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VIOLÊNCIA JOVEM DOS RICOS

- O AUTOR ESCREVE DE ACORDO COM A ANTERIOR ORTOGRAFIA. POR Rui Cardoso Martins

“Questão passada, mas acontecida.” Foi assim que a procurador­a da República descreveu o caso, no fim. Mais uma rixa entre grupos de jovens*. Há os que morrem. Quase admira não morrerem mais. Há, por sinal, democracia na distribuiç­ão deste problema.

— Nem se esperava que uma coisa destas pudesse acontecer em Benfica.

Isto é, numa zona de Lisboa com dinheiro, pais doutores e filhos universitá­rios.

A casa de Pedro fica numa rua com nome de arquitecto. Estuda agronomia, também trabalha e às vezes embebeda-se. Pedro escolheu bem o cenário, a discoteca Urban, a casa de diversões nocturnas na margem do Tejo que apostou em se tornar no melhor local para – ricos e pobres – saírem de maca para o hospital (mais os pobres...). A violência e a estupidez distribuíd­as entre a clientela, os seguranças e a gerência. Pedro trouxe a tribunal uma barbicha rala que lhe dava olhar de mártir. Falou com sereno rigor, talvez ensaiado com a advogada: — À saída da discoteca, o meu grupo de amigos envolveu-se numa luta com o grupo dos amigos do Tomás, que não estava na briga. O Tomás, por me conhecer relativame­nte de vista, tentou acalmar as coisas e eu, no calor do momento, dei efectivame­nte um soco no Tomás e ele caiu para trás.

Depois, continuou, fugiu porque vieram os seguranças que lhe gritavam “ó puto!”. Começou a juíza: — Portanto, nem o senhor nem o Tomás estavam envolvidos na luta... Senhor Pedro, estava embriagado, não estava? E o senhor Tomás. E os outros todos. Perda de conhecimen­to, impacto na zona occipital. É assim que cérebros se esmagam na calçada.

— Voltei a falar com ele, mas afastou-se, o que eu compreendi. Mas temos um grande amigo em comum que nos proporcion­ou falarmos, eu pedi desculpa e o Tomás aceitou.

Entrou Tomás em sapatos de vela, blusão americano. Polido, pensando antes de falar. Um dia terá também um curso e contará, talvez, esta fábula de juventude animalesca.

— Só me lembro de um embate e de cair para o chão. E de acordar e ver uma confusão e ambulância, e de acordar outra vez no hospital, só.

— O senhor Pedro diz que lhe pediu desculpas. Aceitou?

— Aceitei.

— Quer dizer que, independen­temente do procedimen­to criminal, lhe perdoa.

— Senti-o arrependid­o, sim, principalm­ente pelo facto de agora já não fazer sentido.

— Também não fazia sentido estarem todos embriagado­s às 6.40 horas da manhã! É um terreno fatal para estas coisas acontecere­m. O senhor também pode dizer que estava embriagado e não deu um murro em ninguém.

— Isso não envolveu o facto de eu estar ou não na minha lucidez. Eu sou uma pessoa que não gosta de confusões e de ter problemas com ninguém... Nós vamos encontrá-lo em lugares comuns, com amigos comuns.

— Faz sentido este processo, depois do que acabou de dizer?

— Faz, porque acho que cada pessoa deve arcar com as consequênc­ias dos seus actos.

Portanto, Tomás perdoa, mas não esquece. Ou aceita desculpas, mas não perdoa. Qualquer coisa aqui me escapou. A procurador­a começou as alegações contra Pedro.

— O Tomás interveio para apaziguar a desordem. Teve oito dias de doença com três de incapacida­de para o trabalho. É preciso tratar isto como uma questão passada, mas acontecida.

Até porque a violência provocada pelo grupo de Pedro já acontecera mais vezes. Pedro tem um processo suspenso. “O arguido decidiu seguir o caminho da delinquênc­ia, agredir e deixar o agredido inanimado. Poderá passar este tipo de comportame­nto aos filhos”, disse a procurador­a. A advogada de defesa lembrou que Tomás estava embriagado e que, “se calhar, jovens de 16 anos não deviam estar na rua às seis da manhã.” A juíza falou:

— Senhor Pedro, continua a sair à noite com a mesma frequência?

— Saio uma vez por semana.

— Para beber álcool?

Pausa dramática. A resposta é sim.

— No Urban?

— No Urban, duas vezes por mês.

— Para sua informação, por acaso tivemos aqui um caso semelhante com um desfecho diferente. Terminou com o vigilante do Urban a partir a mandíbula do jovem. A mandíbula!

E os olhos acompanhav­am a voz da juíza: é sem mandíbula que querem acabar?

* Há uma semana, escrevi aqui uma espécie de caso-espelho deste: “Violência jovem dos pobres”.

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JOÃO VASCO CORREIA
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