Jornal de Notícias - Notícias Magazine

Portugal 2028. Uma das crianças do SuperNanny vê o programa gravado dez anos antes

- PAULO FARINHA jornalista

«Só vi aquilo uma vez. Foi o suficiente. Eu devia ter uns 12 ou 13 anos, estava no YouTube e não resisti: fui à procura do episódio da SuperNanny em que eu apareci. Eu, a minha mãe e o meu irmão. Todos. Aos gritos, em discussões, em guerras, com portas a bater e brinquedos pelo ar. Nós os três e mais aquela mulher. Aquele ar empertigad­o de quem está ali com vontade de intervir mas está a fazer um esforço para se conter. Aquela mulher de óculos que eu não conhecia de parte nenhuma e um dia me entrou pela casa e foi ao meu quarto, à casa de banho, à sala, à cozinha. Viu a minha roupa, passou perto dos meus brinquedos, opinou sobre os meus cadernos. Aquela mulher que veio com um operador de câmara que filmou tudo. Tudo, mesmo.

Foi esse episódio que eu vi. Já me tinham falado daquilo, já tinha sido gozado por aquilo, já tinha ouvido colegas meus chamar nomes à minha mãe por causa daquilo. Mas nunca tinha visto aquilo. E, para grande azar, aquilo era como um acidente na estrada: não dava para parar de ver. Por muito escabroso que fosse, não dava para parar de ver. Aquele era eu. Exposto, desprotegi­do, exibido. Era eu numa situação que devia ser privada e se tinha revelado pública.

Durante muito tempo quis apagar aquelas imagens da minha cabeça. Tentar esquecer que tinha visto aquele fogo-de-artifício todo que espelhava os dias negros da minha infância, quando eu tinha a mania que era rebelde e não obedecia à minha mãe e gostava de roubar os brinquedos do meu irmão só para o irritar e ficava convencido de que assim conseguia que me dessem mais atenção. Eu não queria pensar mais naquilo. Eu precisava de não pensar mais naquilo.

Um milhão. Um milhão de pessoas viu as imagens. Um milhão viu a figura que eu fiz, os nomes que eu chamei ao meu irmão, os disparates que disse à minha mãe. O que raio tinha ela na cabeça quando achou que deixar uma câmara filmar-me a fazer uma birra e uma estação de televisão difundir essas imagens seria uma boa ideia? Que paragem cerebral terá tido a minha mãe, que desespero seria aquele para achar que era uma boa ideia exibir para um milhão de pessoas a ansiedade, a frustração e a energia mal canalizada do filho?

Nos dias seguintes, depois de ver as imagens, tinha vergonha de andar na rua. Tinha medo de ser reconhecid­o, que apontassem o dedo, que alguém dissesse "olha, aquele não é o miúdo do SuperNanny que fazia aquelas asneiras todas e se portava como um idiota?" Porque na escola isso já tinha acontecido. Eu já tinha sido devidament­e gozado. Por colegas e até alguns professore­s. Mas na rua…? Ao pé de casa? Isso devia ser terreno seguro. Uma zona de conforto onde eu podia passar despercebi­do sem ter medo de algum dedo apontado e uma gargalhada.

Eu, que até nem tenho muitas fotografia­s no Instagram e nem uso Facebook, percebi finalmente, quando tinha 12 ou 13 anos, que a minha mãe deixou-me exposto na televisão em nome de uma suposta correção parental – que nunca aconteceu depois – e de uma orientação que podia ser útil para ela. Percebi, finalmente, que a minha mãe tinha exibido o que eu sempre tinha querido esconder: a minha intimidade, as minhas frustraçõe­s, a minha falta de habilidade para lidar com situações de stress. Eu, que na escola fugia para a casa de banho para chorar de raiva à vontade, descobri aos 12 anos que tinha estado a chorar à frente de um milhão de pessoas.

Agora tenho 17 anos e continuo sem perdoar à minha mãe pelo que fez. Continuo a não entender o propósito daquilo tudo. E continuo a ser gozado de vez em quando pelos meus amigos.»

PS: a crónica é ficção. O programa, infelizmen­te, não é.

«DEPOIS DE VER AS IMAGENS TINHA VERGONHA DE ANDAR NA RUA. MEDO DE SER RECONHECID­O, QUE APONTASSEM O DEDO E PERGUNTASS­EM "NÃO É O MIÚDO QUE FAZIA ASNEIRAS?"»

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal