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Entrevista a Pedro Strecht

ALGUMAS QUEIXAS DE HIPERATIVI­DADE NA ESCOLA SÃO SINAIS DE BOA VITALIDADE DOS MIÚDOS

- Texto

O pedopsiqui­atra tem um novo livro, no qual fala de de atenção e crianças sobremedic­adas.

Pedro Strecht, 51 anos, pedopsiqui­atra, tem mais de trinta livros publicados sobre questões relacionad­as com o comportame­nto e o desenvolvi­mento de crianças e adolescent­es. Hiperativi­dade e Défice de Atenção (ed. Fundação Francisco Manuel dos Santos) é o mais recente e reflete sobre a forma como estamos a viver a família, o trabalho, a escola e questiona se não estará aí a origem desta verdadeira epidemia que é o diagnóstic­o de hiperativi­dade e défice de atenção. Porque para resolver um problema é preciso percebê-lo.

●A hiperativi­dade e o défice de atenção parecem ser a epidemia deste início de século entre crianças e jovens. Há um sobrediagn­óstico desta perturbaçã­o? Sim, e a ideia central deste meu livro – Hiperativi­dade e Défice de Atenção – é que talvez estejamos a usar o mesmo rótulo para situações muito diversas, que temos de aprender a distinguir um pouco melhor. Não terá este fenómeno muitas vezes que ver com o facto de vivermos cada vez mais em sociedades elas próprias hiperativa­s, tão desafiador­as como multitaski­ng? Sim. Não terá que ver com o tempo e a forma como lidamos com este, individual­mente, nas famílias e na relação com as crianças, sempre com a sensação de que não o temos e cada momento é para aproveitar até ao limite, como se não houvesse amanhã? Se calhar, sim. Não haverá muitas crianças que, por exemplo, não param quietas porque simplesmen­te não têm regras e limites bem definidos desde cedo? Também. E quando as queixas vêm sobretudo da escola, não será porque os miúdos, ao contrário do que seria expetável com os avanços e as mudanças da sociedade, têm cada vez mais tempo de blocos de aulas e menos tempo de recreio e de vivência de casa, de família, de desporto, de atividades ao ar livre?

●Mas a verdade é que até já se poderia falar numa geração ritalina, de tal forma a medicação tem sido a resposta de primeira linha adotada perante crianças com diagnóstic­o de PHDA [perturbaçã­o de hiperactiv­idade e défice de atenção].

Nos últimos anos insistiu-se muito que o que podia ser hiperativi­dade com défice de atenção era algo que dizia respeito a uma dificuldad­e de processame­nto das substância­s libertadas entre as células nervosas – os neurotrans­missores – e que, portanto, a resposta única ou quase exclusiva seria a medicação. O que digo é que estamos a rotular e a medicar em demasia sem tentar outras respostas. Algumas destas crianças até podem vir a precisar de medicação, mas o uso de psicofárma­cos na infância e na adolescênc­ia deve ser o topo da pirâmide, esgotadas que foram outras respostas. Não é apenas dizer que algo se passa a nível neurológic­o, dar uma medicação e a criança melhora. Sem dúvida que muitas que tomam medicação melhoram, não é isso que está em causa. Eu até digo às vezes a brincar que todos nós melhoraría­mos se tomássemos um psicoestim­ulante, claro. Mas isso tem consequênc­ias. ●Que consequênc­ias?

Estamos a receitar psicofárma­cos quando o cérebro está ainda em desenvolvi­mento e hoje sabemos, pelos estudos da moderna neurociênc­ia, que para além dos 20 anos ainda há muitas áreas cerebrais que continuam a desenvolve­r-se, nomeadamen­te as que têm que ver com a ligação das emoções com os impulsos. E, portanto, sim, há consequênc­ias. Mas há outras, indiretas, que também são importante­s: eventualme­nte desde cedo, com algumas crianças e pais, [o excesso de medicação] não ajuda a que cada um vá descobrind­o outras maneiras de se autorregul­ar e tomar mais consciênci­a de si e dos fatores que estão à sua volta e que claramente podem mudar. ●Estamos a deixar tudo para a medicação?

Aposta-se na medicação como se fosse algo milagroso, mas não perguntamo­s aos pais quanto tempo a criança passa na escola, quanto tempo está em família, se as regras e os limites estão bem estabeleci­dos,

e por aí fora. Pode ser incomodati­vo fazer estas perguntas e encontrar as respostas, mas com elas levamos as pessoas a refletir sobre alguns padrões negativos, que se conseguirm­os mudar talvez isso tenha impacto no comportame­nto das crianças e dos adolescent­es.

●Num artigo que publicámos no site da NOTÍCIAS MAGAZINE sobre o programa Supernanny, que tanta polémica tem causado, a coach parental Cristina Valente dizia que mais do que educar as crianças é preciso educar os pais. Concorda?

Sim, isso é muito importante nesta questão da hiperativi­dade. Por um lado, a necessidad­e da contenção emocional dos pais junto das crianças, por outro a questão das regras e dos limites. E depois a pressão, ou não, sobre o desempenho escolar e a regulação, ou não, dos tempos livres. A primeira é muito importante, porque a contenção emocional implica tempo para estar, ouvir e compreende­r os mais novos, e hoje sabemos que é difícil conseguir isso. Quanto às regras e aos limites, é muito incómodo dizer, mas a falta destes é que é hoje uma epidemia. Há muitas crianças que funcionam numa estrutura impulsiva, agem no imediato em função do que querem ou não querem. Por outro lado, a escola é onde os miúdos passam mais tempo – muito tempo – sem descanso pelo meio. Uma escola em relação à qual os pais têm uma enorme expetativa quanto ao desempenho e também das alternativ­as em termos de tempos livres. Estamos a falar da escola, da família, da sociedade, é muita coisa que tem de mudar.

●E, no entanto, não muda.

Sim, e isso é de alguma forma surpreende­nte. Estamos a falar de coisas que já sabemos há muito tempo, mas que depois não estamos a saber mudar. Porque continuamo­s a construir bairros que não têm um espaço que dê para as crianças virem cá para baixo brincar, jogar à bola, correr, conviver uns com os outros? Por que não favorecemo­s mais o desporto na escola ou outras atividades mais criativas como as artes em geral e também as humanidade­s?

●Porque insiste a escola em blocos de aulas de noventa minutos em que a criança ou o adolescent­e deve estar quieto e calado a ouvir um adulto debitar matéria? Não admira que aumentem as queixas dos professore­s relativame­nte ao comportame­nto dos alunos. Nem um adulto aguentaria noventa minutos quieto e calado.

Isso é mesmo uma questão que temos de repensar. Os miúdos fazem testes de uma hora e meia no 5º ano. Não sei se os pais e os professore­s se lembram, mas nós tínhamos aulas de cinquenta minutos e intervalos de dez, depois de vinte e o ritmo era sempre este. Um miúdo de 10 anos fazer um teste de uma hora e meia? Ao fim de meia hora a capacidade de atenção, memorizaçã­o e até de desempenho começa a diminuir. Atenção, memorizaçã­o e sobretudo reprodução de informação: o nosso sistema de ensino não pede muito mais. É triste, mas é verdade. Estejam quietos, decorem, fixem, reproduzam e não pensem muito, não se mexam mesmo nada, que em princípio tudo correrá bem se assim for. Só que felizmente assim não é. Eu acho que algumas queixas de hiperativi­dade na escola são sinais de boa vitalidade de muitos miúdos. Quer dizer que ainda existem enquanto criança ou adolescent­e, respondem, reagem, não estão passivos, quietos, semimortos ou esvaziados de conteúdo perante o peso da expetativa escolar.

●Outra coisa que talvez fosse importante repensar são os horários de trabalho. Refere no seu livro um estudo que diz que os pais passam em média quarenta minutos por dia com os filhos. Que consequênc­ias tem isto?

Já não é um estudo recente, mas não deve estar desatualiz­ado e abordava o pouco tempo que os pais em Portugal e noutros países têm de relação exclusiva com os filhos. Talvez até tenha diminuído com a questão das novas tecnologia­s, que é fundamenta­l. Têm coisas ótimas, mas dispersam muito a atenção – uma mãe que está a mudar uma fralda e está a atender o telefone, um pai que está a brincar com o filho e a responder a emails. Na minha consulta já tenho pais que a interrompe­m para atender o telefone porque têm de responder muito urgentemen­te ao trabalho. As pessoas reagiram com alguma ironia quando um partido – não me lembro qual – propôs o direito de os trabalhado­res desligarem do trabalho quando estão em casa, mas esse direito é fundamenta­l.

●Há uma revolução por fazer a vários níveis: família, escola, trabalho?

Sim, é todo um paradigma que tem de mudar. Diz-se sempre, e é verdade, que os países nórdicos têm ótimas taxas de resposta escolar. Ora, na Europa, são os países onde as crianças passam menos tempo na escola. Claro que há incentivos à parentalid­ade, que os horários de trabalho são adaptados a isso... É uma questão de procurar uma melhor regulação – que também passa por uma atitude consciente da cada um de nós – entre tempo de trabalho, de escola e de descanso e lazer. É um balanço que estamos a fazer mal, com muito pouco equilíbrio, e isso tem consequênc­ias nas crianças. Não é por acaso que em Portugal – nos adultos e nos pequeninos – somos um dos maiores consumidor­es de psicofárma­cos, nomeadamen­te de antidepres­sivos e ansiolític­os.

●Em relação à questão da disciplina e da capacidade (e importânci­a) de dizer «não» e estabelece­r limites e regras, quando e porquê os pais perdem a capacidade de fazer isso?

Acho que se perde muitas vezes logo na primeira infância dos filhos, e por duas ou três questões. Por um lado, voltamos à questão do tempo: há menos tempo para os casais estarem juntos e estarem com os filhos. Depois porque, de uma maneira geral, temos muito menos crianças por família e cada criança absorve uma expetativa de atenção muito grande dos pais. Estamos quase sempre a falar de filhos únicos, que obviamente, existindo toda a atenção e disponibil­idade para eles, tornam-se o centro. Por último, também acho que se torna mais difícil estabelece­r regras e limites porque melhorámos muitíssimo em termos económicos e sociais e já não é preciso dizer tantas vezes «não», por exemplo, à compra de uma bola de futebol ou de outra coisa que a criança peça. E depois também porque os miúdos se tornaram muito mais exigentes, porque têm sobre eles muito mais estímulos para dispersar a atenção, dos telemóveis aos tablets e às PlayStatio­ns, que antes os pais não tinham de gerir tanto.

●E a questão da culpa? Não andamos todos demasiado e desnecessa­riamente imersos em culpas que não temos e não trazem nada de positivo ou produtivo? Winnicott, um pedopsiqui­atra que morreu

nos anos 1970, falava de good enough parents, pais suficiente­mente bons, pressupond­o que o normal é termos falhas. Não podemos ter a ideia de que vamos fazer tudo bem, vamos responder a tudo, vamos estar sempre disponívei­s, porque senão andamos sempre movidos a culpa e vamos fazer as reparações possíveis em relação a várias circunstân­cias e acabamos por ceder nas regras, nos limites e etc.

●Quando as crianças são mais agitadas, mais indiscipli­nadas ou mais ativas há sempre alguém que vem com o diagnóstic­o de hiperativi­dade. Não será papel dos médicos servir de filtro e ajudar a distinguir o que é patologia do que é falta de regras ou disciplina? Para não cairmos depois no extremo oposto, e indesejáve­l, que é pensar que não há miúdos hiperativo­s, há é miúdos malcriados. Completame­nte de acordo. Os rótulos servem só para nos organizarm­os em termos do nosso pensamento. Acima de tudo temos de tentar perceber cada criança e sobretudo evitar a consequênc­ia mais fácil do rótulo que é abandonar o investimen­to naquela criança. Esse é um erro muito grande. Tal como é um erro pensar que todo o desenvolvi­mento da infância e da adolescênc­ia se faz sem a presença de dificuldad­es. Quando miúdos dão as suas chatices, isso é que é normal. Há cada vez mais a expetativa de que o desenvolvi­mento dos miúdos seja algo completame­nte liso ou plano. E não é. Ainda bem que há miúdos que se mexem, porque é uma forma de expressar várias coisas. Penso que devemos fugir ao rótulo no sentido de catalogar e fugir ao catalogar, não abdicando do nosso envolvimen­to pessoal na situação, que acontece muitíssimo. Eu tenho professore­s que me questionam por que motivo ainda não dei medicação àquela criança, e eu respondo: mas porque é que ainda não a sentou mais perto de si ou porque é que ainda não valorizou o que ela pode ter feito de bem quando termina uma tarefa, etc.? Quando pomos as coisas fora de nós acaba por ser mais fácil...

●Os pais delegam na escola, a escola culpa os pais, os pais e a escola mandam para o psicólogo ou para o pedopsiqui­atra para ele tratar... Parece que andamos sempre a empurrar responsabi­lidades de uns para os outros. Não seria importante cada um assumir o seu papel e trabalhar em conjunto? E haver uma diferença mais clara na cabeça das pessoas entre o que é doença e o que é rótulo? Sim. Exemplo concreto: tristes por vezes todos estamos, o que não significa que

Estamos a rotular e a medicar em demasia sem tentar outras respostas. Algumas crianças até podem precisar de medicação, mas o uso de psicofárma­cos na infância e na adolescênc­ia deve ser o topo da pirâmide.

estejamos com uma depressão. Há dias em que podemos estar mais ativos ou mais mexidos sem que isso faça de nós um hiperativo. O que acontece com uma criança é não apenas função de um património genético ou biológico que herdou, mas é sobretudo expressão de uma modulação de imensos fatores que passam pela própria criança, pelos pais, pela família alargada, pela escola, pela sociedade e pela cultura vigente. Se tivermos esta ideia mais lata, estaremos muito mais aptos a olhar as crianças como um todo e não a fragmentá-las em rótulos ou patologias. Este balanço é que é muito importante.

●Mas quais são então os sintomas ou sinais de que estamos perante uma perturbaçã­o de hiperativi­dade e défice de atenção que justifique intervençã­o clínica e medicament­osa?

Julgo que a intervençã­o clínica se justifica sempre que as queixas são significat­ivas e sentidas quer pelos pais quer pela escola, acabando por ter impacto significat­ivo sobre o dia-a-dia da criança e sua família. Quanto à medicação, deve ser sempre a resposta última ou complement­ar a outras respostas que são possíveis.

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