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HÁ NOVA VIDA NO BAIRRO FANTASMA
Durante dois séculos, a moagem com interesse histórico, as fábricas de tanoaria e o arsenal do Alfeite deram vida à zona do Caramujo e da Romeira, na Cova da Piedade, em Almada. Depois de décadas ao abandono, o antigo bairro industrial é uma sombra fantasmagórica do passado. Mas tenta ganhar nova vida timidamente.
No Caramujo e na Romeira, na Cova da Piedade, pelo meio das ruínas da era industrial, surgem sinais de renascimento. Um festival urbano trouxe animação e mostras de graffiti ao vivo. Antigos armazéns transformaram-se em ginásios. Um velho refeitório de uma fábrica será convertido em edifício multiusos. E uma pizaria vai mudar-se para a que foi a rua mais movimentada e barulhenta da zona. Isto no meio do cenário de uma cidade fantasma aonde os antigos habitantes têm dificuldade em regressar.
As memórias e as histórias, essas, foram-se acumulando. Primeiro era a família real que escolhia o Palácio do Alfeite como local de veraneio. Mais tarde, o Hotel Club albergava os banhistas a poucos metros das muitas fábricas de cortiça que, a partir de meados do século XX, se instalaram na aldeia do Caramujo e na Quinta da Romeira Velha, e cujo apogeu ocorreu entre 1930 e 1955. Os moleiros chegaram antes, e um dos seus descendentes, António José Gomes, fundou em 1865 a moagem que viria a laborar durante um século: a Fábrica Industrial Aliança. Mais tarde, em 1936, surgiu o Arsenal do Alfeite, no lugar de um antigo estaleiro.
«Nasci, fui criada, namorei e casei no Caramujo», diz D. Berta, 89 anos, 66 dos quais no antigo bairro industrial. Os pais, vindos do interior, conheceram-se em Lisboa e mudaram-se para ali, onde abriram uma taberna. Depois de casar, Berta seguiu-lhes os passos. «Ficava em frente à fábrica das farinhas. Ainda lá está», recorda a antiga comerciante, que servia refeições à base de sopa e peixe frito.
D. Berta frequentou a escola primária no Alfeite, aprendeu a nadar na praia da Mutela e lavou roupa nos tanques da Romeira. Vai desfiando um rol de figuras do bairro: os aguadeiros Manuel e António, o «maneta» – «que não tinha um braço e vendia água com um carrinho de mão» – a «Beatriz bêbeda» ou o Martins, cujo estabelecimento ficava onde é hoje o restaurante Tia Bé, no Caramujo. À lista junta o senhor Jerónimo – o cliente que lhe levava os bilhetinhos de Álvaro, o namorado, com quem está casada há 64 anos. «Era uma zona de muito movimento.» A chaminé da moagem, que apitava à hora do almoço e da saída, causava desassossego e o barulho era constante. «Quando a fábrica parava para fazer limpeza era um silêncio!...»
No Cais do Caramujo, as fragatas descarregavam o carvão para as vagonetas que seguiam pelos carris até perto da chaminé da fábrica e que hoje ainda atravessam a rua. Rosa, a filha de Berta, lembra-se de a água vir até perto das casas e de tudo ser desembarcado ali: trigo, cevada, louças de barro e carvão de pedra. O bairro apenas parava ao domingo, dia de visitar
SE O PASSADO DO BAIRRO DO CARAMUJO FOI AGITADO, O FUTURO É INCERTO. O ANTIGO EXECUTIVO CAMARÁRIO TINHA PENSADO PARA A ZONA UM PERÍODO DE USO TRANSITÓRIO, COM A REABILITAÇÃO DE TRÊS EDIFÍCIOS JÁ NESTE ANO. MAS POR AGORA TERÃO DE ESPERAR. E O BAIRRO TAMBÉM.
os amigos ou de deixar o assado numa das padarias do bairro, que cedia os fornos à vizinhança. Há 23 anos, D. Berta trespassou o negócio e saiu do Caramujo. Não gosta de voltar ao bairro. «Era uma coisa digna de se ver e agora não há nada ali.»
Também Hélia Santos, de 59 anos, que nasceu e ali viveu até ao início dos anos 1990, evita voltar. « As recordações agradáveis já não existem.» O pai era guarda-fiscal e chegou ao Caramujo em 1953. Mais tarde mudaria de posto mas continuou a viver ali. « A entrada principal do Alfeite ficava perto e de manhã e à tarde as ruas enchiam-se de militares. E havia também uns carros pretos, de Estado, que traziam os oficiais.» Das fábricas, lembra-se do mar de gente que enchia a rua às cinco da tarde: as condições de vida eram modestas, com várias famílias a partilhar a mesma casa e a maioria regressava do trabalho a pé.
Hélia recorda-se do convívio entre vizinhos, com conversas na rua ou à janela. As padarias abriam à tarde para garantir que quem saía do trabalho levava pão fresco para casa. Hélia soma ainda às memórias as fragatas vindas do Ribatejo, que chegavam no verão ao cais do Caramujo carregadas de melão, e as carroças que, depois de vazias, levavam os miúdos do bairro a passear.
As idas à «cooperativa» também eram uma constante. Fundada por corticeiros, em 1893, a Cooperativa de Consumo Piedense chegou a ser considerada a mais importante da Península Ibérica. Ser sócio implicava ter dinheiro para pagar as quotas e dava um certo estatuto. Na cooperativa, que era ponto de encontro para reuniões políticas, também habia assistência médica, enfermagem e uma biblioteca.
A classe corticeira tinha uma grande capacidade reivindicativa e, ao longo do século XX, o quotidiano do bairro foi marcado por várias greves, uma das quais, em 1943, ganhou fama nacional. Muitos dos habitantes tinham consciência política. Em casa de Hélia ouvia-se a emissão de rádio da BBC em surdina. «Lembro-me de a GNR fazer rusgas à noite. Eu era pequena e os cavalos eram enormes – parecia que os soldados ficavam ao nível do
primeiro andar das casas. Um amigo do meu pai chegou a ser preso…»
Passear com António Policarpo pelo bairro é receber uma aula de história. O pai veio trabalhar para a construção naval e António, com 15 anos, também foi para o Alfeite – e é um interessado pelo passado do local. O ponto de encontro, do outro lado da estrada que passa junto ao Hospital Particular de Almada, revela-se fonte infindável de informação.
«A ponte do Caramujo passava por cima de uma linha de água e ficava aqui, quase ao lado do restaurante», explica enquanto mostra uma imagem antiga. A ponte, construída em 1890, foi demolida em 1939 aquando da instalação do saneamento. Ali perto, a ameaçar ruína, está o edifício onde, no início da década de 1860, foi fundada a Sociedade Filarmónica Caramujense – a que mais tarde um grupo de cidadãos próximos da maçonaria e do movimento republicano mudaria o nome para Sociedade Filarmónica União Piedense (SFUAP), que existe até hoje.
«A população vinha de outros pontos do país para trabalhar nas vinhas – a Quinta da Romeira tinha vinha e a região era afamada – mas chegou a filoxera e foi a indústria corticeira que veio salvar a situação», recorda António. Um pouco mais à frente, lembra que antes da moagem existiam ali moinhos de maré – pelo menos desde o século XVI – e, ao virar da esquina, junto ao Tejo, conta histórias de contrabando nas barbas da guarda fiscal.
E junta-lhes histórias dos «assaltos», os encontros entre rapazes e raparigas à socapa dos mais conservadores. «As moças eram supervigiadas, mas juntavam-se quatro ou cinco em casa de quem tivesse pais mais permissivos e onde houvesse gira-discos, as meninas faziam bolos e estavam feitas as condições para um “assalto”.»
Orlando Pedroso era uma presença popular nesses «assaltos» que animavam a Cova da Piedade nos anos 1960. Afinal, era ele o «dono da música»! O pai – o «Pedroso das telefonias» – tinha-lhe cedido um canto do estabelecimento onde Orlando vendia discos.
Orlando descende de uma linhagem de tanoeiros. O bisavô tinha a sua oficina no Caramujo e, no livro Almada Antiga e Moderna, de Alexandre M. Flores, é possível ver a cópia do contrato de arrendamento assinado a 1 de janeiro de 1887 pelo mestre tanoeiro António Pedro: a renda – 36 mil réis anuais – deveria ser paga adiantada «do Natal ao São João».
O bulício era uma constante. «A decadência começou só nos anos 1970 e acentuou-se a partir de então», diz Orlando. «Nos anos 1960, lembro-me dos operários da Mundet e da Rank que carregavam fardos de cortiça com mais de sessenta quilos às costas!»
Mas o Caramujo também oferecia oportunidades de lazer: «Pescava-se enguias. Era a chamada pesca ao guizo: tínhamos uma linha com uma chumbada, uma tabuinha com um guizo que tocava quando o peixe picava», recorda o bisneto do mestre tanoeiro, que lembra ainda as sessões de cinema na SFUAP, «o cinema do piolho».
E se o passado do bairro foi agitado, o futuro é incerto. A longo prazo, deverá ser integrado no plano de urbanização pensado para aquela zona ribeirinha e o antigo executivo camarário tinha pensado para a zona um período de uso transitório, com a reabilitação de três edifícios já neste ano. Para a moagem – o primeiro edifício em Portugal com uma estrutura integralmente de betão armado – existem planos de um espaço museológico dedicado à indústria. Mas por agora o grande edifício terá de esperar. E o bairro também.
HÉLIA SANTOS NASCEU E ALI VIVEU ATÉ AO INÍCIO DOS ANOS 1990. O PAI ERA GUARDA-FISCAL E CHEGOU AO CARAMUJO EM 1953. RECORDA-SE DO CONVÍVIO ENTRE VIZINHOS, COM CONVERSAS NA RUA OU À JANELA. HÉLIA SOMA AINDA ÀS MEMÓRIAS AS FRAGATAS VINDAS DO RIBATEJO, QUE CHEGAVAM NO VERÃO AO CAIS DO CARAMUJO CARREGADAS DE MELÃO, E AS CARROÇAS QUE, DEPOIS DE VAZIAS, LEVAVAM OS MIÚDOS DO BAIRRO A PASSEAR.