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O encanto do fado e o desencanto do país
“E FORAM TÃO LONGE ELES FORAM TÃO LONGE E FICAMOS TÃO PERTO DE SERMOS ALGUÉM”
Lenita Gentil foi longe. Em parte graças a este tema, “Eles foram tão longe”, de 1982. Deu cartas em festivais pelo país fora e fartou-se de brilhar além-fronteiras. “Estive no
México, na Roménia, na Grécia. Ganhei festivais em Portugal e em Espanha. Aliás, ganhei um no Palácio de Cristal, em que participou o Julio Iglesias, na altura ainda conhecido apenas por ser guarda-redes do Real Madrid. Os festivais foram uma coisa muito gratificante para mim. Ainda por cima fiquei sempre em lugares honrosos: quarto na Grécia e na Roménia, segundo no México”, recorda, à distância de umas quantas décadas.
Na altura, “havia muitos programas de música portuguesa na televisão - e boa música, não é como agora, em que nos programas de domingo só se vê pimba”. E toda a popularidade que daí advinha. “Havia muito a mania dos autógrafos. Quase nem podíamos sair do palco que éramos logo amarfanhados. Na altura, até ficávamos um bocado chateados com aquilo, porque as pessoas não nos largavam. Mas, no fundo, era giro. Pelo menos interessavam-se. Atualmente, quando acabo de cantar, as pessoas raramente vão ter comigo.” O relato, desassombrado, é desbobinado antes de um espetáculo em Talaíde, pequena povoação de São Domingos de Rana, concelho de Cascais. Um espetáculo de fado, que a música ligeira há muito tempo é um cenário longínquo. Há demasiado tempo, admite. “Até tenho saudades de cantar alguns temas. Os espetáculos são outros, o género de música também. Até o convívio entre os artistas. Mas quem sabe se, depois do disco que vou lançar em setembro, o próximo não é assim uma coisa diferente”, augura, de calça de ganga e camisa, nas horas que antecedem a atuação da noite.
Para já, com 69 anos feitos, o álbum que prepara é de fado, o estilo musical que a desassossegou nos anos 80 e se fez amor para a vida. “Na altura convidaram-me para ir fazer um mês ao Faia [em Lisboa] e pedi um dinheirão, a ver se não aceitavam, porque não gostava do ambiente das casas de fados. Mas sempre adorei o instrumento guitarra portuguesa e fui-me apaixonando por estas coisas todas. Já estou no Faia há 30 anos”, diz, antes de surgir transfigurada, vestido e cabelo esticado, a soltar o vozeirão por Talaíde e arredores. Além do Faia, vai tendo outros espetáculos: uns quantos nas várias povoações de São Domingos de Rana em julho, Alcochete, Barcelos e Alcobaça em agosto. Tudo fado. Nada de música ligeira. Não que isso lhe provoque algum desânimo. O desencanto, assume sem rodeios, existe, mas não por estar centrada no fado. Antes pelo “país que põe de lado gente com carreira e valor”.
“Da minha geração, o único que ainda canta é o Marco Paulo. E o José Cid, que ainda está no ativo. De resto, cantores de música ligeira do meu tempo, não estou a ver. A Tonicha, a Adelaide Ferreira, uma cantora extraordinária... foi tudo posto de lado por esta gente que anda para aí e faz parte de tudo o que é júri de programas de televisão. A Mariza, a Ana Moura, a Cuca Roseta. E as pessoas que têm valor e fizeram uma carreira são postas de lado. Não posso conceber que um país faça uma coisa destas”, argumenta, a frustração bem patente na voz.
Até porque também ela se sente, de quando em vez, posta de parte. “Claro. Se fazem isto com esta gente toda, acha que não fazem comigo?”, questiona, antes de assumir a nostalgia dos tempos áureos: “Sinto, sinto, mas nem quero pensar nisso. Sinto que a vida passa a correr.”
Promete não desistir, ainda assim. “É como um prémio de imprensa que recebi em tempos. Lá diz: ‘Lenita Gentil, nascida para cantar’. É mesmo isso. Eu adoro cantar, sentir.” Por isso, a futurologia não tem nada que saber: “Como diz a minha colega e amiga Maria da Fé, vou cantar até que a voz me doa. Vou cantar até Deus querer. Só se sentir que já não estou bem ou que perdi faculdades é que vou parar.”