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VIOLÊNCIA JOVEM DOS RICOS
“Questão passada, mas acontecida.” Foi assim que a procuradora da República descreveu o caso, no fim. Mais uma rixa entre grupos de jovens*. Há os que morrem. Quase admira não morrerem mais. Há, por sinal, democracia na distribuição deste problema.
— Nem se esperava que uma coisa destas pudesse acontecer em Benfica.
Isto é, numa zona de Lisboa com dinheiro, pais doutores e filhos universitários.
A casa de Pedro fica numa rua com nome de arquitecto. Estuda agronomia, também trabalha e às vezes embebeda-se. Pedro escolheu bem o cenário, a discoteca Urban, a casa de diversões nocturnas na margem do Tejo que apostou em se tornar no melhor local para – ricos e pobres – saírem de maca para o hospital (mais os pobres...). A violência e a estupidez distribuídas entre a clientela, os seguranças e a gerência. Pedro trouxe a tribunal uma barbicha rala que lhe dava olhar de mártir. Falou com sereno rigor, talvez ensaiado com a advogada: — À saída da discoteca, o meu grupo de amigos envolveu-se numa luta com o grupo dos amigos do Tomás, que não estava na briga. O Tomás, por me conhecer relativamente de vista, tentou acalmar as coisas e eu, no calor do momento, dei efectivamente um soco no Tomás e ele caiu para trás.
Depois, continuou, fugiu porque vieram os seguranças que lhe gritavam “ó puto!”. Começou a juíza: — Portanto, nem o senhor nem o Tomás estavam envolvidos na luta... Senhor Pedro, estava embriagado, não estava? E o senhor Tomás. E os outros todos. Perda de conhecimento, impacto na zona occipital. É assim que cérebros se esmagam na calçada.
— Voltei a falar com ele, mas afastou-se, o que eu compreendi. Mas temos um grande amigo em comum que nos proporcionou falarmos, eu pedi desculpa e o Tomás aceitou.
Entrou Tomás em sapatos de vela, blusão americano. Polido, pensando antes de falar. Um dia terá também um curso e contará, talvez, esta fábula de juventude animalesca.
— Só me lembro de um embate e de cair para o chão. E de acordar e ver uma confusão e ambulância, e de acordar outra vez no hospital, só.
— O senhor Pedro diz que lhe pediu desculpas. Aceitou?
— Aceitei.
— Quer dizer que, independentemente do procedimento criminal, lhe perdoa.
— Senti-o arrependido, sim, principalmente pelo facto de agora já não fazer sentido.
— Também não fazia sentido estarem todos embriagados às 6.40 horas da manhã! É um terreno fatal para estas coisas acontecerem. O senhor também pode dizer que estava embriagado e não deu um murro em ninguém.
— Isso não envolveu o facto de eu estar ou não na minha lucidez. Eu sou uma pessoa que não gosta de confusões e de ter problemas com ninguém... Nós vamos encontrá-lo em lugares comuns, com amigos comuns.
— Faz sentido este processo, depois do que acabou de dizer?
— Faz, porque acho que cada pessoa deve arcar com as consequências dos seus actos.
Portanto, Tomás perdoa, mas não esquece. Ou aceita desculpas, mas não perdoa. Qualquer coisa aqui me escapou. A procuradora começou as alegações contra Pedro.
— O Tomás interveio para apaziguar a desordem. Teve oito dias de doença com três de incapacidade para o trabalho. É preciso tratar isto como uma questão passada, mas acontecida.
Até porque a violência provocada pelo grupo de Pedro já acontecera mais vezes. Pedro tem um processo suspenso. “O arguido decidiu seguir o caminho da delinquência, agredir e deixar o agredido inanimado. Poderá passar este tipo de comportamento aos filhos”, disse a procuradora. A advogada de defesa lembrou que Tomás estava embriagado e que, “se calhar, jovens de 16 anos não deviam estar na rua às seis da manhã.” A juíza falou:
— Senhor Pedro, continua a sair à noite com a mesma frequência?
— Saio uma vez por semana.
— Para beber álcool?
Pausa dramática. A resposta é sim.
— No Urban?
— No Urban, duas vezes por mês.
— Para sua informação, por acaso tivemos aqui um caso semelhante com um desfecho diferente. Terminou com o vigilante do Urban a partir a mandíbula do jovem. A mandíbula!
E os olhos acompanhavam a voz da juíza: é sem mandíbula que querem acabar?
* Há uma semana, escrevi aqui uma espécie de caso-espelho deste: “Violência jovem dos pobres”.