lo paraíso outra vez.
A casa sobreviveu, mas as persianas e algumas janelas arderam, por isso chove-lhes dentro de casa. Vão-se remediando com plástico a tapar a água, o mesmo que têm para cobrir o pouco feno que lhes sobra. «Da última vez que vocês estiveram aqui eu estava feita num oito, foi o culminar de uma depressão de vários meses», conta ela, enquanto vai arrumando a roupa que ficou a secar na sala. «E sabe que o incêndio me fez levantar outra vez. É como se tivesse batido no fundo e fosse obrigada a reagir.»
O casebre onde costumavam secar o fumeiro ardeu, neste ano não vão poder fazer presunto nem chouriças. E no entanto, assim que se sentam à mesa, Mabilde vai buscar umas que trouxe do supermerdado para servir as visitas. Não o querem guardar para o Natal? «Na consoada somos só os dois, havemos de ter o bacalhau e rabanadas», diz ela. Miguel olha embevecido para
Veja a reportagem que fizemos neste mesmo vale, nos incêndios de outubro, em www.noticiasmagazine.pt/2017/ficar-enfrentar-as-chamas.
a mulher: «Vais fazer rabanadas, amor?» E ela responde que vai, porque sabe que ele gosta, e ele pousa a sua mão na dela. Até ao fim do ano ainda contam recuperar um dos currais que o fogo levou, e tal como combateram as chamas juntos, também é juntos que vão construí-lo.
Depois do incêndio, Mabilde e Miguel perceberam um bocadinho melhor que a vida não os tinha deixado sozinhos. Que se tinham um ao outro, e que isso era a única coisa que o monstro não podia levar. A história deles é a história de um vale inteiro que se fez cinza. Do meio de um pedaço de terra negra nasceu uma humanidade que agora permite a sobrevivência. Mas falta fazer tudo, reconstruir casas e currais, limpar matos e trazer animais para a terra. Está na hora de pôr termo ao luto e arregaçar as mangas. «Voltem, venham cá ver como as coisas vão andando», pede a mulher na despedida. Voltaremos, sim.