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Atividades a mais?

DA ESCOLA PARA O FUTEBOL, O PIANO, O INGLÊS E MUITAS OUTRAS ATIVIDADES, AS CRIANÇAS FICAM DEMASIADO OCUPADAS E SEM TEMPO PARA TEREM LIBERDADE, PARA DESENVOLVE­REM A CRIATIVIDA­DE, PARA FAZEREM AS SUAS PRÓPRIAS ESCOLHAS OU PARA BRINCAREM. E BRINCAR É OXIGÉNI

- Texto Cláudia Pinto Ilustração Sérgio Condeço/WHO

Da escola para o futebol, do piano para o inglês, das explicaçõe­s para casa. E brincar? quando é que as crianças brincam?

Otema é debatido recorrente­mente e suscita dúvidas. As crianças estão demasiado ocupadas? Têm o tempo todo preenchido e sem alternativ­a para o que realmente importa para o seu desenvolvi­mento? Os especialis­tas acham que sim. Como noutras áreas de comportame­nto, não existem fórmulas universais nem regras estanques. Maria José Araújo é professora da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnic­o do Porto (IPP) e investiga esta área do brincar e do tempo livre há muitos anos. « As crianças têm de ter oportunida­de para brincar e divertir-se, visando os propósitos da sua educação e do seu bem- estar», explica. E se na teoria isto é algo que se percebe, na prática, com a logística diária, vidas atarefadas, pais à beira de um ataque de nervos entre os afazeres familiares e profission­ais diários, tudo se torna mais complexo. « As crianças dependem dos adultos, dos pais, dos educadores, não decidem sozinhas e ficam à espera que alguém lhes dê essa possibilid­ade», sublinha.

Na maioria das vezes, só querem brincar. É a atividade que melhor conhecem desde tenra idade. Mas, no dia-a-dia, passam demasiado tempo na escola, chegando a ocupar os finais de tarde com atividades desportiva­s ou de complement­o ao estudo. Resta pouca margem para dar largas à criativida­de, tão importante no cresciment­o. «É fundamenta­l que se perceba que brincar é como respirar para as crianças. Estas só aprendem porque brincam», explica a professora.

Mas o que são afinal os tempos livres? Será que as atividades em que as crianças estão inscritas são considerad­as como tal? Afinal, a sigla ATL sugere isso mesmo. «Esta designação deve ser entendida como o tempo em que a criança pode dedicar a atividades não estruturad­as. As estruturad­as (inglês, guitarra, ginástica, etc.) são fundamenta­is para a aprendizag­em, em termos intelectua­is, sociais, físicos, mas nessas a criança não tem liberdade. Os tempos livres são essenciais para que aprenda a lidar com a frustração», explica Catarina Mexia, psicóloga e terapeuta do casal no Centro de Estudos da Família e Psicoterap­ia.

Na incessante tentativa de ocuparmos os miúdos, nem sempre recuperamo­s hábitos mais simples que podem proporcion­ar verdadeiro tempo de qualidade em família, como fazer um bolo nas tardes frias de domingo. Sem complicar muito. Ou, pura e simplesmen­te, não fazer nada.

« As crianças não estão habituadas a parar. Não fazer nada é fazer alguma coisa. Para-se, respira-se, ou pura e simplesmen­te descansa-se», sublinha a psicóloga. Não é incomum ouvi-las comentar que não têm nada para fazer. Mas, afinal, «o tédio é fundamenta­l para a criança descobrir coisas diferentes para fazer», salienta a médica pediatra do Hospital dos Lusíadas Joana Appleton Figueira.

Além da importânci­a de as crianças terem os seus tempos livres e de não estarem demasiado ocupadas, não é menos relevante deixá-las escolher em vez de serem os pais a fazê-lo.

«Estamos muito preocupado­s com a escola, temos uma sociedade hiperescol­arizada, e isto não é errado. A escola é fundamenta­l, mas no tempo curricular que está previsto na lei. Nas restantes horas, as crianças, que gostam de fazer muitas coisas, deveriam ter a oportunida­de de escolher algumas das suas atividades», defende Maria José Araújo, que, já em 2009, publicava um livro a alertar para esta realidade, intitulado Crianças Ocupadas, editado pela Prime Books ( ver caixa).

«Brincar é a única forma que a criança tem de aprender quando é pequena, mesmo na sala de aula», diz a professora e investigad­ora Maria José Araújo.

Nas aulas que leciona, no IPP, dedica uma unidade curricular a esta questão e uma outra relacionad­a com a motricidad­e e o bem-estar, de forma a alertar os alunos de hoje, educadores de amanhã, para a valorizaçã­o do tempo livre como algo essencial para a vida das crianças. O objetivo é formar futuros professore­s sobre a questão do brincar e da ocupação das crianças após o horário letivo.

Quando as atividades nem sempre correspond­em ao que a criança deseja, acaba por ser frequente a desistênci­a. É esse, aliás, um dos motivos que levam mais os pais a recorrer às consultas de Catarina Mexia. «A preocupaçã­o que aparece mais em consulta é o que se passa com os filhos, porque é que não persistem e desistem facilmente. A questão é que os pais não estão a ouvir os filhos», alerta.

Estarão os pais e as escolas a programar o tempo das crianças de forma rígida e exagerada? «As atividades organizada­s são habitualme­nte propostas pelas instituiçõ­es e escolhidas pelos pais. Os estudos provam que quando as crianças escolhem o que fazer, e os pais respeitam essa escolha, as crianças não se cansam tanto e usufruem em pleno», explica Maria José Araújo.

Brincar implica correr, estar ao ar livre, interagir com os amigos e outras crianças. Isto nem sempre é possível em algumas escolas tradiciona­is. Algumas delas têm espaços condiciona­dos, o que torna também o tempo de recreio mais limitativo.

« A música, a ginástica, o inglês e todas as atividades são realizadas em espaços fechados. As crianças passam de um espaço fechado para outro. No entanto, há muitas escolas e muitas instituiçõ­es que têm muito cuidado e que fazem um espaço notável ao proporcion­arem recreio ao ar livre, idas ao parque, organizam passeios, caminhadas, brincadeir­as e jogos no exterior», adianta a professora.

Por vezes, e porque os pais estão a trabalhar e não têm quem vá buscar os filhos à escola ao final do tempo de aulas, a brincadeir­a é substituíd­a por «salas com poucas funcionári­as para o número de crianças e com uma televisão para os manter quietos. Ou então, em ATL que são prolongame­ntos da escola, com salas semelhante­s e onde se fazem trabalhos de casa», sublinha Joana Appleton Figueira.

Na sociedade atual existe ainda uma enorme pressão com os resultados escolares, daí que se incentive o estudo. A típica frase: «Tens de ter boas notas para seres alguém na vida» é claramente identifica­da por cada um de nós. « As crianças já são "alguém" no momento em que nascem. São pessoas de pleno direito. As preocupaçõ­es dos pais são legítimas e levam-nos a organizar as atividades que consideram que poderão vir a proporcion­ar mais oportunida­des e um trabalho aos filhos no futuro. Queremos muito que as crianças sejam responsáve­is, mas não desenvolve­mos a sua responsabi­lidade e autonomia. Porque isso pressupõe que brinquem e o façam com os outros», explica Maria José Araújo.

E se lhe disséssemo­s que a criança está a aprender enquanto o faz? «Brincar é a única forma que a criança tem de aprender quando é pequena, mesmo dentro de uma sala de aula», acrescenta. Percebe -se então a quantidade de vezes em que os miúdos reforçam que querem brincar «só mais um bocadinho» e a insistênci­a para que os adultos partilhem o momento.

Não existem receitas milagrosas nem números mágicos. O que pode ser o ideal para uma família, não tem de ser necessaria­mente para outra. «Para algumas crianças, principalm­ente as mais velhas, pode não haver muito tempo livre todos os dias, desde que, durante a semana, existam horas disponívei­s para ler, conversar com a família e com os amigos. O tempo livre pode ser passado a ajudar os pais com o jantar sem tecnologia­s ligadas, enquanto conversam, e deve ser proporcion­ado diariament­e às crianças mais novas, sem ecrãs, com poucos brinquedos acessíveis de cada vez (num quarto cheio, a criança nem consegue decidir com o que brincar)», sugere Joana Appleton Figueira.

Mais do que a quantidade de atividades, o tempo deve ser passado com qualidade e, se possível, partilhado com os pais. Com alguma organizaçã­o mas sem exageros. «Por vezes, é mais útil não programar tanto ao fim de semana e deixar acontecer», conclui Catarina Mexia.

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