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con- tra LEVANTE-SE UM SNIPER À PRESSÃO

- POR Rui Cardoso Martins

“Estávamos a bloquear carros na rua”, começou o polícia municipal, relatando uma banal manhã de bloqueios ao sol. A vida é bela e as coimas fazem parte dela.

[Ah, pensam que é só vir para aqui bloquear, acham que é assim?!] Não se conhece o núcleo dos pensamento­s de Nuno, a que temperatur­a funde a rubro-branco a sua alma rodoviária. Mas da boca para fora ele é bem explicado. O polícia: — Passa um indivíduo e começa a gritar: “Vão à merda, vão embora daqui, chulos, vieram para aqui roubar!” A minha reacção ao que ele dizia foi perguntar-lhe se algum dos carros era dele. Apesar da delicadeza, o homem escapou para um prédio. Os polícias destacados para aquela zona de Lisboa continuara­m o seu bloqueia aqui, tranca ali, reboca acolá. Estavam rodeados de edifícios de média altitude, todos com janelinhas. Vendo agora a geografia do terreno, a fila de carros, o passeio e um relvado atrás, era

o sítio ideal para uma emboscada. Quem já pisou uma cidade em guerra civil sabe que esta, desafortun­adamente, é coisa pouco uniforme. Aqui estás bem, na esquina a dez metros estás mal. Podes dormir e entrar-te uma bomba pelo telhado, podes mudar para um local seguro e era para aí que afinal estava marcada a matança do meio-dia. Mas contra a lotaria há uma espécie de livro de regras, como um código da estrada. Em Sarajevo, no princípio dos anos 1990, viam-se cartazes improvisad­os nos postes dos cruzamento­s que, em vez de Stop, em vez de dê prioridade, em vez de proibido virar à esquerda (esses ninguém respeitava, podia-se conduzir à noite sem luzes) avisavam: “Atenção, Snipers!” E, tal como perto dos hospitais se desenha uma corneta, ali era uma carabina com mira telescópic­a e relâmpago no cano. Correr na neve até ouvir um crack! ao fundo e um silvo rodopiante sobre a cabeça. Com estudo e sorte, tirava-se a carta por mais um dia.

A Polícia Municipal de Lisboa não combate guerrilha urbana, é mais bloqueios de pneus. Não esperava o dia em que um ama- dor de caça leve resolveu mudar para a grossa. A sorte dos guardas foi o material ser fraco.

— Ouvimos um tiro. Uma explosão e um impacto na nossa viatura. Refugiámo-nos logo atrás da carrinha.

— Tem a certeza que era um tiro?

— Sim, de uma pressão-de-ar. A minha dúvida é se não era ajudada por alguma botija de gás, que dá muito mais força ao disparo. Houve um segundo disparo e só vimos um vulto à janela. Um terceiro andar. Não vi a arma, mas era a única que estava aberta. Fizemos diligência­s e descobrimo­s que era do mesmo senhor que nos tinha insultado. Foi mais fácil do que eu pensava. Não esperava que ele viesse a sair...

Um sniper de anedota. O guarda e o camarada recolheram na relva um chumbinho de espingarda “flober” espalmado, um insecto de chumbo, mas é tiro que vaza olhos e há fotos dos buracos na chapa. Tem de se provar que os tiros pertencera­m a Nuno. Veio de blazer e calças em bombazine castanho-claro, ombros extensos e cabelo metalizado da cor elegante dos tachos (e de quase metade dos automóveis em Portugal, ide à janela ver). Custa imaginá-lo no seu macacão de mecânico. Já passou dos 40 e vive com a mãe. Mas Nuno já disse em tribunal que não disparou. Talvez um vizinho? Pelo contrário, disse o polícia, ele confessou que “estava muito zangado porque já lhe tinham bloqueado o carro na semana anterior”.

— Também admitiu que tinha uma pressão-de-ar, mas que sobre isso não ia dizer mais nada.

A juíza voltará a Nuno e à sua versão menos oleada: a espingarda teria sido destruída antes do dia dos acontecime­ntos.

— A minha pressão-de-ar avariou-se a certa altura e como não justificav­a o valor do arranjo... Era uma coisa barata, e quando parte a mola...

— Para que é que a tinha?

— Costumava ir praticar tiro ao alvo com um amigo.

— Porque que é que disse à polícia que tinha uma pressão-de-ar?

— Eu disse à polícia “já tive”, não disse “tenho”!

A juíza suspirou.

— O senhor vai dizer porque é que se desfez da pressão-de-ar ou vou ter de chamar o seu amigo?...

O sniper saiu como um passarinho ferido na asa.

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