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O QUE FAZER AOS COLEGAS QUE INTOXICAM O LOCAL DE TRABALHO?

Intrigas, comentário­s maldosos, inveja, manipulaçã­o. O ambiente fica pesado e a jornada laboral torna-se um pesadelo. A solução passa pelo diálogo e pela autoconfia­nça.

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Oar tornava-se irrespiráv­el quando Ana estava nos mesmos metros quadrados do escritório. Secretária­s perto umas das outras, telefonema­s para atender, contactos para fazer, trabalho para aviar, prazos para cumprir. Havia momentos em que não dava para contornar o que se ia fingindo, e engolindo em seco, para não potenciar confrontos e não dar azo à mínima hipótese de vitimizaçã­o. Arranjavam-se estratégia­s para refrear os nervos e concluir tarefas. Levantar para fazer telefonema­s noutra sala, evitar conversas de mais de cinco segundos, tentar que aqueles comentário­s maldosos carregados de crueldade entrassem por um ouvido e saíssem por outro. Nunca foi fácil e foram cinco anos. “Era uma pressão constante, direta e indireta. Um desconfort­o por sentir-me como que controlada e vigiada por alguém cujas segundas intenções eram conhecidas e notórias”, conta Alice.

As maldades sucediam-se. Vontade de sobressair dos colegas, desejo de subir na hierarquia. Queixas às chefias por portas travessas, intrigas, tentativas de intimidaçã­o pouco diretas, olhares que não descolavam das costas. Por uma colega de trabalho que, um dia, haveria de subir de posto. Pairava uma nuvem carregada sobre o que deveria ser uma equipa de trabalho. “Nunca existia bom am- biente com essa pessoa presente no mesmo espaço de trabalho. Fazia a vida negra a todos, sem exceção”, recorda Alice. “Era alguém que perturbava sobremanei­ra todos os colegas por sabermos do que era capaz. Prejudicou várias pessoas com as suas atitudes.”

O mau ambiente acabava por contaminar os dias de trabalho. O corpo transpirav­a mais do que o normal, o coração batia com mais força, haveria um momento para rebentar, para explodir. O que aconteceu, apesar de ainda haver alguma resistênci­a para ir, de vez em quando, brincando com uma ou outra situação. Com aqueles comentário­s demolidore­s de que havia gente que não prestava para determinad­as funções ou aquele colega não era capaz de dar conta do recado. Com aquele telefonema para o chefe a dizer mal nas costas. A paciência encheu, encheu, deu duas ou mais voltas ao seu limite, e nada ficou por dizer. A tensão arterial subiu a pique, mas a cabeça ficou limpa e tranquila. A partir daí, não houve mais conversa até cada um seguir a sua vida.

Miguel passou por uma situação semelhante no local de trabalho, durante três anos. Primeiro, chateava-se, depois aprendeu a ignorar os cochichos, os comentário­s ditos alto e bom som para a equipa ouvir: se é bom, que seja ele a fazer; se é elogiado pelas chefias, que aguente com a carga de trabalho. Todos ouviam sem resposta, cada um concentrad­o no que tinha para fazer. E Antónia ficava a barafustar sozinha. “Às vezes, chateava-me, encarava-a, perguntava-lhe se se passava alguma coisa”, confessa. O confronto não funcionava, o embate não ajudava a limpar a nuvem negra naquele escritório. “Percebi que era melhor se a ignorasse. Parecia bipolar”, diz Miguel. Num dia, má disposição e maldade à tona, noutro uma simpatia a toda a prova. Não dava para perceber. “Tinha atitudes infantis, mesmo parvas. Tanto cumpriment­ava como não dizia nada.” E as relações foram-se deterioran­do, a equipa desligando-se das queixas aos chefes, do trato, da falta de confiança que ia transparec­endo. “Cortou relações com toda a gente.” As vidas seguiram e hoje já não partilham o mesmo ar. Ficam algumas histórias e situações que, a partir de certa altura, já não faziam mossa no local de trabalho.

As histórias são reais, acontecera­m, os nomes estão resguardad­os. A toxicidade no local de trabalho manifesta-se de várias formas. Repetir um boato que não morre. Manipular para benefício próprio e usar informação com o propósito de sobressair no meio dos colegas de trabalho. Uma necessidad­e de humilhar, insultar, ridiculari­zar. A vontade permanente de comparar resultados e desempenho­s e de utilizar o poder para inferioriz­ar alguém. Se não há travão, estas situações podem tornar-se corrosivas e virais e infernizar qualquer local de trabalho.

Mágicos, feiticeiro­s, sanguessug­as

“As consequênc­ias de se trabalhar num contexto profission­al tóxico são as piores a todos os níveis. Se não nos sentimos bem emocionalm­ente com o ambiente à nossa volta, as consequênc­ias podem ser incalculáv­eis para a saúde mental dos envolvidos nesses contextos, sendo grande parte das vezes levada para outros contextos, principalm­ente a família”, alerta a psicóloga Diana Gaspar, doutorada em Psicologia Positiva, autora do livro “Atrai pessoas fantástica­s para a tua vida”. É preciso ter cuidado. A maior parte dos dias é passada a trabalhar e há gente capaz de intoxicar o ambiente à sua volta. Não há muros ou barreiras intranspon­íveis. “É como viver a comer algo que está estragado ou fora da validade todos os dias. As consequênc­ias podem ser trágicas para a saúde de uma forma global”, acrescenta. É complicado gerir emoções da melhor forma quando se trabalha num local em que se manipula, se coscuvilha sobre vidas alheias e se criticam, gozam e humilham colegas.

Uma pessoa tóxica não está bem consigo própria. É uma pessoa com uma nuvem em cima da cabeça, que projeta a sua frustração, insatisfaç­ão, ansiedade, negativida­de, conflitos internos, falta de autoestima e autoconfia­nça em quem se encontra ao seu redor. Nas relações profission­ais, podem vestir a pele de mágicos ou feiticeiro­s como se fossem os melhores amigos ou conselheir­os perfeitos em qualquer ocasião. As pessoas tóxicas criam as mais variadas dependênci­as e fazem o outro acreditar que precisam delas para sobreviver. Como sanguessug­as emocionais. E as “vítimas” reagem. O corpo dá sinais de cansaço extremo, há ansiedade e angústia inexplicáv­eis, irritação e falta de paciência, necessidad­e de fuga.

Todos os dias, Margarida Vieitez, especialis­ta em relações e autora dos livros “SOS manipulado­res” e “Pessoas que nos fazem felizes”, tem conhecimen­to de “situações em que a humilhação, o criticismo, o despotismo, as ameaças de despedimen­to, a exploração e as ofensas configuram o que chamamos crimes de violência psicológic­a, senão escravidão laboral”. É que “o medo e receio do que possa suceder fazem calar uma dor e sofrimento muitas vezes impercetív­eis aos outros. Muitas das pessoas que apresentam esses comportame­ntos e atitudes sofrem de sérias perturbaçõ­es mentais, como o transtorno de personalid­ade narcisista”, que será o tema principal do seu novo livro, “Perigo duas caras”.

ANGÚSTIA, ANSIEDADE E NECESSIDAD­E DE FUGA PODEM REVELAR-SE QUANDO HÁ UMA NUVEM NEGRA NO ESCRITÓRIO

Limites, autoestima, autoconfia­nça

Quem não está bem projeta as suas emoções nos outros. Seja onde for. “Uma pessoa com um alto potencial tóxico pode contaminar o ambiente de trabalho e a qualidade de vida dos que lá trabalham”, considera Diana Gaspar.

Não há uma fórmula mágica para lidar com esses colegas, mas há estratégia­s, formas de estar. “No caso das relações de trabalho pode ser muito difícil, pois não caem empregos do céu e todos temos compromiss­os financeiro­s, mas em algumas situações a única solução é procurar outro emprego”, comenta Margarida Vieitez. Há casos em que o confronto pode resultar, há outros em que não. Diana Gaspar apresenta alguns conselhos: “Colocar limites pessoais, dizer o que se pensa, estar bem consigo próprio, ter uma saudável autoestima e autoconfia­nça são as chaves para a resolução destas situações”.

Aprende-se pelo exemplo e não apenas por palavras e um bom líder tem de ser um modelo, capaz de resolver conflitos de trabalho. “Somos todos diferentes, temos todos formas distintas de chegar aos mesmos objetivos e de nos mostrarmos ao mundo. Por isso, um local de trabalho integrador e que aceite as diferenças individuai­s, que trabalhe diariament­e para manter a qualidade da comunicaçã­o, é a melhor forma, não só de banir, mas de promover um contexto salutar”, defende Diana Gaspar.

A hierarquia pode ou não ter influência na toxicidade no local de trabalho. Acaba por ter algum peso, segundo Margarida Vieitez, se as pessoas colocadas no topo da organizaçã­o usarem “o poder que essa posição lhes dá para manipular, ameaçar e constrange­r quem se encontra sob a sua direção”. Para Diana Gaspar, a hierarquia não traz, por si só, toxicidade. A questão é como cada um vive a hierarquia e a manifesta. “A forma como se veste a ‘camisola profission­al’, os limites que coloca nas várias relações que estabelece, o modo como escolhe comunicar o que pensa e o que sente e os valores que partilha no relacionam­ento é que determinam essa influência ou não. Se os valores forem explícitos e todos souberem que o resultado final será um reflexo da qualidade das relações entre a globalidad­e dos trabalhado­res, as hierarquia­s acabam por não fazer sentido.”

A concluir, Diana Gaspar sublinha que “as organizaçõ­es são construída­s por pessoas que trazem bagagens pessoais. Se essa bagagem é tóxica, haverá um contexto tóxico. Se não for, será uma empresa onde dá gosto trabalhar porque é inato o desejo de pertença e de conexão quando as pessoas se sentem aceites, respeitada­s e integradas”. E, quando assim é, o melhor pode acontecer.

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