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DERMATOLOGIA
Despistar doenças de pele em pessoas sem abrigo do distrito de Coimbra. É esse o ponto de partida de um projeto lançado por duas médicas dermatologistas da região. A iniciativa – recentemente premiada – permitirá cuidar de quem vive na rua e está mais vul
Duas dermatologistas de Coimbra estão a ajudar os sem-abrigo da cidade.
Bárbara Fernandes gosta de fazer consulta, de falar com pessoas, de lhes ouvir as queixas e o que têm para dizer. « Ao fim de todos estes anos, continuo a gostar.» A médica de 47 anos, há oito a trabalhar no Instituto Português de Oncologia de Coimbra, escolheu a especialidade de dermatologia pelo «caráter objetivo das lesões» e preocupa-a a falta de especialistas desta área no Serviço Nacional de Saúde, sobretudo em algumas zonas do país, como o interior. Dezoito anos mais nova, Bárbara Roque Ferreira partilha a preocupação – e a profissão. A dermatologista do Centro Hospitalar Universitário de Coimbra realça a importância da articulação entre várias especialidades. «Uma determinada lesão na pele pode ser a manifestação de uma patologia mais geral e sistémica.»
Preocupadas com as dificuldades de acesso a consultas de dermatologia por certos grupos da população, as duas profissionais uniram esforços e desenvolveram um projeto pioneiro na região, que visa criar oportunidades para pessoas que se encontram sem casa ou a viver em alojamento temporário. Chamaram-lhe Doenças de Pele nos Sem-Abrigo e acreditam que poderá melhorar a saúde de muita gente, promovendo a autoestima e facilitando a integração social.
«Na prática, com o apoio do grupo operativo responsável pelo acompanhamento destas situações, o Projeto de Intervenção com os Sem-Abrigo do Concelho de Coimbra (PSICACC), faremos uma observação dermatológica, sempre que possível completa, dos sem- abrigo por eles acompanhados», diz Bárbara Fernandes. «Pretendemos facilitar um acesso mais próximo aos cuidados dermatológicos, mas de uma forma digna, com respeito pela identidade da pessoa, assim como pela sua personalidade e privacidade. O nosso objetivo é fazer um exame dermatológico completo, incluindo avaliação do couro cabeludo, pés e mucosa oral.»
Excecionalmente poderão fazer observação em ambiente de rua, em articulação com as equipas técnicas que apoiam estas pessoas, mas a ideia é garantir um espaço resguardado, em instituições de apoio a sem- abrigo, onde as consultas possam decorrer.
Uma vez por mês, a partir de janeiro, as médicas realizarão sessões para as pessoas que quiserem participar, para já, em parceria com a Associação Integrar – onde decorrem outras ações de educação para a saúde através do projeto Saúde sobre Rodas, da responsabilidade da enfermeira e docente da Escola Superior de Enfermagem de Coimbra, Marina Montezuma. Mas o objetivo, a médio prazo, é abarcar mais instituições.
A ideia poderá vir a ser alargada a outros grupos vulneráveis apoiados por instituições da cidade que já estão a ser contactadas para o efeito. E no futuro, o projeto poderá até ser replicado noutras zonas do país, havendo interesse e disponibilidade de eventuais parceiros, bem como outros médicos dermatologistas e uma equipa maior.
Caso sejam detetadas lesões graves, será feito o devido reencaminhamento para as unidades hospitalares onde as duas médicas trabalham. Naquelas que sejam passíveis de tratamento, o mesmo é assegurado, havendo possibilidade de reavaliação no tempo adequado. «Iremos articular com as associações parceiras e voltaremos aos casos sempre que se justificar», diz Bárbara Fernandes.
O projeto Doenças de Pele nos SemAbrigo ganhou um novo fôlego ao ser distinguido, em dezembro passado, entre 14 candidaturas, pela Fundação La Roche Posay, com o Prémio Dermatologists from the Heart [ ver caixa em cima]. A verba que as duas médicas vão receber (dez mil euros) vai permitir adquirir equipamentos de diagnóstico e tratamento, nomeadamente lâmpadas de observação («porque as condições de iluminação nos locais a visitar não são as ideais para a observação da pele»), luvas, compressas, batas descartáveis e antisséticos. Mas também será aplicada na compra de medicamentos para o tratamento das dermatoses identificadas. «Pretendemos ainda organizar sessões educacionais com a oferta de kits contendo pasta e escova de dentes, gel de banho, hidratante, champô e protetor solar, para alertar para a importância dos cuidados com a pele», diz Bárbara Roque Ferreira.
Uma das realidades detetadas pelas duas médicas é a dificuldade de acesso aos cuidados de saúde, bem como «a elevada prevalência de doença mental e comportamentos aditivos associados», que levam a negligenciar a saúde da pele e que originam «situações mais exuberantes e potencialmente mais graves». Esta é uma população que não estará, à partida, tão mobilizada para a importância da saúde
da pele. Por isso, as dermatologistas irão aproveitar as consultas da especialidade para sensibilização e educação.
A referenciação dos beneficiários será efetuada pelas equipas das associações e centros de acolhimento parceiros. «Estamos disponíveis para ajudar todos os sem-abrigo de Coimbra. Mas não iremos observar ninguém contra a sua vontade», alerta Bárbara Fernandes. Como o projeto tem a duração de um ano, caso alguém manifeste uma reserva em particular, terá sempre a porta aberta para participar mais tarde e quando se sentir confortável para o efeito.
Desde 2017, já foram realizadas duas ações antes da atribuição do prémio, em instituições no centro da cidade: no Centro de Dia Sol Nascente, que apoia toxicodependentes em processo de recuperação, e na Cozinha Solidária, que ajuda população carenciada através da entrega de refeições já confecionadas, mas também com a realização de programas de treino de competências domésticas. Com a experiência obtida, foi possível verificar que os beneficiários «sentem que alguém está a olhar por eles», explica Bárbara Roque Ferreira.
Até setembro deste ano, as duas médicas propõem- se concluir os rastreios, as consultas e a avaliação dermatológica, de forma a retirar conclusões através de trabalho estatístico até dezembro. Caso sejam necessários ajustes conforme a aplicabilidade do projeto no terreno, os mesmos serão assegurados, bem como o número de beneficiários. « A população de sem-abrigo em Coimbra é f lutuante, mas estimamos a existência de cinquenta a sessenta pessoas, na sua maioria homens», diz Bárbara Fernandes.
Juntar a ciência à vertente humanitária é aquilo que mais as move. Mas não só. «Estamos atentas à exclusão a que estas pessoas estão votadas e queremos ir ao seu encontro. Esperamos que sintam que a nossa intervenção lhes acrescenta qualidade de vida e melhoria do seu bem- estar», diz a médica responsável.
Além da observação de pessoas sem abrigo, o projeto prevê também a organização de sessões educacionais com a oferta de kits com pasta e escova de dentes, gel de banho, hidratante, champô e protetor solar, para alertar para a importância dos cuidados com a pele.