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QUANDO ISRAEL NÃO ABRE A PORTA
Inspirados pela história da adolescente judia morta pelos nazis, milhares de israelitas preparam-se para esconder refugiados em casa se o Governo voltar a um programa de deportações. Há dez anos que 38 mil africanos vivem no país sem estatuto legal. O tem
Em Telavive, o jornalista Tiago Carrasco conheceu uma comunidade com a memória do Holocausto ainda próxima da pele pronta a impedir que a História se repita. A preocupação centra-se nos que chegam da Eritreia e do Sudão, a quem o Governo israelita não concede sequer o estatuto de refugiados.
Yikealo Beyene cresceu durante a guerra agarrado à leitura das páginas soltas que o vento e os soldados deixavam na sua aldeia. Tornou-se um estudante de Psicologia com ideias românticas num país, a Eritreia, pouco dado a sonhadores. Aos 21 anos já tinha sido detido duas vezes: a primeira por ter escrito um artigo “politicamente provocante” e a segunda por “pensar em fugir”. Foi interrogado e torturado. “Quando saí, reparei que estava a ser perseguido na rua e temi pela vida”, diz. “Tinha de fugir mas não podia dizer nada à minha mulher, aos meus pais e irmãos para não os colocar em risco. Atravessei a fronteira para a Etiópia, pensando que voltaria a casa em breve, quando o Governo caísse. Nunca aconteceu. Passaram-se 13 anos e nunca mais vi os meus pais.”
Não foi o único. Desde então, quatro a cinco mil eritreus abandonam o país a cada mês. Um êxodo massivo justificado por um regime de partido único liderado desde 1993 por Isaias Afwerki, que não tolera críticas, aprisiona, tortura e executa opositores e força todos os cidadãos maiores de 18 anos a um serviço militar de duração indefinida. “No mínimo, são 18 meses. Mas pode ser uma vida inteira”, realça Yikealo. “Os soldados são reféns do Estado. São forçados a trabalhar em tudo aquilo que o Governo quiser, geralmente sem vencimento.” Só a escravidão é garantida. O resto são meras probabilidades.
Yikealo foi intercetado na fronteira e enviado para um campo de refugiados na Etiópia, onde viveu dois anos com milhares de outros eritreus. Era um lugar solitário, poeirento e com temperaturas que chegavam aos 45 graus. Tal como em criança, entregou-se aos livros que encontrou na biblioteca do acampamento para se alhear da realidade. Leu Osho, Tony Robbins e as aventuras de Robinson Crusoe. “As personagens transformaram-se nos amigos que não tinha ali”, conta. Até que dentro de um diário descobriu a sua melhor companheira: Anne Frank. Devorou as páginas da obra escrita entre 1942 e 1944 pela menina judia, aos 13 anos, enquanto estava escondida dos nazis num anexo do escritório em que o seu pai trabalhava em Amesterdão, na Holanda. “Li tudo na expectativa de que a Anne Frank fosse libertada do campo de concentração”, recorda. “Quando percebi que tinha morrido fiquei devastado. Tive de procurar um lugar para chorar sem ser visto.” A experiência foi de tal modo poderosa que Yikealo decidiu traduzir o “Diário de Anne Frank” para tigrínia, a sua língua materna.
Quando estava prestes a terminar, rebentaram motins no campo e alguns dos seus colegas foram raptados. Pagou a traficantes para o levarem para o Egito. “Não me deixaram ficar com os meus pertences, nem os poemas que escrevi nem o caderno em que estava a tradução”, conta. “A viagem foi dura mas essa perda foi o que mais me custou.” No Cairo, disseram-lhe que a melhor opção era ir para Israel. Lembrou-se da sua amiga. “Eu não sabia como eram os judeus, pouco conhecia de Israel, mas pensei que um povo que tinha sido perseguido como a Anne Frank devia entender a minha situação.” E quando se aproximava do arame farpado na fronteira, debaixo do fogo disparado pelas patrulhas egípcias, Yikealo imaginava que do outro lado estava a família de Anne, que certamente o
acolheria. Mas, primeiro, apareceu-lhe um soldado. Ajoelhou-se e perguntou-lhe: “Conhece a Anne Frank?”. “Sim, claro”, respondeu o militar. “Posso falar com a família dela?”, arriscou. O soldado sorriu. Deu-lhe água, pão e compota.
Levaram-no para um quartel onde permaneceu alguns dias até o deixarem numa estação de autocarros. Encontrou trabalho como segurança de uma empresa de construção e com o primeiro ordenado comprou o “Diário de Anne Frank”. Voltou a traduzi-lo de uma ponta à outra, assinando a primeira versão mundial da obra em tigrínia. Mas nunca conheceu os parentes da menina. E nunca foi acolhido: em oito anos, e apesar de se ter licenciado, conseguido o mestrado e de falar hebraico fluentemente, Israel não lhe concedeu o estatuto de refugiado. Tinha um visto de “libertação temporária”, de renovação obrigatória a cada três meses, que não lhe permitia conduzir ou trabalhar legalmente e lhe aplicava sanções sobre qualquer rendimento. “Conheci pessoas fantásticas de quem me tornei amigo e que apoiaram os meus estudos. Mas o tratamento que recebi nos departamentos de imigração e a incerteza a que me sujeitaram não eram expectáveis da parte do povo de Anne Frank”, sublinha Yikealo, que fala no passado porque em 2016 conseguiu juntar-se à esposa nos EUA através do programa de reagrupamento familiar. Hoje, aos 34 anos, trabalha na assistência técnica de uma grande empresa. Mas não deixa de acompanhar com preocupação as notícias sobre os refugiados africanos em Israel: em janeiro, o Governo de Benjamin Netanyahu anunciou que o destino dos 38 500 requerentes de asilo passava pela deportação forçada ou pela detenção por tempo indefinido, dando início a uma sucessão vertiginosa de acontecimentos que ainda não teve conclusão.
FAZER VIDAS MISERÁVEIS
Os exilados africanos, na sua maioria provenientes da Eritreia (70%) e do Sudão (20%), entraram em Israel através do Egito entre 2005 e 2012, altura em que o Knesset avançou com a construção de um muro na fronteira sul que barrou as chegadas ilegais. Desde então, cerca de 20 mil deixaram o país, mas os restantes fixaram-se maioritariamente em três bairros do sul de Telavive, uma zona historicamente habitada por judeus Mizrahi, originários do Médio Oriente, maioritariamente conservadores, pobres e da classe operária, que se viram ameaçados pelos estrangeiros. Culparam-nos por um aumento da delinquência, da criminalidade e da decadência urbana, problemas que muitos já tinham identificado na zona antes do movimento migratório. Um fenómeno do século XXI atirou mais achas para a fogueira: deslumbrados com a gentrificação, os senhorios de Telavive Sul começaram a despejar famílias judaicas para arrendar os apartamentos a estudantes e hipsters deslocados do centro, bem como a imigrantes que se aglomeram numa mesma morada. Para os moradores há um só demónio: os africanos.
De modo a segurar a sua base eleitoral, ciente de que dois terços dos israelitas eram favoráveis à deportação e que esse número ascendia aos 84% entre os tradicionais-religiosos, o executivo – uma coligação encabeçada pelo Likud, de centro-direita, com pequenos partidos nacionalistas e ultrareligiosos – comprometeu-se prontamente a expulsar os eritreus e os sudaneses. Mas não pôde. À luz
da Convenção das Nações Unidas de 1951, de que Israel, à época um país de fugitivos e sobreviventes do Holocausto, foi um dos 26 signatários originais, os refugiados não podem ser deportados para países onda corram o risco de serem perseguidos. “Ninguém, nem mesmo este governo, pode dizer que a Eritreia e o Sudão são seguros”, defende Asaf Weitzen, advogado especializado em direitos humanos. “Não poder deportá-los para o país de origem foi a primeira contrariedade da coligação. Por conseguinte, a estratégia passou a ser tornar as suas vidas miseráveis.”
Aryeh Deri, ministro do Interior, tornou pública uma posição que já era conhecida: “Uma vez que não os conseguimos expulsar, temos de encorajá-los a partir.” O encorajamento passou por chamá-los de “infiltradores” e de “imigrantes económicos ilegais” em vez de refugiados, não registar ou proibir o acesso aos pedidos de asilo, detenções sumárias na prisão de Saharonim ou de Holot, ambas no deserto do Negev, e emissão dos “vistos de libertação temporária”, que não contemplam qualquer direito além do de permanecer em Israel até à renovação seguinte, negando-lhes o direito a trabalhar dignamente, a conduzir ou a usufruir de cuidados médicos que não sejam emergências. “Eles entraram ilegalmente. Do que estavam à espera? Além do aumento da criminalidade, também colocam em causa o equilíbrio demográfico do país”, diz fonte ligada ao partido do governo, que reclamou anonimato. Os dados apontam para uma realidade diferente: os requerentes de asilo representam 0,5% da população israelita. Em mais de uma década, a Autoridade Israelita para a População e Imigração aprovou somente 11 pedidos (dez eritreus e um sudanês) – uma taxa de aceitação de 0,056%, a mais baixa entre todos os países ocidentais.
Sernay Dori, de 28 anos, faz parte dos restantes 99,44%. Em 2007, a fuga da Eritreia e do marido desaguou em Israel, depois de terem passado por campos de refugiados, noites ao relento e pelas mãos de traficantes beduínos que lhes ficaram com o dinheiro, relógios e anéis. No deserto do Sinai, viram corpos desmembrados e desembolsaram 1 000 euros sob ameaça de lhes tirarem órgãos. À chegada, ficaram três meses presos em Saharonim, onde protagonizaram uma greve de fome. Já em Jerusalém, Sernay aprendeu hebraico em quatro meses. “Tudo isto para quê? Passaram-se 11 anos e continuamos sem estatuto. Não podemos pensar no futuro nem fazer planos porque nos podem deportar amanhã. É muito difícil viver assim”, explica, numa sala do Centro da Comunidade Africana, onde trabalha como intérprete e tem um filho, de oito anos, fluente na língua nacional. “Tenho três filhos nascidos em Israel. Este tem amigos judeus e sente-se israelita. No entanto, no certificado de nascimento só vem o meu nome e o dele. Oficialmente, não tem pai. Nem nacionalidade. Tem direito à educação porque a lei o prevê mas, tirando isso, não goza de qualquer regalia”, denuncia. Entre 2014 e 2016, Sernay foi aliciada pelos agentes de imigração a deixar “voluntariamente” o país. “Diziam-me que me iam dar muito dinheiro para ir para um país africano seguro onde me ia ser concedido o estatuto de refugiada. Mas eu já sabia que estavam a falar do Ruanda ou do Uganda”, conta. “Não estava interessada”. E foi o melhor que fez. Segundo o relatório “É Melhor uma Prisão em Israel do Que Morrer no Caminho”, publicado pelos investigadores Lior Birger, Shahar Shoham e Liat Bolzman com o apoio da Hotline para Refugiados e Migrantes, 3 959 refugiados da Eritreia e do
Sudão aceitaram, mediante pressão e o pagamento de 3 000 euros, trocar Israel pelo Ruanda. As entrevistas a 19 destes homens, entretanto chegados à Europa, onde a condição de refugiados lhes foi reconhecida (a taxa de sucesso para eritreus na União Europeia ronda os 90%), são contundentes: todos eles foram extorquidos do documento que traziam de Israel à chegada a Kigali, entregues a redes de tráfico humano e sujeitos às mais cruéis atrocidades no caminho até à Líbia, de onde atravessaram o Mediterrâneo rumo a Itália. “Eles fecham-te em casa deles, como numa prisão. Se pagares, é um sítio grande. Se não pagares, é pequeno. Talvez 400 pessoas. O corpo pica por todo o lado, não há água, não há duche. Estive lá três meses. Vi pessoas que não sabia se estavam vivas ou mortas. Estavam muito doentes. Um homem morreu. As pessoas choravam o dia inteiro. Espancamentos todos os dias. Que vida...”, exterioriza Kiflom, um dos entrevistados, sobre a sua passagem pela Líbia. Muitos dos que saíram “voluntariamente” de Israel perderam a vida. Ninguém sabe quantos.
Assim, quando o acordo de Israel com o Ruanda se estendeu a um programa de deportações forçadas em 1 de abril de 2018, os alarmes dispararam nas consciências de muitos judeus. “Tiveram o cinismo de marcar o início das deportações para a véspera da Pessach [celebração que assinala a libertação dos judeus da escravidão no Egito e o seu êxodo para a Terra Santa]”, lamenta a rabina Susan Silverman. “Um governo judaico a fazer isto? É uma loucura! Estes refugiados somos nós. São os nossos avós.”
ESCONDER REFUGIADOS EM CASA
Silverman convocou uma reunião de emergência à qual compareceram cidadãos comuns e muitos rabinos. “Perguntei quem estava disposto a acolher refugiados. Toda a gente levantou a mão”, lembra. O plano era juntar pessoas dispostas a esconder eritreus e sudaneses em casa na eventualidade de as autoridades começarem à procura deles para os deportar. “Publicámos a ideia nas redes sociais e, no dia seguinte, recebi milhares de mensagens de pessoas de todo o país e de todas as idades a oferecerem-se para ajudar”, salienta Silverman, que chamou inicialmente o movimento de Santuário Anne Frank. Para evitar analogias com o regime nazi, o projeto mudou de nome para Miklat, que significa “refúgio”, uma palavra que surge dez vezes na Torah. A semântica é a mesma: judeus a proteger africanos das garras das autoridades como poucos fizeram aos seus antepassados na Europa dos anos 1930. Mais de 2 500 estão prontos. “Uma mãe solteira de Telavive Sul escreveu-me a dizer que tem um quarto livre e está disposta a receber dez refugiados”, concretiza a rabina.
Sidra Ezrahi é uma delas. Esta professora Emérita de Leitura Comparada na Universidade Hebraica de Jerusalém dedicou dois terços da sua carreira ao estudo dos efeitos do Holocausto na sociedade israelita e há meio século que se envolve em lutas políticas – fez campanha por Kennedy nos Estados Unidos da América, de onde é natural, e participou nos primeiros protestos contra a ocupação da Cisjordânia aquando da Primeira Intifada. Agora, aos 75 anos, fez
o que nunca sonhara - ofereceu-se para esconder refugiados. “Move-me a ideia passada em ‘Morrer Sozinho em Berlim’, de Hans Fallada, de que pessoas simples, que não vão ter um impacto na História, se devem levantar para serem contadas. Há uma expressão em
hebraico que explica porque me meti no Miklat: num lugar onde não há seres humanos, sê um ser humano”, diz, na sua casa num tranquilo bairro de Jerusalém.
Sidra desafiou dezenas de pessoas a convidarem famílias africanas para partilhar o jantar de Pessach, um dos eventos mais importantes do calendário judaico. Calhou-lhe a família de Sernay: “Acho que todos fomos transformados pelas suas histórias”, afirma. Sernay e o marido relataram a sua viagem depois de ouvirem a narração da libertação da tribo israelita do Egito e a sua fuga pelo deserto até ao que hoje é Israel. Episódios similares separados por milénios. “O filho deles estava a ouvir tudo pela primeira vez. Ficámos em lágrimas. É impressionante a dignidade que mantiveram depois de tudo o que passaram”, refere. Causou-lhe também estupefação que os filhos do casal soubessem todas as canções do ritual judaico. Mesmo sendo apátridas.
Nascida em Budapeste em 1944, Veronika Cohen acha que tinha de ser muito hipócrita se não respondesse à chamada do Miklat. Sobreviveu ao Holocausto, o pai escapou duas vezes de Auschwitz e viveu como refugiada na Áustria. “Acho que é um gesto maravilhoso mas pouco prático”, sintetiza. “Já não vivemos no tempo de Anne Frank e, portanto, esconder pessoas na cave não é eficaz. Através de um telemóvel sabe-se do paradeiro de toda a gente.” No entanto, não descarta a hipótese de acolher um exilado. “Por exemplo, se os proibirem de trabalhar e eles ficarem sem teto e sem comida para alimentar os filhos, é nosso dever albergá-los. É nesse sentido que vejo maior utilidade nisto. E também como uma clara manifestação de que há israelitas dispostos a quebrar a lei por a considerarem racista.” Veronika acredita que o Governo usa a memória do Holocausto para retirar proveito político. “Tentam passar a mensagem de que os africanos vieram para tomar controlo do país e para nos destruir. Como sobrevivente do Holocausto, não me revejo neste discurso. E não sinto que as minhas opiniões sejam ouvidas pelo poder atual.” Também Sidra tece considerações sobre o tema: “Impera a mentalidade de que nós somos as principais vítimas e que não há ninguém que seja vítima quando comparada connosco”, insiste. Veronika e Sidra estavam juntas quando, a 2 de abril, Netanyahu anunciou que tinha chegado a acordo com as Nações Unidas para colocar 16 250 refugiados em países ocidentais, permanecendo os restantes em Israel com residência temporária. Nessa altura, já o acordo de deportações com o Ruanda tinha ruído, por o país africano não ter resistido à pressão internacional e por decisão do Supremo Tribunal em Israel. O acordo com a ONU, ao invés, parecia uma boa solução. “A direita ficaria satisfeita por ver partir metade dos ‘infiltradores’, a esquerda por ser uma solução segura e por metade ficar cá, os refugiados teriam finalmente os seus direitos reconhecidos aqui e nos países de colocação e o Governo pouparia os 250 milhões de euros que o pacto com o Ruanda ia custar”, analisa
o advogado Asaf Weitzen.
Houve brindes, festa e muitos sonhos. Não para todos. A ala mais à direita do Likud e os partidos nacionalistas consideraram o documento desastroso. Naftali Bennet, ministro da Educação, disse, após o anúncio, que a decisão “tornava Israel num paraíso para os infiltradores”. Seis horas depois, Netanyahu voltou com a palavra atrás e cancelou o protocolo, anunciando a procura de um novo “terceiro país africano” - o Uganda, todos sabiam – para as deporta- ções forçadas e a reabertura das prisões no Negev. O que se passou nessas seis horas? O primeiro-ministro alegou sensibilidade perante as queixas dos residentes de Telavive Sul. “Mas ele nem esteve lá. Reuniu com ativistas de direita e ministros conservadores que ameaçaram retirar-lhe o apoio se mantivesse o tratado. Tudo se passou no palco político”, observa Weitzen. Para Veronika foi “uma vitória do mal contra o bem, porque se destruiu uma solução boa para todos em prol do ódio”.
No sul de Telavive, num prédio degradado com africanos a dormir numa loja no rés-do-chão, Halefom Sulthan, de 38 anos, apaga do quadro os rabiscos feitos na tarde anterior, que mostravam aos alunos da comunidade eritreia como pedir estatuto de refugiado na União Europeia. Tudo em branco novamente. “O que todos queremos é voltar para casa. Depois, é viver com dignidade em Israel. Não sendo o acordo perfeito, esta opção dava-nos garantias de estabilidade, que é o que não temos na situação em que vivemos atualmente”, aponta. “Porque nos querem mandar para o Uganda? Porque tinham a hipótese de nos mandar para países desenvolvidos e preferem forçar a nossa ida para países inseguros?” Para Tesfu Bariagaber, as esperanças acabaram. É finalista do curso de Finança e só pensa em arranjar emprego no estrangeiro para deixar Israel: “Viver sob o fantasma da deportação é como ter a cabeça numa guilhotina”, compara.
DESFECHO IMPREVISÍVEL
A 24 de abril, os refugiados puderam dormir mais descansados. O governo informou o Supremo Tribunal que ia parar de emitir ordens de expulsão e anular todas as que tinham sido feitas. “A deportação forçada para um terceiro país não é uma opção nesta fase”, dizia o comunicado. Razão não oficial: o Uganda rejeitou a negociação. Os eritreus e os sudaneses têm de renovar os vistos de libertação temporária periodicamente como faziam antes do plano de expulsão. Ainda assim, o executivo sublinhou que “Israel vai continuar a atuar no tema dos ‘infiltradores’, incluindo tentativas de os encorajar a partir de livre vontade ou recolocá-los involuntariamente, de acordo com a lei”.
No Parque Levinski, o epicentro da vida social dos africanos no sul de Telavive, é uma manhã de incerteza como tantas outras; um homem dorme no escorrega do parque infantil, outro tenta vender “nice guy” – uma droga sintética transformada em epidemia nesta zona da cidade – enquanto um grupo de eritreus espera numa esquina por uma oferta de trabalho diário. Um biscate na construção vale 40 euros, mais do que o salário médio mensal em Asmara, capital da Eritreia. “Eles podiam ser uma mais-valia económica para
o país”, considera Susan Silverman. “Em vez de trazerem trabalhadores da Ásia e do Sri Lanka, por quem pagam fortunas a empresas intermediárias, podiam aproveitar esta mão-de-obra que já está no país. No entanto, essas empresas de recrutamento patrocinam as campanhas dos partidos nacionalistas e não há interesse político em prejudicá-las.”
O impasse não congelou o Miklat. Pelo contrário, fortaleceu-o. Silverman conta agora com 70 kibbutz prontos a integrar eritreus e sudaneses nas suas comunidades agrícolas. Está a desenvolver parcerias com grandes empresas para empregarem requerentes de asilo. Sessenta voluntários espalhados pelo país integram um pla-
no desenhado para receberem refugiados durante três meses, dando-lhes todas as condições para começarem uma nova vida longe dos subúrbios de Telavive. Oportunidades não faltam. “Tenho ainda o sonho de fundar a Universidade Startup Nation para Refugiados, aproveitando o facto de Israel ser o segundo país do mundo com mais startups, para dotar os refugiados de atributos que lhes possam ser úteis quando voltarem para a Eritreia, como a construção de painéis solares. E gostava de transformar o centro de detenção de Holot num campus universitário”, anuncia.
Também há esforços no s entido contrário. O governo continua a averiguar opções para deportar os imigrantes ilegais para um país africano. Correm rumores de que Netanyahu também terá conseguido retomar as conversações com as Nações Unidas, algo surpreendente depois de desrespeitar um acordo assinado. Para os mais radicais, foi motivo de festa o anúncio das autoridades suíças de reanalisar os asilos outorgados a 3 000 eritreus: um bom pretexto para retomar a hipótese de devolver os refugiados à Eritreia.
Nos bairros problemáticos de Tel Aviv rebenta a violência. Fações pró e contra o regime eritreu confrontam-se. Há requerentes de asilo presos e feridos. Os opositores da ditadura de Afwerki dizem que os eritreus que os apoiam – e entregam 2% do seu salário a Asmara – devem ser deportados. A direita israelita aproveita a divisão para reforçar a necessidade de expulsar todos os ilegais: “É uma Intifada de imigrantes”, reforça uma ativista de extrema-direita. No meio de uma guerra de que gostavam de não fazer parte, 600 africanos torram ao sol na fila para renovar os vistos em Bnei Brak, nos arrabaldes de Telavive. É comum pernoitarem no recinto para não perderem a vez. Com a ajuda de donativos e de algumas ONG, foram instaladas tendas para fazer sombra e quiosques com comida, bebidas e mercado informal. O município costuma apreender as bancas de vez em quando. Um encorajamento à partida voluntária. Entre o caos, Atakliti Michael, que na Eritreia treinava para representar o país nos Jogos Olímpicos como corredor de 5 000 metros antes de fugir do serviço militar vitalício, procura organizar a fila e mediar os conflitos. “Estamos fartos disto”, atira. “Já ninguém acredita nas explicações do Governo. Que se deixem de tretas e nos digam na cara que nunca seremos acolhidos porque somos pretos e cristãos num país de brancos e judeus.” ●m