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ABDICAR DAS FÉRIAS PARA SERVIR OS OUTROS

De Braga a Faro. Na floresta, num orfanato em África, em espaços culturais, em comunidade­s. O voluntaria­do em seis testemunho­s.

- TEXTO Filomena Abreu

Ovoluntari­ado é como um grande barco movido a causas. Podem ser ambientais, sociais, religiosas ou outras. À parte das motivações que levam o ser humano a querer dar mais de si aos outros, sem esperar receber nada em troca, há um denominado­r comum. Quer se tenha oito ou 61 anos. O altruísmo. Arregaçar as mangas, pôr pés ao caminho e participar numa missão de peito aberto não é para qualquer um. Seja ela noutro continente ou ao lado da nossa casa. Ainda para mais quando isso exige o nosso precioso tempo de descanso nas férias. Não é possível contabiliz­ar quantos voluntário­s há em Portugal. Mas todos temos a noção de que são uma força silenciosa de muitas instituiçõ­es e da sociedade em geral. O pouco que se oferece faz sempre muita diferença. Os seis testemunho­s que se seguem são uma ínfima parte dos projetos que existem no país.

01 Sara Moreira “A partilha intercultu­ral enriquece-nos”

Desde que conheceu a TOCA que a Sara não sai de lá. Foi uma amiga que a levou. Assistiram juntas a um concerto de bandas de rock emergentes na Associação Juvenil SYnergia, em Braga. A Sara, que tem 27 anos e é de Vila Nova de Famalicão, ficou curiosa sobre aquele “espaço multicultu­ral e multifunçõ­es” e quis saber mais. Foi assim que descobriu que a TOCA – Trabalho de uma Oficina Cultural e Associativ­a (um dos muitos projetos do SYnergia, que é apoiado pelo

Instituto Português do Desporto e Juventude, ao abrigo do programa Geração Z) – era um mundo encantado. Onde há concertos, aulas de dança do ventre e de salão, teatro, sessões de stand up comedy e mais. Muito mais. Não resistiu. “Decidi integrar este projeto porque mais do que me rever nele, e no modo de trabalho, vi um sítio construído por jovens para jovens. Que representa gente que quer fazer mais e dar mais à sua comunidade.”

Formada em Psicologia, aproveitou estes meses de descanso para complement­ar o estágio com algumas horas na TOCA. Vai ser assim até 15 de novembro. Além do apoio logístico na organizaçã­o dos espetáculo­s, leciona Língua Portuguesa a estudantes estrangeir­os. E ainda é mentora de outros voluntário­s estrangeir­os, auxiliando-os na integração e adaptação à cidade e ao país.

“Ao ensinar português a um voluntário turco, estou a fazer mais do que dar-lhe uma aula. E ele mais do que aprender uma nova língua. Estou a partilhar com ele a história e a cultura do meu país, recebendo em troca conhecimen­tos sobre o seu país e a sua língua. A partilha cultural enriquece-nos. Mais do que isso, estou a desenvolve­r competênci­as de grande valor para o mercado de trabalho, como a assertivid­ade, a comunicaçã­o em público, a liderança, a criativida­de, a resiliênci­a e o trabalho em equipa.”

02 Vítor Cardoso “Recebemos mais do que aquilo que damos”

Mochila às costas, chapéu na cabeça e fé no coração. Vítor Cardoso, 28 anos, natural de Barcelos, tirou uma semana das férias para pôr pés ao caminho. Em missão. Atrás de si, levou um grupo de oito jovens que

com ele caminhou até Santiago de Compostela, em Espanha. O técnico de amostragem de um laboratóri­o em Vila Nova de Gaia é animador de um grupo cristão jovem com quem se junta todas as semanas para debater vários assuntos atuais, valores cristãos, pessoais e para desenvolve­rem formas de, individual­mente ou em grupo, estarem mais atentos aos outros e à sociedade. Foi nesse seguimento que, no início do ano, decidiram ir a pé a Santiago. Fortalecer a amizade entre eles e também a espiritual­idade. Vítor abdicou de uma semana das suas férias para os guiar. “O grupo cristão a que pertenço chama-se ‘ORA : Oração é a Razão do Amor’ e está inserido numa Pastoral juvenil no Colégio La Salle, em Barcelinho­s – Pastoral.PT La Salle – , que procura dar ferramenta­s e valores cristãos aos jovens, para que estes possam, em grupo e pessoalmen­te, aplicá-los na sociedade”. Os colegas de trabalho chamam-lhe maluco por gastar as férias a cansar-se em caminhadas. Já os amigos de longa data percebem, porque eles também partilham da mesma filosofia. “É um caminho de superação pessoal e em grupo, o que torna tudo muito mais fácil. O voluntaria­do é sempre gratifican­te, pois quando vivido em plenitude percebemos que recebemos sempre mais do que aquilo que damos. Cultivamos o amor entre todos e isso não tem limites.”

03 Andreia Revês “Nada compra o sentimento de pertença”

Há uma jovem em Faro que tem bichos-carpinteir­os. Aos 26 anos, Andreia Revês possui um dinamismo que move montanhas. É licenciada em Educação Social e coordena o Projeto Cria+E6G, com crianças provenient­es de contextos socioeconó­micos desfavorec­idos, em São Brás de Alportel. Foi através dos parceiros desse projeto que tomou conhecimen­to das iniciativa­s de apoio do IPDJ. No verão passado, candidatou-se ao Voluntaria­do Jovem Para a Natureza e Florestas, cujo objetivo é “promover práticas de voluntaria­do juvenil no âmbito da preservaçã­o da natureza, florestas e respetivos ecossistem­as, através da sensibiliz­ação das populações em geral, bem como da prevenção contra os incêndios florestais e outras catástrofe­s com impacto ambiental, da monitoriza­ção e recuperaçã­o de território­s afetados”. Em 2017, durante 15 dias, Andreia e um grupo de criança e jovens voluntário­s realizaram ações de limpeza de lixo nas praias algarvias, nos jardins de São Brás de Alportel e na Serra de Tavira. Correu tão bem que neste ano a

ação vai estender-se por 26 dias.

Os voluntário­s já se reuniram com os Bombeiros de São Brás de Alportel, o Exército Português e o RIAS (Centro de Recuperaçã­o e Investigaç­ão de Animais Selvagens). “Perceber de que forma se pode atuar sempre que se deteta um incêndio ou que alguém necessita de socorro. Conhecer mais de perto o trabalho desempenha­do pelas patrulhas do Exército Português na serra e como são realizadas as vigilância­s. E também perceber como se pode e deve atuar perante uma situação de um animal ferido”, foram temas que estiveram sobre a mesa nos três encontros. Entretanto, já puderam aplicar os conhecimen­tos adquiridos em duas vigilância­s na serra de São Brás de Alportel. E também já iniciaram limpezas na Ria Formosa (Faro), em parceria com o Zen Sup, na Fonte Férrea e em três Miradouros de São Brás de Alportel. De futuro, além das ações de limpeza e vigilância na Serra do Caldeirão, os voluntário­s irão partilhar a experiênci­a com outros jovens nas escolas e a importânci­a desse tipo de iniciativa­s servirá para ajudar a preservar e a cuidar do património natural e cultural.

“São iniciativa­s como estas, que decorrem por todo

o país, que fazem a diferença. O caminho está no trabalho em rede e na valorizaçã­o dessas pequenas grandes iniciativa­s por parte das entidades locais. Como cidadãos, deve ser nosso dever querer saber mais e dar sempre um pouco mais de nós para construirm­os uma sociedade melhor. A quem nunca experiment­ou, a quem procura uma oportunida­de ou um sentido de vida, aconselho o voluntaria­do. Nada compra o sentimento de pertença, utilidade e gratidão que este tipo de experiênci­as nos proporcion­am”, remata Andreia.

04 Os Silva Barroso “Optar por deixar o conforto da nossa casa”

A família Silva Barroso já era grande, mas ainda vai crescer mais. A comandar as tropas estão o pai Nuno,

com 45 anos, e a mãe Tina, com 42. Depois, vem a prole. O Miguel e o José são os mais velhos, ambos com 16 anos, segue-se a Maria Beatriz, com 15, o João, com 13, o Pedro com oito, o Tiago com quatro e...a caminho vem mais um bebé. Vivem em Coimbra e pertencem à União Apostólica de Famílias do Movimento de Schoenstat­t (um grupo mariano fundado na Alemanha).

Há muito que eles, sendo tantos, sentiam necessidad­e de dar mais aos outros. Por isso, no ano passado, integraram as Missões Familiares Católicas, com o objetivo de promover e testemunha­r a vivência concreta da fé na família, entre pais e filhos e no âmbito de uma comunidade alargada de famílias. Assim, “durante uma semana de missão, várias famílias (no nosso caso foram quatro) com os seus filhos biológicos e com jovens missionári­os que se integram nas famílias de vida optam por deixar o comodismo de suas casas, abdicam de uma semana de férias e dedicam-se à vivência profunda da oração, da partilha e do serviço aos outros”. O serviço pode ser feito num centro social de apoio a idosos, no apoio domiciliár­io ou em atividades com crianças e jovens.

Como as emoções que se vivem em comunidade e junto de quem mais necessita são tão fortes, os pais garantem que os mais pequenos aceitam de bom grado “viver parte das férias em serviço e oração”. “Os laços que se criam com as outras famílias e com outros jovens perduram e enchem o coração. Estes sentimento­s são muito mais duradouros do que ir acampar e fazer outras atividades lúdicas.”

05 Luís Bossa “Sentir-me útil e não obrigado ajuda-me a estar motivado”

Há quatro anos, Luís Bossa regressou à terra onde nasceu, Moçambique. Ia para ver a missão de um padre amigo, mas acabou a ajudar. Ensinou crianças a ler, a escrever e a jogar andebol. Quando regressou a Portugal, soube que já nada seria igual. Luís, 61 anos, assistente educativo no Colégio São João de Brito, em Lisboa, criou a Missão Beira há três anos. Um projeto que desenvolve com cerca de 20 jovens e que os leva a Moçambique de dois em dois anos para, em colaboraçã­o com a comunidade jesuíta da cidade da Beira, ajudar crianças e jovens do orfanato dos Santos Inocentes, desenvolve­ndo atividades educativas, lúdicas e de formação humana durante um mês. Mas isso requer um grande trabalho feito em Portugal, de angariação de material escolar e de preparação do grupo. “Quando iniciei este projeto, tinha a perfeita noção que era preciso muita disponibil­idade. Este é o fator -chave para qualquer jovem ou adulto fazer parte de uma organizaçã­o. O facto de me sentir útil e de não me sentir obrigado naquilo que faço ajuda a sentir-me motivado. Além disso, estes projetos promovem a partilha, ensinam a saber partilhar e eu gosto disso. Tento incutir aos jovens que fazem parte do projeto estes valores, alertando sempre que é uma viagem de missão a Moçambique e não uma viagem a Moçambique.”

06 Nuno Paixão “Porque todos precisamos uns dos outros”

“Veterinári­o de alma e coração”. É assim que Nuno, natural de Lisboa, mas a viver na Charneca da Caparica, em Almada, se apresenta. Pertence à Associação Nacional dos Alistados das Formações Sanitárias. Um projeto que integra “centenas de voluntário­s em várias dimensões e valências do socorro e da atuação em situação de catástrofe”. Nuno Paixão, 45 anos, é o chefe da Unidade de Medicina Veterinári­a. “Atuamos sempre que é necessário e auxiliamos animais e humanos que estejam em necessidad­e, em sofrimento, em situações de perigo para a saúde pública em locais assolados por catástrofe­s naturais e não naturais.” Foi isso que o levou para o terreno, durante o incêndio de Monchique. A equipa que Nuno coordenou e que “tem formação em operações de socorro, em salvamento urbano e florestal”, esteve articulada “com as autoridade­s de Proteção Civil e Administra­tivas de Monchique”, no sentido de resgatar e prestar cuidados de saúde ao maior número possível de animais. “Faço-o porque acredito que a vida pode ser mais fácil se nos ajudarmos uns aos outros. A saúde é única e a segurança também é única. Acredito que alguém tem que lutar pelos que sofrem. Porque todos precisamos uns dos outros.”●m

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 ??  ?? M Sara Moreira, voluntária na TOCA, um dos projetos da SYnergia, em Braga, apoiado pelo Instituto Português do Desporto e Juventude
M Sara Moreira, voluntária na TOCA, um dos projetos da SYnergia, em Braga, apoiado pelo Instituto Português do Desporto e Juventude
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 ??  ?? a A família Silva Barroso começou no ano passado a fazer voluntaria­do em várias comunidade­s. Pertencem ao movimento mariano Schoenstat­t
a A família Silva Barroso começou no ano passado a fazer voluntaria­do em várias comunidade­s. Pertencem ao movimento mariano Schoenstat­t
 ??  ?? M Luís Bossa vai de dois em dois anos à Beira, em Moçambique, para desenvolve­r atividades com as crianças do Orfanato dos Santos Inocentes
M Luís Bossa vai de dois em dois anos à Beira, em Moçambique, para desenvolve­r atividades com as crianças do Orfanato dos Santos Inocentes
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q Nuno Paixão é o chefe da Unidade de Medicina Veterinári­a da ANAFS. Esteve em Monchique, com a sua equipa, a prestar cuidados veterinári­os

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