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QUE FAMÍLIA DE LADRÕES
Quando entrei o interrogatório ia a meio, mas eles eram tantos, e a matéria tão extensa e elástica, que parecíamos estar a ouvir o mesmo crime tocado num acordeão, abre, fecha, enche de ar, volta ao compasso, repete a sanfona no baile.
— E o senhor ia levantar no ATM 400 euros, ficava com 200 para si e 200 para a sua mãe.
— Sim.
— E o senhor aceitou um cartão de outra pessoa dado pela sua mãe e não fez perguntas, é isso?
— Exactamente.
Parecia ouvir-se as patinhas de um insecto a correr nos cantos da sala, mas era a juíza que teclava depressa num computador portátil. Ao lado desta, e no mesmo espanto aborrecido, o procurador desenrolava factos e estudava aquele friso de notáveis. Para já, no banco dos réus, o filho 1, o filho 2 e a mãe. Conceição, meio cega e encurvada e dois filhos em traje desportivo, um de negro, outro de branco e ténis imaculados. Cabelo oxigenado à Mundial da Rússia. Percebe de carros, compra-os velhos e revende-os quitados. Lá fora esperavam as noras 1 e 2, a primeira, arrependida, a segunda, dez unhas de gel rosa e descaramento. Foram em barda à sala de tribunal por crimes ainda húmidos. Chegam para todos, como um saquitel de tremoços. Levantamentos duplos de 200 euros um minuto antes da meia-noite, novos levantamentos a seguir, expedições a todas as zonas multibanco e centros comerciais da Grande Lisboa, compra de ténis, blusões, aparelhagens de som, iphones de última geração, transferências bancárias de dois mil euros, mais levantamentos e fatos de treino. A juíza e o procurador liam o acumulamento de riqueza e consumo rápido da família. O raide durou uma semana e rendeu 14 mil euros. Como? Um velho senhor acamado num lar de idosos tinha o código colado no próprio cartão multibanco. Quem o roubou foi Conceição, a senhora que tratava dele no lar!
— O senhor fez estes levantamentos ou não? Os senhores era à vez, já se percebeu tudo aqui pelas declarações do seu irmão.
— Sim.
— Ganhava por semana 250 euros e efectuou uma compra de 500 euros logo ali, e a sua mulher não lhe disse nada?!
— Não. Foi uns ténis, um fato de treino e...
— E a sua mulher nunca lhe perguntou nada?!
— Não. A gente tínhamos uma vida estável.
O mais notável foi a explicação. A mãe disse-lhes que podiam usar
o cartão de um amigo, mas que “não gastassem muito”.
— Então era um amigo benemérito da sua mãe! Não estranhou?
— Estranhei um pouco.
— Então que estranheza foi essa?
— Ela disse que era de um amigo... a minha mãe já teve muitos companheiros...
— Mas o código do cartão não estava lá atrás?
— Estava um papel... Perguntei de quem era o cartão e ela disse que era de um amigo. Disse que ele chegou ao pé dela, perguntou se precisava de ajuda e deu o cartão com código...
— É isso?!, fungou o procurador, enjoado. — É.
Só uma semana depois o multibanco comeu o cartão. A única pessoa arrependida é a mulher do irmão 1. É educadora.
— O que é que pensa disto?
— Acho que foi muito mal feito. Arrependi-me. Eu queria ter a possibilidade de pedir desculpa a essa pessoa. Devia ter pensado bem.
Para a nora 2, pelo contrário, foi fácil como abanar as ancas e retinir pulseiras metálicas. O procurador: — Acha que alguém lhe estava a dar autorização para comprar um telemóvel que valia mais do que o seu salário?
— Sim.
— Costuma gastar 500 euros de uma vez?...
— Costumo, quando tenho.
A cultura do “tenho um amigo que me ajuda”. A “narrativa” de José Sócrates sorvida, assimilada, digerida pelo povo. Cenas da luta de classes no pós-josésocratismo. É preciso algum esforço para não descer tão alto. Só faltou a mão cheia de filhos menores da família, todos de “touchscreen” caríssimo nas mãos. Roubaram um velhote acamado que agora já está morto. A vida sem reflexão não merece ser vivida, disse no seu julgamento Sócrates — o verdadeiro, não o impostor — antes de lhe darem a beber a cicuta. Mas isso foi na Grécia há muito tempo.
Que família.