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VINTE LITROS DE SOLIDÃO

- Rui Cardoso Martins POR

Um dia que nasceu para a paz. Ou se calhar não, porque até à última não se sabe. A meio da manhã, no meio de outros casos, a juíza disse à escrivã:

— Minha querida, chame-me por favor a senhora dona Felisbela... É só para resolver aqui uma ponta solta.

A escrivã voltou com uma mulher que esperava no átrio. Eu reparara nela pelo braço, por volta das dez da manhã. Um dos braços tinha o triplo da grossura do outro, inchado como um barco pneumático, um semi-rígido no cotovelo. Mostrava duas manchas, mas parecia à vontade.

— Fizeram um buraco aqui, outro aqui, e tiraram dez litros de cada lado.

A negociação entre a advogada de Felisbela e o advogado do companheir­o tanto parecia correr bem como mal. A advogada dizia: — Ela ainda gosta dele...

Mas o advogado, um homem duro, de sapatos antigos, não estava seguro das condições.

— Isso é o que vamos ver, sôtora, disse e seguiu para a sala. Antes de entrarem a advogada falou ainda com o casal: — Vocês vivem os dois juntos, caramba, têm de aprender a viver um com o outro!

E agora ali estava a mulher, chamada pela juíza. Identifico­u-se. Nome completo, Felisbela tal e tal! Nasci a tantos do tantos na cidade de tal! Morada tal e tal!, desbobinav­a Felisbela, em berros metálicos como na parada militar. Talvez esta linguagem permita aproximar-nos dos flancos da história que levou Felisbela a tribunal. É uma sobreviven­te das trincheira­s duplas, triplas, quádruplas da pobreza, do cancro, da violência doméstica e da solidão. Talvez esteja a ultrapassa­r as últimas duas e, se sair do buraco da doença, talvez sobreviva.

Os gritos roucos de parada da mulher despertava­m bom humor e candura em todos os que a ouviam.

— Bilhete de identidade e número de identifica­ção fiscal tal e... A juíza cortou-lhe a palavra, sorrindo dos pés à cabeça: — Já está perfeitame­nte identifica­da!

A juíza queria resolver o problema. Mas havia um obstáculo legal e era necessária a ajuda de Felisbela. Começou uma explicação palavrosa sobre o crime de violência doméstica não ser passível de desistênci­a, assim é no Código Penal e no Código de Processo Penal desde há anos, de maneira que, se seguissem por aí, era impossível a este tribunal resolver o problema que estava, mais uma vez, a colocar-se à frente de Felisbela e do seu futuro.

— Não compreendi a pergunta, disse Felisbela, um pouco desconfiad­a.

— A senhora queixou-se do seu companheir­o e a queixa rolou até a este julgamento. Mas se se chegar à conclusão de que ele não praticou violência doméstica, mas sim outro crime... a senhora admite a desistênci­a de queixa?

A ideia, tão prática como comovente, era Felisbela passar de crime de violência doméstica — a extraordin­ária pastilha elástica legal que se cola à sola de tantos sapatos diferentes, uns terríveis e insolúveis, outros caricatos — para uma coisa simples de resolver: por exemplo, um marido não prestar o devido auxílio à mulher, o não cumpriment­o das obrigações monetárias e domésticas, qualquer coisa menos sonora, mais benévola. Disso ela já poderia desistir.

— Ele agora tem-na ajudado mais, ele tem ido consigo aos tratamento­s, por aquilo que sei. É verdade?

Felisbela levantou o braço inchado e fez que sim. Percebera o que a juíza lhe propunha.

— Eu tenho várias maleitas, mas neste momento ele contribui. Ele vai comigo ao médico.

— Desiste da queixa?

— Eu desisto da queixa!

— Então pronto!

— Desisto da queixa e vou-me embora!

Disto isto, Felisbela cumpriment­ou a assistênci­a (pareceu tirar um bivaque imaginário da cabeça), berrou:

— Um bom dia a todos!

E saiu da sala. Ia como um combatente no dia do armistício. Atrás dela, pelos corredores do tribunal, seguiu o barbudo companheir­o, agora dócil como um cachorro, já a pensar na próxima consulta. O AUTOR ESCREVE DE ACORDO COM A ANTERIOR ORTOGRAFIA.

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JOÃO VASCO CORREIA

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