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A cozinha é delas, as estrelas Michelin são só para eles

- TEXTO Pedro Emanuel Santos

É uma batalha de anos, a da falta de reconhecim­ento feminino na alta cozinha. Portugal não foge à regra. Mas as chefs recusam baixar os braços e continuam a lutar por um lugar ao sol. Com críticas aos homens pelo meio, a luta pela revolução de mentalidad­es está aí. Sem desistênci­as nem cedências. E com muito sabor.

Há todas as condições para uma chef portuguesa arrecadar uma estrela Michelin.Océuéol imite .” O o tim is moé de Justa Nobre, figura cimeira da cozinha portuguesa, porta-voz de uma classe praticamen­te esquecida: a das mulheres ignoradas pelos principais prémios gastronómi­cos internacio­nais. Na próxima quarta-feira, dia 21, vai fazer-se história. Pela primeira vez, Portugal acolherá a entrega das prestigiad­as (e ambicionad­as) estrelas Michelin para a Península Ibérica, cerimónia agendada para o Pavilhão Carlos Lopes, em Lisboa. Mas mais história ainda pode ficar registada nos livros se for quebrada uma aparente barreira de género que parece perseguir as chefs mulheres: dos atuais 23 restaurant­es estrelados em território nacional, nenhum – isso mesmo, zero – tem a cozinha gerida por alguém do sexo feminino. Como é fácil perceber pela frieza dos números, por cá os afamados galardões são exclusivo masculino.

“É um mundo de homens. Eles gostam de competição, nós somos mais descontraí­das, temos melhor postura, ligamos mais ao sabor do que ao aspeto do prato”, valoriza Marlene Vieira, chef responsáve­l pelo Restaurant­e Panorâmico, em Oeiras, e por um espaço no Time Out Mercado da Ribeira, em Lisboa, um dos nomes femininos apontados à estrela Michelin de há vários anos a esta parte.

Justa Nobre aponta no mesmo caminho, o da quase obsessão dos chefs pelo reconhecim­ento público ao mais alto nível. Aos 61 anos, conta com nove restaurant­es próprios no currículo ao longo da carreira–a tual mente tem dois, oÀ Justa eoN obre, ambos em Lisboa–e desvendas aboresd as raízes transmonta­nas que recusa desleixar.

“Acozinhaé um espaço machista. os homens são muito egoístas, têm mais necessidad­e de protagonis­mo, são mimados. As mulheres preferem passar por discretas, pela retaguarda”, atira Justa Nobre num disparo só.

ULTRAPASSA­R PRECONCEIT­OS

Que não faltam candidatas a estrelas, isso não faltam. Nos bastidores da cozinha nacional são cogitadas possíveis vencedoras e, não fosse o secretismo dos exigentes agentes da Michelin durante o escrupulos­o processo de avaliação dos restaurant­es, todas essas possibilid­ades fariam agitar apostas durante meses a fio. Como o processo envolve métodos que parecem saídos de filmes de agentes secretos, é praticamen­te impossível avançar novidades sobre o que irá sair da cerimónia de dia 21.

Elisabete Pinto é uma das eventuais escolhas. Agora à frente do 1858 bbgourmet, na baixa do Porto, reconhece ser difícil chegar ao prémio por estar num “meio dominado pelos homens”, onde elas, as chefs, têm dificuldad­es de afirmação por estarem constantem­ente associadas “ao meio familiar, ao cuidar dos filhos, à menor disponibil­idade para a profissão”. Preconceit­os que Elisabete recusa acatar como impeditivo­s seja para o que for, à semelhança de outras camaradas de ofício que convivem com tal mantra, quase discurso oficial justificat­ivo para o predomínio do homem na alta cozinha.

“Até admito que os homens possam ser mais afoitos e desinibido­s em questão de visibilida­de. A verdade é que, na cozinha, as mulheres são mais seguras e assertivas”, garante Inês Diniz, proprietár­ia do recentemen­te encerrado Casa Inês, no Porto, chef “entre projetos”, que gosta de “transporta­r para o prato as memórias da comida da avó” e de cimentar a riqueza gastronómi­ca nacional. “Talvez demore até o valor da mulher na alta cozinha ser devidament­e reconhecid­o, mas isso não deixará de acontecer”, augura.

“JOGAR PARA A LIGA DOS CAMPEÕES”

A atual ausência de mulheres premiadas com estrelas Michelin não é fenómeno que Portugal ostente isolado e que seja surpreende­nte num universo específico que mistura criativida­de, exigência, entrega e qualidade. A estatístic­a interna apenas acompanha a tendência mundial, basta lembrar a exiguidade de chefs femininos premiados a nível global – apenas 5% do total, segundo os números contabiliz­ados depois de analisados os famosos Guias Michelin, e tendo em conta as estrelas atribuídas para 2018. Valor que acompanha médias de anos anteriores e que sempre colocaram as estrelas no feminino nunca acima de patamares pouco superiores aos tais 5%.

Na história, apenas por duas vezes chefs portuguesa­s conseguira­m tal distinção. Os tempos eram outros e a necessidad­e de valorizar a cozinha tradiciona­l ajudou a que Júlia Vinagre (restaurant­e A Bolota, na Terrugem, Elvas, em 1992 e 1993) e Maria Alice Marto (restaurant­e Tia Alice, em Fátima, de 1993 a 1996) liderassem cozinhas que foram exceções à regra.

“A estrela Michelin é como jogar para a Liga dos Campeões; é preciso lidar com uma adrenalina e uma pressão constantes. São 16 horas diárias de trabalho muito duro”, explica Ricardo Costa, chef do restaurant­e do Hotel Yeatman, em Gaia, e portador de duas estrelas Michelin. “As mulheres são muito fortes psicologic­amente. Porém, o instinto feminino leva a que quase abdiquem da carreira de chefs em função da família”, justifica.

Um documentár­io da francesa Vérane Frédiani mergulhou no agitado mundo dos chefs e concluiu o quase óbvio depois de estudar o desempenho de cerca de 50 mulheres com grandes responsabi­lidades em reputadas cozinhas de restaurant­es espalhados por dez países e de recolher os respetivos testemunho­s. Em “A La Recherche Des Femmes Chefs” (“Em Busca

das Mulheres Chefs”, tradução livre para português), são denunciada­s as dificuldad­es com que se deparam as mulheres para garantir afirmação num espaço amplamente dominado pelo sexo oposto.

“A cozinha não tem por que ser só dos homens. É verdade que a vida particular das mulheres por vezes rouba tempo. São os filhos, é a família, é a casa. Mas nós somos tão boas como eles”, assegura Carla Conde, que há seis anos abriu o Calça Perra, em Tomar, e rapidament­e o transformo­u em referência. “Não é por falta de tempo que nos dedicamos menos à profissão, isso é desculpa que não vale. Basta dizer que trabalho todos os dias entre 12 e 13 horas. E não me queixo.”

“AS COISAS ESTÃO A MUDAR”

No documentár­io de Vérane Frédiani é enfatizada a constante luta das mulheres por igualdade de posto e são descritos os múltiplos obstáculos a ultrapassa­r para conquistar uma afirmação que deveria ser natural, mas que necessita de carimbos especiais em passaporte­s salpicados de mentalidad­es antigas que se desejavam ultrapassa­das. Como a tal recorrente associação da mulher ao universo do lar e da família, fator supostamen­te impeditivo de mais horas passadas à frente das melhores cozinhas e consequênc­ia para a menor afirmação delas em ambiente em que o homem aparece retratado como único capaz de resistir à pressão constante e aflitiva da profissão, às elevadas cargas horárias exigidas, à liberdade para criar, ao espírito de constante entrega ao trabalho.

“Por vezes, o lado materno das chefs inibe-as de estarem mais presentes na cozinha e chega uma altura em que têm que optar entre um lado e o outro. É uma questão de cultura. Embora sinta que as coisas estão a mudar.” A convicção é de Tiago Bonito, chef do Casa da Calçada, em Amarante, uma estrela Michelin que “seria excelente manter este ano”, e vai ao encontro da ideia generaliza­da de que família e a pressão constante são conceitos que não combinam e acabam por prejudicar a mulher que ambicione afirmar-se na cozinha.

O impacto de “A La Recherche Des Femmes Chefs” foi tal que após ter sido lançado surgiu um espontâneo movimento internacio­nal intitulado #michelinto­o. Que remete para as estrelas Michelin (ou falta delas para elas) e para o #metoo, que nasceu nos EUA depois das denúncias sobre múltiplos casos de abuso sexual sobre atrizes por parte do produtor de Hollywood Harvey Weinstein e rapidament­e saltou fronteiras. Redes sociais, sobretudo Facebook e Instagram e Twitter, multiplica­ram a hashtag e reclamaram direitos iguais para homens e mulheres cozinheiro­s. Aquando da entrega das estrelas Michelin em França, no início do ano, em que em 57 restaurant­es premiados apenas três eram de mulheres chefs, utilizador­es reclamaram que os prémios refletiram que “o predomínio masculino na cozinha profission­al francesa faz recuar aos tempos da Idade Média”.

Inês Diniz é, ela própria, testemunha de como aos poucos os chefs foram trilhando rotas próprias e acabaram por chegar a metas há algumas décadas impensávei­s. “Lembro-me que quando comecei – e já tenho 54 anos – praticamen­te não havia rapazes a fazer o que eu fazia. As coisas foram evoluindo, tomando outros rumos, a visibilida­de passou a ser maior. Eles foram-nos ultrapassa­ndo em mediatismo, foi uma evolução natural”, desfia.

MAIS DE 100 ANOS DE HISTÓRIA

O guia Michelin foi dado à estampa pela primeira vez em 1900. O objetivo era simples: oferecer a quem comprava pneus da marca francesa um livro organizado e atualizado de estabeleci­mentos de restauraçã­o e hotelaria que podiam ser encontrado­s pela Europa durante grandes viagens. O sucesso foi tremendo e o guia passou a ser editado com regularida­de e exportado para outros países. Hoje, chega a mais de 20.

As estrelas – de primeira, segunda e terceira categorias –, foram atribuídas pela primeira vez em 1926. E passaram a distinguir restaurant­es portuguese­s três anos depois, em 1929. Mas por pouco tempo. Com o início da II Guerra Mundial, em 1939, o guia foi temporaria­mente suspenso. Apesar de ter sido retomado após o final do conflito militar, em 1945, o certo é que só em 1974, ano em que a democracia viu a luz com o 25 de Abril, voltaram a ser avaliados restaurant­es portuguese­s.

Ainda assim, nunca por cá foi atribuído o galardão dos galardões: as três estrelas Michelin, autêntico nirvana de excelência. Duas estrelas foi o máximo conseguido por restaurant­es nacionais, o que aconteceu pela primeira vez em 1936 com O Escondidin­ho, ainda hoje de portas abertas na Rua Passos Manuel, no centro do Porto. Mas sem estrela alguma, entretanto perdida. Só mais de seis décadas depois igual reconhecim­ento foi garantido, em 2002, ao Vila Joya, em Albufeira, que ainda conserva o título.

“A DIFERENÇA PARA OS HOMENS É ZERO”

Mais de um século passado, a alta cozinha continua mundo de homens? Ou é possível sonhar com um grito de liberdade das mulheres chefs traduzido em mais estrelas Michelin que lhes reconheçam a dedicação, o trabalho e a entrega?

Apesar de reconhecer que a “intensidad­e da restauraçã­o pode obrigar a abdicar de muita coisa”, Pedro Lemos, cujo restaurant­e homónimo, no Porto, é um dos

que atualmente ostenta o prémio, não vê nas mulheres papel menor nas cozinhas de gabarito. “Pelo contrário, trabalho com uma equipa em que 50% são mulheres e a diferença para os homens é zero. São exatamente iguais”, considera.

“É tudo uma questão de tempo”, acredita, por sua vez, Marlene Vieira. Porque “fomos fechados durante anos a fio” e isso levou a um predomínio masculino nas cozinhas que é difícil contornar. “A mudança de mentalidad­es existe, é verdade. O problema é que demora a ser concretiza­da”, lamenta.

Numa coisa estes e outros chefs de ambos os sexos estão de acordo: já era hora de nos novos tempos da alta cozinha uma portuguesa ganhar o direito a arrecadar uma estrela Michelin. E essa hora vai chegar mais cedo ou mais tarde. No caso, mais tarde do que cedo.

 ??  ?? Justa Nobre e o seu lavagante frito com arroz de alho, prato que se destaca numa cozinha que pretende manter viva a rica tradição da gastronomi­a portuguesa
Justa Nobre e o seu lavagante frito com arroz de alho, prato que se destaca numa cozinha que pretende manter viva a rica tradição da gastronomi­a portuguesa
 ??  ?? Elisabete Pinto, chef do bbgourmet Criativo, no Porto, onde o polvo com puré de cebola roxa e batata-doce é uma das referência­s
Elisabete Pinto, chef do bbgourmet Criativo, no Porto, onde o polvo com puré de cebola roxa e batata-doce é uma das referência­s
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 ??  ?? Inês Diniz quer resgatar memórias dos tempos da avó quando está na cozinha; a aletria é um bom exemplo disso mesmo
Inês Diniz quer resgatar memórias dos tempos da avó quando está na cozinha; a aletria é um bom exemplo disso mesmo
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 ??  ?? O “foie gras” é um dos chamarizes do Calça Perra, em Tomar, da chef Carla Conde
O “foie gras” é um dos chamarizes do Calça Perra, em Tomar, da chef Carla Conde
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 ??  ?? Marlene Vieira está à frente de dois espaços com assinatura própria, onde o arroz cremoso de bacalhau de coentrada com ovas e tomate faz sucesso
Marlene Vieira está à frente de dois espaços com assinatura própria, onde o arroz cremoso de bacalhau de coentrada com ovas e tomate faz sucesso
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