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A LOUCA FUGA DE UM CHEFE DE MESA
Orlando sabe servir mas não sabe servir-se. Num dia, é empregado de mesa num hotel de luxo na Avenida da Liberdade, no outro, preso na penitenciária de Lisboa. Talvez escolha mal o seu próprio cardápio. Mistura, por assim dizer, sobremesa com a sopa, champanhe com couratos. No tribunal, Orlando tentava a fusão de dois crimes diferentes e o juiz abanava a cabeça.
— O senhor não está preventivo a este processo, mas a outro... — Senhor doutor... Eu sei que neste momento estou só a ser julgado pela falta de habilitação para conduzir. O que eu gostava, e pensei que com o meu advogado... se ele tivesse vindo... que as testemunhas poderiam reforçar o que aconteceu dentro de casa. — Acho que não falei cambojano ou uma língua hebraica, cortou o juiz, num suspiro.
Orlando chegara de algemas e com dois guardas armados. É uma figura a meio caminho de coisas contraditórias. Bem vestido, atlético, delicado de voz, óculos pensativos, unhas polidas, mas lá dentro está uma força negra, um animal fugitivo, e podemos imaginá-lo a saltar muros, arrasar hortas, subir ao Aqueduto de Lisboa e descer como um fantasma do Bairro da Serafina.
— Senhor doutor. Nessa noite tinha saído com o proprietário do carro e uma senhora que ia com ele. Também ia uma amiga comigo. Fomos jantar e depois a uma discoteca. A uma certa altura, eram quatro da manhã, tivemos que ir levar a rapariga a casa. Estavam os dois mesmo muito... alcoolismo. Estava mesmo muito caótico. O amigo nem conseguia ligar o carro, mas queria conduzir. Orlando bateu no vidro e disse que ele é que os levava.
— E estava em condições de conduzir?
— Eu vou ser honesto. Era ou decidir ver três amigos no hospital, ou mortos, ou prejudicando pessoas. Eu na altura fumava haxixe. Entrei em pânico. Fugi a pé... consegui fugir da polícia. Ainda estive escondido três horas. Mas caí na minha consciência e entreguei-me. Depois foi pistola à cabeça, pontapés, uma valente sova. Ainda me levaram a pé para a esquadra. Fui um quilómetro algemado a levar pontapés, “por que é que fugiste, o que é que foste esconder?”
O juiz olhava Orlando, cansado. Rapaz novo com “dois filhos de mulheres separadas”, profissional de um dos melhores hotéis do país, em plena explosão do turismo. De súbito, asneiras, prisão, desemprego.
— Estou num programa de desintoxicação de estupefacientes.
— Só haxixe?
— Era mais coisas, mas mesmo, mesmo, era haxixe.
— Snifava coca, era?
— Snifei coca, mas era esporádico. Em toda a minha vida, pode-se dizer que experimentei umas quatro vezes.
E disse isto como se acreditasse. Orlando tem três condenações por falta de carta, mas são muito antigas, com mais de 15 anos. O juiz mandou ligar a videoconferência ao guarda que o prendeu, agora em Tondela.
— Está a fazer um ano. Foi no Bairro da Serafina, ali junto da Rotunda. Nós fiscalizámos uma viatura e o senhor, na hora da abordagem, disse que precisava de ir urinar. Fez gestos de que ia urinar, nós deixámos. Mal chegou ao pé do muro, desatou a fugir. Já não o apanhámos. Passámos uma hora à procura, ali nos prédios. Depois veio ver se ainda lá estávamos. Avistei-o e descobrimo-lo num terceiro andar...
E quanto ao casal de amigos?
— Quando foram questionados sobre ele, disseram que mal o conheciam e que pouco sabiam dele.
Orlando é mais um caso a estudar no espantoso universo da alta cozinha e hotelaria internacionais: homens com sentidos refinados que mergulham em buracos negros de droga e autodestruição. — Eu estou arrependido, obviamente. Eu tinha uma vida constituída. Obviamente que estou arrependido.
Mesmo antes de o algemarem, Orlando, virou-se para a assistência: — O resto de um bom dia para todos os demais presentes. Não era cambojano ou língua hebraica, mas português de chefe de mesa de cinco estrelas. O AUTOR ESCREVE DE ACORDO COM A ANTERIOR ORTOGRAFIA.