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COMO AS “PESSOAS AUTÊNTICAS” TOMARAM CONTA DA PUBLICIDADE
A publicidade está a mudar. Os ideais de beleza e de estilo de vida estereotipados começam a dar lugar a representações do mundo como ele é: diverso. Por isso, os anúncios vão-se enchendo de pessoas como nós, anónimas e imperfeitas. Em Portugal há uma agência pioneira no mercado de “real people”.
Tempos houve em que, para vender um café, bastava uma deslumbrante modelo a acordar – já impecavelmente maquilhada – e a dirigir-se para a varanda com vista para o mar de chávena na mão. A isto se chamava publicidade aspiracional, porque explorava o que as pessoas queriam ter, ser ou fazer – mas não conseguiam. Mostrava um mundo sem rugas nem problemas, onde toda a gente era bonita, magra e sorria com dentes perfeitos.
A fórmula funcionou muito tempo, mas chocou de frente com a cultura dos “millennials” quando eles se tornaram compradores. Primeiro problema: este tipo de anúncios veiculava padrões de beleza estereotipada e irreal. Segundo problema: contava histórias que não interessavam porque, no mundo real, as pessoas acordam despenteadas e tomam o café numa cozinha sem vista para lado algum. O público queria realismo: pessoas e histórias com as quais se conseguisse identificar.
Uma versão melhor de si próprio
Foi por aqui que Frederico Canto e Cas- tro seguiu há quase cinco anos, tinha 19, quando fez um trabalho de grupo para o curso de Gestão – que estava a odiar – sobre a empresa de publicidade do pai: “Percebi que as pessoas já não gostavam de publicidade falsa e estereotipada, que isso as fazia sentir frustradas e inseguras. E as marcas queriam pessoas autênticas para os anúncios, mas havia muito pouca oferta.” Frederico viu ali uma oportunidade de mercado, interrompeu o curso, transformou o quarto em escritório, dormiu no chão da sala durante nove meses, pediu dinheiro emprestado à avó e manteve-se sem salário durante
o primeiro ano de operações. Acreditava que ia conseguir pôr de pé uma agência de modelos que era, em rigor, uma agência de “real people”. Uma agência que “ajudasse a construir um tipo de publicidade capaz de inspirar toda a gente a ser uma versão melhor de si próprio, não a aspirar a ser como os outros”. Assim nasceu a Sonder, que tem 12 pessoas a trabalhar em Lisboa e mais de 2000 agenciados. Já colocou mais de mil pessoas em mais de 500 anúncios,
em 30 países. Em 2017 faturou 520 mil euros e em maio último abriu escritório em Barcelona.
A beleza da imperfeição
Como cantava Leonard Cohen em “Anthem”, “There’s a crack in everything. That’s how the light gets in’. (Há uma fissura em tudo. E é por ela que a luz entra). Esta frase ajuda a explicar o conceito de ‘real people’, que é muitas vezes traduzido para português como ‘pessoas reais’ ou ‘pessoas normais’, mas não é nem uma coisa nem outra. Reais somos todos e a normalidade é a antítese do que se procura. “Procuramos pessoas que têm alguma coisa de diferente e que assumem essa diferença que as tornam únicas e especiais. Não queremos pessoas perfeitas”, diz o fundador da Sonder, fã do conceito de “wabi-sabi”, a filosofia japonesa que procura a beleza nas coisas imperfeitas. A tal fissura, ou defeito, que deixa a luz entrar.
Ter anúncios que mostram menos modelos e mais pessoas com imperfeições pode parecer irrelevante, mas não
é bem assim. Há centenas de estudos que mostram a influência da publicidade na construção de quem somos e no que sentimos. Tem um impacto considerável na definição das nossas referências, pode afetar muito negativamente a autoestima e sabe-se que as crianças são particularmente vulneráveis às suas mensagens. “As pessoas só podem viver pelas suas próprias regras quando têm confiança suficiente para superar o julgamento dos outros”, defende Frederico. “A publicidade é um dos principais fatores de condicionamento social, já que somos expostos a milhões de anúncios ao longo da vida.” Dos 2000 agenciados da Sonder, metade foi selecionada através de candidaturas espontâneas no site, e os restantes pelos “olheiros” que abordam as pessoas na rua ou em eventos. Vítor Leitão – o ex-sem-abrigo que se converteu em modelo e já apareceu na capa da “Vogue” portuguesa –, por exemplo, foi recrutado por Frederico há três anos num centro comercial.
A abordagem nem sempre é simples. “A dificuldade é lidar com o ceticismo inicial. Como são pessoas que não encaixam nos padrões da antiga publicidade, e que nunca pensaram fazer isso, há uma certa incredulidade perante a nossa proposta”, conta Frederico. Mas, para quem vence esta desconfiança natural, o salto pode compensar: a média por participação num anúncio, correspondente a um dia de trabalho, é de 800 euros.
Histórias mesmo verdadeiras
Não foi só o aspeto das pessoas dos anúncios que mudou. Também mudaram as histórias. O realismo social entrou em força nos guiões publicitários, e as pessoas não estão sempre a sorrir e em paz: choram, discutem, chegam atrasadas, preocupam-se com os pais idosos, enervam-se com as birras dos filhos, reviram os olhos ao patrão, cometem erros, têm crises de ansiedade e insónias.
Mas se a tendência começou por ser escrever histórias que parecem verdadeiras, agora a publicidade quer mostrar histórias que são mesmo verdadeiras. A realidade supera quase sempre a
ficção. Por isso, o novo El Dorado do mercado publicitário parece ser pôr as pessoas a fazerem de si próprias. Alguns dos anúncios que mais despertaram o interesse dos media e do público nos últimos anos são os que contam histórias verdadeiras: as mulheres das campanhas da Dove que falam sobre a sua relação com o aspeto físico; o anúncio da Swiffer que conta a história de Zack Rukavina, que perdeu um braço devido a um cancro; a campanha da Pandora, que coloca crianças de olhos vendados a identificar as respetivas mães pelo toque e cheiro; ou o anúncio “Melhores amigos”, da Kleenex, que conta a história de um homem de cadeira de rodas que adota um cão que não mexe as patas de trás e que também usa uma espécie de cadeira de rodas para caminhar.
A equipa da Sonder resume a tendências atual para o realismo e diversidade na frase que lhe serve de mote, impressa em letras grandes na parede da sala onde trabalha: “Live like no one’s watching. (Vive como se ninguém estivesse a ver). Na vida e no ecrã.●m