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A música meteu-se sempre com ele

“SIM EU SEI, QUE TUDO SÃO RECORDAÇÕE­S SIM EU SEI, É TRISTE VIVER DE ILUSÕES”

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Jura que não vive - nem de recordaçõe­s nem de ilusões. Tanto que nostalgia é palavra que não cabe nos 79 anos que completou esta semana. E, no entanto, foi graças a estes versos que, na viragem da década de 1970 para 80, arrebatou centenas de palcos pelo país fora. “De 1978 a 1985 quase todos os dias cantava. Era uma coisa incrível”, conta Victor Espadinha, sentado à mesa de uma esplanada solarenga do Estoril, olhar perdido nas memórias daqueles anos inebriante­s.

“Ao fim de semana chegava a dar mais do que um concerto por dia. Numa altura, demos um espetáculo em Monte Gordo e no dia seguinte tínhamos um em Bragança. Nem dormimos. Arrancámos às quatro da manhã do Algarve e, às tantas, quando estávamos a atravessar a planície alentejana ficou tudo verde, a carrinha parou. Parecia um filme de ETs. Ainda hoje, eu e o Jorge Hipólito, que ia comigo, não conseguimo­s explicar aquilo. Aqueles anos foram uma loucura”, recorda, camisa às riscas, a deixar ver o peito, charuto na mão, as passas a pautar a cadência do regresso ao passado. “Vou-lhe dizer o que digo sempre. Eu sou ator. Mas a música meteu-se sempre comigo. Não sei como é que isto aconteceu. Já lá vão muitos anos. Os meus discos venderam muito. As pessoas conhecem as minhas canções. Então a ‘Recordar é Viver’... até as crianças cantam aquilo. Vendeu mais de um milhão [de cópias]. Foi uma coisa que ficou”, diz, embevecido mesmo que não queira. “Foram anos memoráveis. Ganhei muito dinheiro”, acrescenta, irremediav­elmente sincero.

Mas o calendário avança implacável. Mudam os tempos e os dias, as modas e os gostos, as loucuras e as vontades. Espadinha que o diga. “Já não faço aquelas coisas de levar o playback de orquestra debaixo do braço e ir para a discoteca. Fiz isso há muitos anos, quando não havia mãos a medir e a gente ganhava dinheiro em todo o lado. Agora só faço concertos com músicos ao vivo e a sério”, assevera, à boleia de um moscatel com gelo.

E mesmo que os espetáculo­s saiam bem mais caros - “tenho de pagar aos músicos todos, não é?” - garante que continuam a cair convites. “Há pouco tempo fiz um em Viseu, outro no Casino Estoril. Agora, em agosto e setembro, tenho mais dois ou três. Há muitos anos que tenho sempre concertos, um ou dois por mês”, diz o homem que, na década de 90, também brilhou ao lado dos Ornatos Violeta no tema “Ouvi Dizer”.

Não são muitos mas, garante, servem o intento: no caso, o de complement­ar o teatro, a arte que lhe continua a merecer uma paixão assolapada. “Não troco o teatro por nada. A partir de setembro tenho de ver como vou fazer, porque começo os ensaios de uma nova comédia, no Teatro Eunice Muñoz, e às sextas e sábados estou ocupado. Aí, torna-se mais difícil dar concertos”, justifica o ator que, entre um sem fim de peças de teatro, brilhou na série televisiva “Os Malucos do Riso”.

Ainda por cima, os que aí vêm não são uns concertos quaisquer: “Tenho a sorte e algum mérito de ter grandes músicos comigo. O meu pianista, o Renato Júnior, é o melhor que aí anda. Atuo em palácios, em teatros, em casinos. De vez em quando faço umas brincadeir­as, quando são discotecas muito grandes. Faço só piano e voz.”

Mas também dá uma porrada de negas. “Há certos sítios onde não vou cantar. Não vou. Não é ser elitista, mas eu não tenho nada a ver com aqueles sítios onde se cantam músicas pimba. As minhas músicas são mais intimistas. Por isso, quando me convidam para aquelas festas das terrinhas, peço grandes cachês, uma coisa tipo Estados Unidos”, conta, numa gargalhada que faz crer que os anos não passaram por ele. E a confissão prossegue. “Depois dizem-me: ‘Ah, senhor Espadinha, sendo assim não dá.’ É melhor do que dizer que não vou. Não vou dizer, ‘não vou porque vocês são uns pimba’. Não vou dizer isso.” E vai rindo, numa honestidad­e desconcert­ante. A mesma com que lembra os dois anos em que esteve preso em Moçambique, durante a Guerra Colonial. “Por não querer matar ninguém. Quem me safou foi o Almeida Santos, do PS, aquele que morreu há pouco tempo. Esse gajo era um grande amigo.” A mesma com que recorda os anos passados em Londres, em que tanto lavou pratos como brilhou no palco. “Fui a um casting e passei. Fiz o cara branca do ‘Money makes the world go around, the world go around’”. Trauteia o tema do musical “Cabaret” no meio da esplanada. “Nem sempre é fácil, mas quando acreditamo­s em nós a gente cai e levanta-se, cai e levanta-se. E quando damos por nós já andamos sempre em pé.”

A regra vale-lhe para toda a vida. “Não tenho nostalgia de nada. Nem nunca me senti em declínio. Já me senti à rasca, nunca em declínio”, sublinha, como quem se está a borrifar para os discursos politicame­nte corretos. O registo mantém-se quando lhe perguntamo­s se acha que as novas gerações ainda gostam das músicas dele. “Acho que não. Não devem ligar. Não sei. Mas os jovens hoje também comem hambúrguer­es e quando era miúdo isso não existia. Os jovens bebem cerveja aos litros e quando era miúdo não bebia.” É um problema da música ligeira? Responde com outra pergunta. “Eu não sei. O que é isso da música ligeira? Eu não sei o que isso quer dizer. Para mim há música boa e má, música de que gosto e música de que não gosto. Não percebo por que as pessoas põem rótulos à música.” Concorda que há mais protagonis­tas e cada vez menos palcos, mas também faz questão de lembrar: “O que eu sei é que

o Rui Veloso tem sempre trabalho, o Carlos do Carmo tem sempre trabalho. No teatro, o Ruy de Carvalho tem sempre trabalho. Quando não têm, regra geral, é porque não souberam acompanhar. Tiveram um êxito ou dois e o nome foi sendo esquecido. Há muitos cantores e cantoras que estão por aí em grandes dificuldad­es. Como há atores.” E reconhece: “A coisa mais difícil na carreira de um artis-

ta, seja ele qual for, é ter um sucesso, ganhar um dinheiro com aquilo e depois o sucesso acabar. É tramado um gajo manter-se sempre na mó de cima.”

A culpa, defende, é também da cultura que impera por cá. “Há muita falta de memória em Portugal. Este país não existe, é um país à parte. Se estiver uma semana em Londres a ver televisão, vê que os pivôs dos noticiário­s são todos velhos. Porque têm a força do percurso feito e uma coisa dita por eles ganha outro impacto. Você olha para o Elton John... Ele tem 80 e tal anos [tem 71] e se quiser trabalha todos os dias. Nós é que somos um país sem memória e mal-agra-

decido. E a culpa não é do povo. É da política.” Por momentos, a negativida­de ameaça ofuscar o discurso jovial e otimista.

O charuto dura, o pessimismo desvanece-se tão depressa como o fumo. Mérito da música, a paixão secundária que, há décadas, o mergulhou no frenesim de uma grande história de amor. Foi lá atrás, é certo. Mas o que vem à frente ainda lhe dá motivos para sorrir: “Uma canção romântica pode ser foleira cantada por um gajo e uma grande canção cantada por outro. Mas a minha música, a música romântica, nunca tem os dias contados. Tal como o sexo não tem os dias contados. E o amor. Vão existir sempre.”

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a Espadinha, na década de 1980, a preparar-se para o espetáculo “Sinbad, o Marinheiro”, no Casino Estoril M Victor Espadinha num ensaio caseiro, no Estoril, ao lado de Renato Júnior, um dos músicos que o acompanha
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ANTÓNIO PEDRO SANTOS / GLOBAL IMAGENS

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