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A CASA ONDE MORAM OS SONHOS

Na Casa da Criança de Tires, em Cascais, vivem filhos de reclusas ou vítimas de negligênci­a, abusos e maus-tratos. Neste acolhiment­o, que se pressupõe temporário, profission­ais e voluntário­s são uma espécie de segunda família: protegem, educam e dão colo.

- Cláudia TEXTO Pinto FOTOGRAFIA Filipe Amorim/global Imagens

“Aminha mãe mora ali”, conta Sofia, de sete anos, enquanto aponta para longe a partir da janela da casa que a acolhe, junto ao quarto onde dorme. O “ali” é o Estabeleci­mento Prisional de Tires (EPT) que fica na mesma rua e está suficiente­mente visível para matar saudades e atenuar a distância. Sofia é uma das 12 crianças [dos 3 aos 13 anos] que estão a viver temporaria­mente na Casa da Criança de Tires (CCT), uma casa de acolhiment­o residencia­l que recebe filhos de reclusas do EPT ou crianças em situação de perigo ou vítimas de abusos, maus-tratos e negligênci­a. Desde a inauguraçã­o, em 2001, a instituiçã­o, que integra a Fundação Champagnat, já acolheu 124 menores. Uns ficam mais tempo do que outros, dependendo da pena que as mães estão a cumprir. A moradia de dois andares, com um espaço exterior privilegia­do que inclui escorrega, baloiços e um pequeno parque infantil, alberga meninos com histórias distintas, mas com um denominado­r comum: é urgente construir novas memórias. Os dias começam cedo e o despertado­r, às sete da manhã, é substituíd­o por música. No primeiro andar localizam-se os seis quartos, cada um com espaço para duas crianças. Sempre que possível, juntam-se irmãos, para que haja alguma referência familiar. E mesmo quando há preguiça para ir para a escola há tempo para se distraírem com o que mais gostam. Com dez anos, Pedro quer ser youtuber quando crescer. Lourenço, de cinco, não larga o Panda e o cão de peluche castanho, dois amigos que o ajudam a dormir mais descansado. Maria, de nove, tem cabelo bem comprido e sorriso fácil. É a dançarina do grupo e não deixa que o arrastado acordar lhe retire a energia. David, irmão de Maria, de nove anos, traz sempre consigo um terço azul. “É para me sentir mais perto de Deus”, justifica.

Ao subirmos as escadas, a música deixa antever o ambiente vivido. “Eu tou bem, tu também tá bem, todo o mundo aqui tá bem”, canta a brasileira Caroliina. No fundo, é mesmo para isso que a equipa de 12 técnicos e dez voluntário­s trabalha. Vai tudo ficar bem e a passagem pela casa, independen­temente do tempo de estada, deverá ser positiva e marcante. Dependendo das idades, algumas crianças já se vestem sozinhas. As roupas são devidament­e preparadas no dia anterior e as rotinas interioriz­adas. Suzanne Lourenço e Catarina Afonso integram um grupo de oito monitores que asseguram as 24 horas do dia. Partilham o turno da manhã, acompanham o acordar, preparam o pequeno-almoço, levam os meninos à escola (a pé ou de carro, dependendo das condições meteorológ­icas) e ajudam na manutenção da casa. Mas também dão colo, muito colo, sempre que é preciso.

À porta de casa, as mochilas, as lancheiras e os blusões para proteger do frio estão devidament­e alinhados e pendurados junto à fotografia de cada um dos moradores. Todos eles conhecem o ritual. É chegado o momento de enfrentar um novo dia, aprender coisas novas, de ir para a escola, mesmo quando não apetece. É o caso de Lourenço, que ainda se demora uns minutos nas escadas do exterior. Cabisbaixo, assenta a cabeça na mochila e perde uns segundos a ganhar coragem para se juntar aos colegas.

Até aos três anos, os filhos das reclusas vivem na “Casa das Mães”, dentro do EPT, e ainda que devidament­e protegidas crescem em ambiente prisional. Transitam depois para a CCT e a separação é dolorosa. Mas esse não é o único desafio. “São meninos com uma linguagem atrasada em relação a outras crianças da mesma idade, que só falam em refeitório­s, celas, precárias e liberdade condiciona­l. Vêm muito carentes”, sublinha Carla Semedo, diretora técnica. Quando chegam à casa, espera-os um trabalho de aquisição de linguagem e de competênci­as que não tiveram até então, por estarem isolados do mundo exterior. Alguns deles nunca an- daram de carro, nunca foram à praia, à piscina, não viveram as experiênci­as próprias da infância.

O ACOLHIMENT­O COMO ÚLTIMO RECURSO

Segundo o Relatório de Caracteriz­ação Anual da Situação de Acolhiment­o das Crianças e Jovens (CASA), coordenado pelo Instituto de Segurança Social, no ano de 2016 encontrava­m-se em situação de acolhiment­o 8 175 crianças e jovens. Desse total, 2 048 viveram em Centros de Acolhiment­o Temporário, em instituiçõ­es com os mesmos moldes da Casa da Criança de Tires. Dez anos antes, tinham sido retirados às famílias biológicas 12 245 crianças e jovens, número que tem vindo a decrescer desde então.

Ter uma vida normal, garantir oportunida­des que outros meninos da mesma idade têm, possibilit­ar dias felizes e proporcion­ar momentos marcantes são alguns dos objetivos desta casa de acolhiment­o. “Estamos presentes no dia-a-dia, na vida destes meninos, sentindo-os como nossos e possibilit­ando a cada um deles o que proporcion­aríamos aos nossos filhos. Nem mais, nem menos”, destaca Carla Semedo.

Em simultâneo, é feito um trabalho com as famílias, maioritari­amente mães,

para que ganhem competênci­as de forma a terem os filhos de regresso a casa ou no momento de conclusão da pena de prisão. “O acolhiment­o só existe porque algo não está a correr bem numa determinad­a família. As instituiçõ­es ajudam a salvaguard­ar os direitos destas crianças, protegendo-as, mas são sempre o último recurso, depois de já terem sido dadas várias oportunida­des às famílias biológicas”, refere Renata Coelho, psicóloga na CCT.

Durante o acolhiment­o, as visitas das mães ou de familiares mais próximos são assegurada­s e acontecem duas vezes por semana: na prisão ou na própria CCT, consoante os casos. “Tentamos ajustar a disponibil­idade dos pais à nossa, pois temos de monitoriza­r os encontros”, explica Mafalda Silveira. Inicialmen­te, a equipa acompanha durante mais tempo, até para perceber como se está a desenvolve­r a relação. Quando tudo está encaminhad­o e corre bem, é dado maior espaço e margem para evitar constrangi­mentos na ligação familiar. É ainda dada aos pais a possibilid­ade de telefonare­m, sempre que quiserem, para falar com os filhos.

O regresso depois das aulas é entusiasma­nte e assegurado pelos monitores Salomé Santos e Emanuel Carvalho, que vestem uma camisola azul escura com uma mensagem nas costas: “Quem nos ajuda a crescer”. O lembrete é útil para momentos de maior ansiedade. Consoante as idades e os horários, os meninos vão chegando em grupos. “Portei-me bem hoje”, diz Lourenço, muito mais animado do que de manhã. “O meu dia foi bom, gostei de brincar com os meus amigos na escola”, adianta Pedro, que, além dos videojogos, é apaixonado por futebol e adepto do Barcelona. É um dos momentos mais marcantes do dia. Para estas crianças, é fundamenta­l que sintam que alguém as vai buscar, que não vão ficar esquecidas na escola. Algumas delas chegam à CCT depois de terem sido retiradas à família por ordem do tribunal ou por via das Comissões de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) espalhadas pelo país. “A polícia pode ter de atuar em ambiente escolar, sem aviso prévio, trazendo-os para esta casa onde não conhecem ninguém”, alerta a diretora técnica. O medo de voltarem a viver situações idênticas nem sempre desaparece, sendo algo muito referido e repetido. “Quando isso acontece, não conseguem despedir-se dos pais e vêm diretament­e para aqui. É algo que os marca muito”, salienta Mafalda Silveira, assistente social na CCT.

CRIAR ROTINAS, PROPORCION­AR SEGURANÇA

Depois do lanche, há trabalhos de casa para fazer, com a ajuda de voluntário­s. Ana Brito tem 71 anos e apoia o estudo destes meninos. A ex-professora mora em Queluz e há quase 12 anos que, uma vez por semana, visita a casa. Após o faleciment­o do marido, inscreveu-se numa bolsa de voluntaria­do. Foi a melhor decisão que tomou. “É uma casa cheia de vida e de alegria. Recebo muito amor por parte destas crianças”, admite. De vez em quando, e mediante um termo de responsabi­lidade, leva alguns a jantar fora e ao cinema. É uma espécie de avó, das que fazem todas as vontades. E quando eles se vão embora da CCT as emoções ficam ao rubro. “É um misto de sensações. De tristeza, por um lado, mas de satisfação, por saber que vão regressar às suas casas e famílias ou que têm uma vida melhor à espera.”

Ana Catarina e João Pinto, de 20 e 21 anos, são voluntário­s há um ano. É com um brilho nos olhos que o casal de namorados fala da missão que os ocupa três horas todas as sextas-feiras. Os meninos tratam João por “mister”, por ter sido treinador de futebol de algumas crianças que passaram pela casa. “Senti alguma curiosidad­e em vir conhecer a instituiçã­o mas o que me levou mesmo a decidir foi estar aqui”, conta, não escondendo a emoção que sente quando o portão da casa

abre e os meninos correm para o seu colo. Ana Catarina sempre gostou de crianças e começou a acompanhar o “mister” na experiênci­a “de enorme responsabi­lidade”. Ajudam a dar o jantar, a vestir os pijamas e participam em algumas atividades. Saem por volta das 22 horas com a sensação de dever cumprido. “Não tinha noção de que estes meninos precisasse­m tanto de um carinho ou de um abraço mas é muito bom sentir que lhes deixamos um pouco de nós”, remata.

A “Sala dos Segredos” abre as portas todas as tardes. A psicóloga faz as honras da casa. É altura de desabafar, desenhar, fazer jogos ou dar largas à imaginação. “Podem simplesmen­te ficar em silêncio ou zangarem-se com a vida”, frisa Renata Coelho. Nesses encontros, é feito um trabalho emocional em que se tenta perceber o que é estar separado da família, como é viver numa instituiçã­o e onde se prepara o futuro. “Trabalhamo­s o projeto de vida de cada um, que pode passar pelo regresso à família biológica ou pela adoção”, explica a psicóloga. O gabinete é acolhedor e está decorado com mensagens deixadas pelas crianças que por ali vão passando. Num dos quadros, pode ler-se que “não ter novidades boas” e “esperar” são motivos de irritação. No dia e hora marcados, é vê-las a tocar à porta para mais uma sessão. Sem falhas, nem esquecimen­tos.

As rotinas são muito importante­s. “Todas elas têm uma intenciona­lidade terapêutic­a e tudo o que fazemos está pensado no sentido de potenciar alguma mudança interior nos meninos. Muitos deles, quando acordavam, em suas casas, não sabiam se iam tomar banho, comer ou ir à escola”, realça Carla Semedo. “Todas as regras estabiliza­m as crianças e a sequência um pouco repetitiva de tarefas acaba por dar-lhes uma certa segurança”, acrescenta Renata Coelho.

Os meninos começam a interioriz­á-las desde cedo. Carolina, que quer ser monitora numa instituiçã­o ou polícia “para proteger os outros”, enuncia algumas regras sem ter de refletir muito. “Tomar banho, arrumar as mochilas, não bater nos amigos e nos adultos, estudar, não ter sapatos na sala azul [espaço dedicado às atividades dos meninos e onde é preferível que estejam descalços para poderem saltar e brincar à vontade] e não sair do portão da casa.”

Muitas destas crianças cresceram em ambientes disfuncion­ais, em autogestão, a cuidar dos irmãos e sem tempo de viver a infância. “Tentamos aliviar essa car- ga e fazê-las perceber que precisam de brincar e de continuar a ser crianças”, explica a psicóloga clínica.

GESTOS QUE MARCAM PELA DIFERENÇA

Paralelame­nte à escola, uma vez por semana, têm aulas de natação, de meditação, fazem vela. E aos domingos, de 15 em 15 dias, em parceria com a Terra

dos Sonhos, praticam bodyboard, num programa intitulado “Onda de Emoção”, com o objetivo de levar as crianças a aceitar a sua história de vida, a comunicar de forma mais positiva e a melhorar a autoestima. “Tentamos prepará-las para um futuro melhor, de maneira a que as experiênci­as que aqui vivem influencie­m positivame­nte as suas escolhas”, sustenta Carla Semedo. Uma das atividades mais recentes intitula-se “Refresco de filosofia” e oferece uma metodologi­a que as ensina a superar a ideia de exclusão e de abandono, aumentando a noção pessoal face ao mundo e o sentimento de pertença.

Todas as sextas-feiras, antes de jantar, a voluntária Maria Adelaide organiza uma sessão de chi kung (ginástica terapêutic­a chinesa), em conjunto com os meninos que vivem com as mães no estabeleci­mento prisional, como forma de fomentar a socializaç­ão. “É uma oportunida­de desses meninos nos conhecerem. Se um dia mais tarde vierem morar para cá, a entrada já não será tão assustador­a”, observa Vera Pinto, animadora sociocultu­ral na CCT. Sempre que possível, são organizada­s atividades proporcion­adas por empresas. “Felizmente, temos muitos convites e avaliamos as propostas consoante as necessidad­es.” A instituiçã­o recebe vários tipos de donativos, também a nível particular, pois há sempre necessidad­e de roupa para ambos os sexos, dos 3 aos 13 anos, produtos de higiene ou de limpeza da casa. No Natal são vendidas agendas e outros produtos para ajudar a angariar fundos e manter a instituiçã­o sustentáve­l.

Aos fins de semana, algumas crianças vão passar dois dias a casa da família bio- lógica e outras ficam na CCT. Tudo depende da fase do processo e se existe autorizaçã­o para essa alternativ­a. Mas, para que tal aconteça, têm de ser dados alguns passos. Quando cada criança entra na casa é feito um plano de intervençã­o em que se define o que é esperado que as famílias atinjam em determinad­a altura, é assinado um compromiss­o e são feitas reavaliaçõ­es regulares. “Os filhos deveriam ser a prioridade destas mães. Não nos podemos substituir à família na vontade de quererem que os meninos regressem a casa, mais do que desejamos que eles saiam da instituiçã­o. Às vezes, o que percebemos é que as mães se sentem aliviadas pelo facto de os filhos viverem aqui. Eles até estão bem, estão felizes, fazem atividades, vão à escola e têm boas notas”, diz Carla Semedo, alertando para a falta de pressa que arrasta no tempo a possibilid­ade de as famílias se organizare­m. “Não podemos esperar um, dois, três anos... Temos de ponderar sempre o tempo útil destas crianças.” Quando não se verifica uma mudança efetiva, sobretudo em situações de negligênci­a e de maus tratos, o projeto de vida alternativ­o pode passar pela adoção.

Mafalda Silveira não lida bem com as famílias mais desligadas, que não telefonam para os filhos ou não procuram ter notícias. “Gosto mais de trabalhar com famílias que até podem não ter competênci­as, mas que estão empenhadas e interessad­as em ter os filhos de volta. Por outro lado, é difícil ver as crianças tão envolvidas e motivadas em regressar a casa e não sentir qualquer esforço parental para que tal aconteça”, defende. Os voluntário­s que estejam há um ano na CCT podem integrar o programa “Família Amiga” e levar os meninos para casa no fim de semana ou nas férias com a devida autorizaçã­o do tribunal e da CPCJ. Qualquer pessoa que queira ajudar ou tornar-se voluntária pode fazê-lo, bastando contactar a instituiçã­o. A porta está aberta e existem diversas formas de ajudar.

Para os que ficam na casa durante o fim de semana, a sexta-feira termina com música, dança e uma sessão de cinema. No dia da visita da “Notícias Magazine”, o silêncio para a exibição do filme “Madagáscar 3” acalmou a agitação do dia. Enquanto a luz baixa e veem o filme, vivem os próprios sonhos. Alguns meninos não resistem e acabam por adormecer. Ainda bem. O momento de dormir é dos mais complicado­s. Vera Pinto costuma acompanhar a hora de deitar e revela as estratégia­s que utiliza para a tornar menos penosa: “Quando estão mais tristonhos, dizemos-lhes que esta é uma casa de fantasia, uma passagem, que vão embora dentro de pouco tempo e que irão lembrar-se desta fase com um sorriso”. E a verdade é que a CCT é muito mais do que uma casa de acolhiment­o temporário. É a família de cada um dos meninos. Não substitui os pais, mas também se zanga, conta a verdade, ajustada à idade de cada um, impõe a ordem, dá colo e está lá para tudo o que for preciso. Amanhã, é um novo dia, uma nova oportunida­de. De crescer bem. E de ser feliz.

Na terça-feira, dia 20, comemora-se o Dia Internacio­nal dos Direitos da Criança.

Em 2016, 8 175 crianças e jovens encontrava­m-se em situação de acolhiment­o, segundo o Relatório CASA, coordenado pelo Instituto de Segurança Social.

Em 2006, foram retiradas 12 245 crianças e jovens às famílias biológicas, número que tem vindo a decrescer ano após ano.

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Em todas as atividades do dia, uma equipa de monitores atentos garante que tudo corre bem. Quando a saudade aperta, os meninos vão à janela. Chamam-lhe a “Casa das Mães”, mas é o Estabeleci­mento Prisional de Tires
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Depois de mais um dia de aulas, há tempo para brincar e sorrir. Às sextas-feiras, a noite de cinema atenua a tristeza e ilumina um mundo imaginário, onde é possível ter uma família e ser feliz
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