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Para o menino e para a menina

- Texto Teresa Frederico Ilustração Shuttersto­ck

Faz algum sentido brinquedos diferentes para rapazes e raparigas? Não? Então porque continuam a existir?

BONECAS, TACHOS, AUTOMÓVEIS OU CAIXAS DE FERRAMENTA­S? EM QUE MEDIDA AS PRENDAS ALIMENTAM PRECONCEIT­OS SEXISTAS E QUE CONSEQUÊNC­IAS PODEM TER PARA A VIDA? PERGUNTÁMO­S A ESPECIALIS­TAS QUAL É O EFEITO DA REPRODUÇÃO DOS PAPÉIS DE GÉNERO DE CADA VEZ QUE OFERECEMOS UMA COZINHA A UMA RAPARIGA E UMA BOLA DE FUTEBOL A UM RAPAZ.

O « universo dos brinquedos está impecavelm­ente segmentado. Sim, vão dizer -me que a maioria das meninas adoram o rosa e os rapazes apreciam rebolar - se na lama. É lógico, com toda a energia dispensada a fazê -los compreende­r que é disso que devem gostar.» A afirmação é de Clarence Edgard-Rosa, em Les Gros Mots, Abécédaire Joyeusemen­t Moderne du Féminisme, um livro que, como o título sugere, tenta clarificar, muitas vezes com um toque de ironia, « palavrões» associados ao feminismo.

Dois mundos separados por uma «fronteira opaca» é o que se encontra nos catálogos de brinquedos, refere a autora. E, de facto, basta espreitar um folheto de uma qualquer rede de supermerca­dos nacional para o confirmar: duas páginas assinalada­s a rosa com ofertas para meninas incluem bonecas, bebés e respetivos acessórios para os primeiros cuidados, um set bandeja chá/ /escorredor loiça/ limpeza e kits de cosmética. Na dupla seguinte, assinalada a azul, aos meninos estão reservados muitos automóveis e motos, uma garagem, mala e mesa de ferramenta­s e blocos de construção esquadra de polícia/quartel de bombeiros/corridas Fórmula 1. Nos corredores dos hipermerca­dos encontramo­s, normalment­e, a mesma arrumação. Será esta fronteira colorida inocente?

De inocente não tem nada, garante Clarence Edgard-Rosa: « A segmentaçã­o dos brinquedos por género é, sem dúvida, o conceito de marketing mais lucrativo de todos os tempos.» Ao comerciali­zar - se uma bicicleta azul com o Super-Homem e outra igualzinha, em rosa, com a imagem da Barbie, apenas se duplica a necessidad­e de compra – isto, claro, porque muitos pais preferem investir numa bicicleta nova a que o filho mais novo herde a da mais velha.

Curiosamen­te, nem mesmo a cor associada a cada sexo tem qualquer razão de ser. Durante séculos as crianças foram vestidas de branco e posteriorm­ente a regra até chegou a ser a inversa, com os meninos a envergar rosa, considerad­o «mais decidido e forte», revela a historiado­ra Jo B. Paoletti no seu livro Pink and Blue: Telling the Girls from the Boys in América (Rosa e Azul: Distinguir as Raparigas dos Rapazes na América). As cores atuais, rosa para rapariga e azul para rapaz, remontam apenas à década de 1940.

Cores à parte, podem os brinquedos que oferecemos às crianças ter um papel determinan­te no seu futuro? Dame Athene Donald, professora de Física Experiment­al na Universida­de de Cambridge, acredita que sim. No seu primeiro discurso como presidente da British Science Associatio­n, há um ano, não hesitou em afirmar que os oferecidos às meninas as afastam da ciência e da engenharia: « Normalment­e instigam à passividad­e, penteando o cabelo da Barbie, por exemplo, e não a construir, imaginar ou ser criativo.»

Na verdade, até já existe uma Barbie cientista. Embora não esteja à venda em Portugal, há as de outras profissões como bombeira e agente secreta, piloto de aviões ou programado­ra de jogos. Mesmo o seu corpo, tão «perfeito» quanto criticado, tem agora caracterís­ticas diferentes, podendo ser alto, baixo ou mais cheiinho, e a boneca perdeu a palidez, sendo atualmente produzida com sete tons de pele.

«OFERECER PRESENTES DENTRO DO QUE É SUPOSTO PARA CADA CA GÉNERO OU CONDIC CONDICIONA­R A ESCOLHA PORQUE ESTA, SUPOSTAMEN­TE, ESTIGMA REFORÇARÁ DE GÉNERO, O PARECEM-ME PESSOA REDUTORAS PERSPETIVA­S HUMANO», ENQUANTO AMBAS DA

DIZ A PSICÓLOGA PAULA PERES PER DI SALVATORE. S

QUE PRESENTES OFERECER?

A escolha pode ser muito mais simples do que parece: « As crianças sabem bem do que gostam, é apenas preciso saber escutar », diz a psicóloga clínica Paula Peres Di Salvatore. «Oferecer presentes dentro do que é suposto para cada género ou condiciona­r a escolha porque esta, supostamen­te, reforçará o estigma de género, parecem-me ambas perspetiva­s redutoras da pessoa enquanto humano.»

Sendo um facto que os homens normalment­e têm mais força física do que as mulheres e que estas poderão ter maior espírito de sacrifício, como maioritari­amente ditam as regras sociais vigentes, trata- trata - se de caracterís­ticas « ligadas às funções essenciais que o masculino e o feminino desempenha­ram para a proteção da espécie». Acontece que «hoje os homens já não caçam bisontes e as mulheres assumem os postos que quiserem, ainda que, em muitos casos, com uma discrimina­ção negativa de género», explica a psicóloga.

Ou seja, a segmentaçã­o por género presente nos catálogos de brinquedos não tem razão de ser. «Cada criança deve poder optar pelo que gosta mais e ainda bem que cada vez mais homens percebem as enigmática­s máquinas de roupa e que as mulheres são cientistas! Há que educar ambos os géneros num ambiente seguro onde possam escolher em liberdade aquilo que verdadeira­mente são no seu interior.»

Oferecer uma boneca a uma menina que a deseja é a atitude mais adequada, segundo a especialis­ta, até porque «brincar é também ser criativo, mudar a realidade, identifica­r-se ou não com alguns padrões propostos. Também se aprende do que não se gosta e, se calhar, no próximo Natal a menina vai pedir uma caixa de ferramenta­s e vai gostar!».

No fundo, negativa pode ser a apreciação dos adultos quanto aos gostos da criança. «O primeiro mundo de uma criança é o da família nuclear. Desiludir os pais é como carregar uma culpa que não se sabe porquê. Importante não é apenas o que uma criança faz mas é o que o mundo à sua volta, em particular os progenitor­es, fazem à criança, se a deixam existir livremente ou não. O segredo de tudo está numa boa comunicaçã­o para que ela se desenvolva e cresça de acordo com a sua verdadeira personalid­ade».

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A segmentaçã­o dos brinquedos por género é o conceito de marketing mais lucrativo de todos os tempos. Ao comerciali­zar-se uma bicicleta azul com o Super-Homem e outra igualzinha, em rosa, com a imagem da Barbie, apenas se duplica a necessidad­e de compra.
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