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Os tons inalterado­s dos 80

PORQUE “MOCIDADE, FUGISTE MOCIDADE DE MIM... HOJE VIVO DE SAUDADE COMO É TRISTE PERDERMOS A MOCIDADE SENTIMOS QUE É O PRINCÍPIO DO FIM”

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Os 40 anos que separam o lançamento de “Mocidade” da atualidade não bastam para o ver falar do fim. Mais: à beira de completar oito décadas de vida, António Calvário recusa viver de saudade. “Nostalgia? Nada disso. Não sou muito amarrado ao passado. Gostei das coisas boas que fiz, mas, como nunca parei, fui-me adaptando à nova realidade”, responde, de pronto. A mocidade, essa, mantém-na viva, ora na aparência física – seco, bronzeado, cabelo ainda pintado de loiro, impecavelm­ente conservado –, ora nos hábitos. As aulas de canto, a que faz questão de ir todas as semanas, são um deles. É lá que o encontramo­s, no número 88 de uma rua de Almada. “Ra-ra-ra-ra-raaaa”, afina Calvário, olhos postos no professor Diogo Novo que, ao piano, vai ditando a cadência. “São aulas de manutenção. Devem fazer-se a vida inteira, sabe? Eu comecei com aulas de canto quando tinha 15 anos. Agora vou a caminho dos 80. E nunca parei. Ajudam a manter a voz mais solta, mais clara. E também servem para corrigir alguns vícios que se vão adquirindo com o tempo.” Tem a mão esquerda aberta sobre a barriga,

o braço direito vai subindo e descendo suavemente, como que a marcar o ritmo do “ra-ra-ra” crescente. O apreço que tem pela voz assim o exige. “Ai sim, sim, a voz continua a ser o meu bem mais precioso. Quando estou constipado ou rouco ou assim, fico logo imensament­e preocupado. Mas depois passa”, atira, num sorriso meigo.

De resto, aos 79 anos, orgulha-se de continuar a cantar “nos mesmos tons de sempre”. E de se manter na estrada, pois claro. “Em setembro, reinicio a preparação do espetáculo ‘Da revista ao musical’, que estreámos em março e que vai andar pelo país todo a partir de outubro. Nos últimos tempos estive em Mangualde, no Algarve, no Casino da Figueira da Foz.” Ou como a música ainda lhe serve de dínamo para a alegria do dia-a-dia. Mesmo que já sem o fulgor de outros tempos – por opção, garante. “Vou tendo algumas solicitaçõ­es, aquelas que considero suficiente­s. Poderia ter mais, mas já não vou naquela de andar para aí a correr, de ficar estafado. Nesta altura do ano prefiro fazer uma pausa para gozar férias. A não ser que me aparecesse assim um espetáculo fora do vulgar.” Tempos houve em que a popularida­de era tal que tinha de sair de casa acompanhad­o por polícias de motorizada. Era o tempo do nacional-cançonetis­mo, em que foi coroado Rei da Rádio e vencedor do “Grande Prémio TV da Canção Portuguesa”. Foi o tempo, 1964, em que se tornou o primeiro a representa­r Portugal no Festival Eurovisão da Canção, na Dinamarca. Em que era engolido por fãs quando saía à rua. Mulheres, sobretudo mulheres.

Mais de meio século depois, a adoração ainda não se perdeu. “Há um grupinho que ainda me acompanha. São umas distintas avós. E é giro porque vão as fãs, as filhas das fãs, as netas das fãs. Continuo a manter uma ligação forte ao núcleo duro do meu

clube de fãs”, alegra-se, sentado à mesa da sala de ensaios. E continua a sentir o pulso à afeição popular: “Ainda recebo todas as manifestaç­ões de carinho possíveis e imaginária­s. Quando entro no supermerca­do, há logo quem me venha dar beijinhos, dizer isto e aquilo.”

É como se o apreço do público fosse o combustíve­l que o mantém na estrada. “Sempre que entro em cena, as pessoas têm uma maneira estrondosa de me receber. E o artista vive do aplauso. Sinto-me muito acarinhado com a forma como ainda sou recebido”, exulta, com o ar de quem espera que nunca seja diferente. Mesmo que a música, a música como a conheceu, tenha levado uma volta de 180 graus. “Há mais gente a cantar.

Muita gente, muita gente. Depois não há lugar para todos. E se formos a ver, desses miúdos que aparecem agora nos concursos da televisão, são raros os que ficam.”

Nada que o apoquente. “Eu sinto-me feliz com a carreira que tenho, porque nunca fui esquecido”, diz, uma pontinha de vaidade mal disfarçada. Deixar de cantar? “Nunca. Vou cantar até que a voz me doa. Vemos aí várias figuras que cantam até bastante tarde. O Charles Aznavour tem 90 anos e ainda canta, o Tony Bennett, a nossa Celeste Rodrigues... Por que é que não hei de cantar? Enquanto sentir

o carinho das pessoas vou cantar. Claro que pode acontecer entrar num palco e levar uma grande vaia. Aí vou pensar: ‘António, está na altura de arrumares as botas.’ Felizmente, não é o caso”, orgulha-se, numa gargalhada que aspira à eternidade. ●m

 ?? ANTÓNIO PEDRO SANTOS / GLOBAL IMAGENS ?? M Em cima, numa aula de canto, que não larga nem quando está prestes a fazer 80 anos. Em baixo, o jovem António Calvário, no tempo em que vivia mergulhado na correria dos espetáculo­s e era “engolido” por fãs assim que saía à rua
ANTÓNIO PEDRO SANTOS / GLOBAL IMAGENS M Em cima, numa aula de canto, que não larga nem quando está prestes a fazer 80 anos. Em baixo, o jovem António Calvário, no tempo em que vivia mergulhado na correria dos espetáculo­s e era “engolido” por fãs assim que saía à rua
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