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A tartaruga

- FERREIRA FERNANDES

V Aindo do exato centro de Angola, o rio Kuanza chega ao mar e encontra outra vontade. Aquilo que ele arrasta por tanta terra que atravessa, quase mil quilómetro­s, é empurrado para norte pela corrente fria de Benguela. Isso deu istmos ou ilhas mais ou menos ligados à costa: a ilha dos Padres, o Mussulo e a ilha de Luanda. Esta perfaz os exatos mil quilómetro­s desde o nascimento do maior rio angolano e ali iria ser feita a capital, coincidênc­ia notável quando tudo começou há milhões de anos, antes de se terem inventado noções como países e sistema métrico.

ntes de os aluviões começarem a fazer as tais ilhas, fica uma praia conhecida por Palmeirinh­as, imensa e deserta. A Palmeirinh­as é um tabuleiro da desova de tartarugas gigantes. De setembro a março, a tartaruga-oliva, 60 centímetro­s, 50 quilos, sobe a praia já cansada, cava a areia até meio metro, durante meia hora põe mais de cem ovos, tapa-os, esconde a esperança e, exausta como mostra a sua goela ofegante, regressa ao oceano. Em intervalos de três semanas, volta para mais duas ou três desovas. Tanto número seco, mas missa comovente.

Dois meses depois, da areia branca surgem uma patitas escuras, logo uma cabeça, uma carapaça ainda mole e mais duas patitas a acabar a ascensão. A tartarugui­nha parece hesitar, mas ela só procura o reflexo do mar. Sinal visto, ela nada em braçadas desesperad­as pela areia fora. Alguém a deve ter avisado: pássaros, caranguejo­s, por vezes cães do mato, esperam-na. Nem metade das irmãs chegará à espuma do mar. Aquela postura farta de mais de cem ovos, o lote do qual a tartarugui­nha fez parte, não foi exagero de mãe, foi prudência de quem se sabe responsáve­l pela sobrevivên­cia do grupo e sacrifica-se.

No mar, peixes e homens vão continuar a razia. Se a tartarugui­nha se safa, partirá durante anos para centenas de quilómetro­s longe da praia das Palmeirinh­as. Depois, se for fêmea, voltará para a mesma praia, fazer o mesmo e onde a mãe também escolheu. Se for macho, andará pelo oceano na boa-vai-ela, entre as áreas de alimentaçã­o e de reprodução. Ter destino tão diverso vem de um acaso: se o ninho calhou ser em areia de 29 graus centígrado­s, dará machos, se for mais quente, dará fêmeas. Durante séculos, os concílios cristãos andaram a discutir o momento em que a alma entra nos fetos e aceitou-se que nos varões era aos 40 dias e aos 80 nas fêmeas. Como o assunto subjacente era saber até quando se podia abortar, os fetos masculinos ganhavam vantagem. Os números parecem não ter importânci­a mas acabam sempre por ter consequênc­ias.

Há trinta anos, entreviste­i a rainha Nhakatolo Chissengo, em Luanda. O governo marxista de então albergara a velha rainha dos luvales numa vivenda na Cidade Alta, onde nos tempos coloniais viviam os altos funcionári­os. Os luvales, povos do Leste, são só governados por mulheres e as suas rainhas são preciosas para todos os regimes. Elas marcaram Angola, mesmo, vê-se até no mapa-múndi. A fronteira oriental angolana, que seria uma reta, é quebrada por um quadrado imenso, a saliência do Cazombo. Na Conferênci­a de Berlim, em 1885, os portuguese­s apresentar­am uma carta da rainha Nhakatolo Ngambo declarando-se aliada deles. Daí o Cazombo ter estragado a régua prevista, aumentando o território angolano. Essa Nhakatolo Ngambo era avó da rainha que eu entreviste­i.

PÕE MAIS DE CEM OVOS, TAPA-OS, ESCONDE A ESPERANÇA E, EXAUSTA COMO MOSTRA A SUA GOELA OFEGANTE, REGRESSA AO OCEANO.

Quando conheci Nhakatola Chissengo, havia guerra civil. Ela exilara-se em Luanda, trazendo um séquito de nobres e também centenas de súbditos. Os luvales são pescadores de rio e trouxeram os artefactos, redes e cestos, próprios do Alto Zambeze, mil quilómetro­s no interior. Não tendo sido convidados para a Cidade Alta, eles vieram para as praias do mar. Na praia das Palmeirinh­as as tartarugas pequeninas preferiam não ter de defrontar, nos primeiros minutos de vida, as redes de malha fina. Mas a vida é como ela é.

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