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PORTUGUESE­S EXPLORAM PORTUGUESE­S EM ESPANHA

- José Miguel Gaspar TEXTO Leonel de Castro/global Imagens FOTOGRAFIA

É o crime de que ninguém quer falar. No primeiro trimestre de 2018, realizaram-se em Portugal 984 ações de inspeção do SEF em locais conotados com tráfico de pessoas e exploração laboral, mas só 11 seguem nos tribunais. Porquê? Porque manda o medo, a ignorância e a espada pendente da retaliação. O problema atravessa a fronteira, onde no início do mês, na região vinícola de La Rioja, as polícias ibéricas desarticul­aram uma rede que cobria 30 portuguese­s explorados por outros portuguese­s na vindima ilegal. Duas testemunha­s relatam à “Notícias Magazine” a dura realidade e o que os empurrou para lá.

Acasa de R fica na sombra de uma igreja branca do Portugal interior central. Tem 20 anos, o seu nome fica tapado para sua proteção, e agora, devido a um somatório de más decisões, atalhos e companhias más, está agrilhoado à casa, em prisão domiciliár­ia a aguardar julgamento por furto e pequeno tráfico de estupefaci­entes em que caiu repetidame­nte por não ter emprego. Vive com a mãe, ela tem 39 anos, está desemprega­da, e o meio-irmão mais novo de dois anos. O pai acabou de sair intempesti­vo outra vez, ninguém lhe dava trabalho aqui, partiu de novo para Espanha de carrinha com o mandante que andou pela terra a angariar. “Vai à poda”, explica o filho, “as vindimas já foram, agora é a poda das vinhas e as azeitonas, também há os pimentos e os espargos, são como línguas mariscais, são muito bons, doces, os pimentos vermelhos, foi uma coisa que ouvi eles lá dizerem, como línguas mariscais”, diz ele. “Sai de lá muita conserva mundial, mas esses ele não gosta, dobra muito a mola para apanhá-los rente ao chão”, diz R, “não conseguia arranjar contrato aqui, ele foi ontem [na segunda semana de novembro], foi outra vez na carrinha com o Abílio, um mandante que duas ou três vezes por ano aparece por cá”. A sala da casa modesta tem um televisor pequenino, um perfil de Nossa Senhora emoldurado a descascar na parede e divide-a ao meio um pano engelhado azul que tapa duas camas sem mesinhas de cabeceira. A criança rabuja, já desceu do colo da mãe, quer subir outra vez, tem sono nos olhos e uma camisola que lhe faz calor.

A sala está na penumbra, a mãe olha calada, R enrola um cigarro, coça o tornozelo, abana a cabeça, acende o cigarro e desfia o que lhe sucedeu: em agosto foi levado para as vindimas numa “finca” espanhola em Mendávia, Logroño, na região autónoma de La Rioja, a primeira região DOC de Espanha, por um angariador português que o abordou ali onde mora, o mesmo angariador que levou agora o seu pai, e depois o enganou no salário que recebeu. “Prometeram-me de boca 1 500 euros por mês com cama e refeições, mas ao fim do mês eu quis vir embora, desentendi-me com eles, não gostava do trato deles nem de nada daquilo lá, um pardieiro, uma parvónia, e só me deram 140 euros. Toma. Fiquei parvo. Diziam que o resto era o que lhes devia das viagens, da dormida, da comida e de mais uns gastos não sei de quê. Fiquei parvo e sem reação, mas estava farto deles e de tudo e vim-me embora de comboio de volta para cá.” E depois R diz com desarme “estava a ver que ainda lhes ia ficar a dever dinheiro por ter ido para lá trabalhar para eles”, e sorri a menorizar com ironia a burla em que caiu.

Não parece ter plena consciênci­a, mas R é um alvo típico das redes de tráfico de pessoas levadas para trabalho ilegal: desemprega­do, pobre, sem qualificaç­ões, ignorante das leis do trabalho e dos direitos sociais. Ignora também que esse crime daria ao seu mandante

A Guardia Civil divulgou imagens em que eram visíveis as condições deplorávei­s em que os portuguese­s viviam uma pena de prisão de três a dez anos ou até 12 se o mandante “atuar profission­almente e com intenção lucrativa”. É o que diz o artigo 160 do Código Penal, ponto 1, para “quem oferecer, entregar, recrutar, aliciar, aceitar, transporta­r, alojar ou acolher pessoas para fins de exploração (...), incluindo a exploração do trabalho e a escravidão (...) através de ardil ou manobra fraudulent­a” (alínea a) ou “com abuso de autoridade resultante de uma relação de dependênci­a hierárquic­a, económica, de trabalho ou familiar” (alínea b).

NÚMERO DE VÍTIMAS ESTÁ A AUMENTAR

Este é o crime de que ninguém quer falar, que poucos denunciam, que socialment­e se cala, culturalme­nte também, um crime em que as vítimas não procuram justiça nem ajuda posterior, não fazem queixa judicial, é um crime em que prevalece a urgência da imposição de fazer dinheiro, em que no fim impera sempre o medo da vingança e da retaliação. É neste quadro que o número de vítimas de tráfico de seres humanos confirmada­s em Portugal aumentou quatro vezes de 2015 para 2016, de 32 para 118 pessoas. As sinalizaçõ­es, vítimas sobre as quais recaem suspeitas de terem sido traficadas, também subiram, de 193 para 261. É o maior número de vítimas em Portugal constante dos relatórios do Observatór­io de Tráfico de Seres Humanos, que compila dados desde 2008. “É uma situação em descontrol­e num crime que tem tudo de hediondo no aproveitam­ento das fragilidad­es humanas”, dirá o sindicato dos inspetores do Serviço de Estrangeir­os e Fronteiras.

Mas, para R, embarcar naquilo foi uma forma de desespero como outra qualquer, um desespero tranquilo, sem cólera ou raiva ou frenesim, como se fosse só uma forma de desistir mas a continuar, como se às vezes não houvesse outra saída que não fosse dar o passo em frente e esperar flutuar no abismo.

E R foi, levado por Abílio – “não sei se o nome dele é realmente esse, mas ele diz que se chama Abílio” – e a viagem até La Rioja demorou seis horas, 700 quilómetro­s, com passagem na fronteira livre de Vilar Formoso. Foi tranquila, calada, escura, é o que se lembra R, saíram de tarde, chegaram de noite, foi ele e mais quatro homens, pararam uma vez para comer, o mandante conduzia e pagou tudo até lá chegar. R e os outros portuguese­s ficaram instalados numa pequena casa de Bergasa, “pueblo” de 90 habitantes de poucas falas e um só café à beira da Junta e que ficava a meia hora de carro da quinta de Mendávia onde iam trabalhar.

“AMEAÇAM E FICAM COM OS DOCUMENTOS”

É uma casa vermelha de portão preto, “um pardieiro numa parvónia”, repete R, “umas condições de merda, seis homens por quarto em beliches, sem janelas, sem televisão, não havia nada à noite para fazer, os dias eram todos iguais”, continua R, “trabalháva­mos até ao sábado, só folgávamos ao domingo. Levantar às seis, às vezes o banho era frio, chegar às sete, pequeno-almoço de café com leite e pão e depois dez horas de trabalho seguido ou mais. Só parávamos uma vez à hora de comer, comíamos no campo da vinha, fran-

go com arroz, massa com frango, frango com batatas, nunca comi tanto frango seguido, não como desde aí, acho que enjoei. Uma vez ou outra só comíamos uma sandes, eles deixaram a comida ao sol e estragou-se, e deram-nos uma sandes toda amassada a cada um e ficaram a rir-se de nós”.

Não estava preso, mas não podia ir a lado nenhum, diz R, “eles andavam sempre em cima de nós, o Abílio e os outros dele, acho que são três famílias que organizam tudo, uns são ciganos, mas acho que não são todos, eles ficavam com os documentos desde que chegámos e ameaçavam-nos se os queríamos, a mim só me deram o Cartão do Cidadão no dia em que disse aos berros que me queria ir dali”.

“Contas altas, vais tirar no mínimo 1 500 euros por mês, dizia o Abílio para me convencer a ir e eu, que não tinha outra coisa à vista, acreditei, burro, e fui. Fui comido, claro. O contrato era só de boca, mas se fosse de papel era daqueles cheios de letras pequeninas que diziam que eles nos descontava­m tudo ou quase tudo o que íamos ganhar.”

Mesmo só recebendo 140 euros, mesmo só agora realizando que foi um escravo laboral, R não denunciou o caso, nem lá nem cá, não fez queixa a ninguém. “Engoli, foi o que fiz.” E surpreende com a resposta que dá a seguir: “Não sei se não voltaria, se não tivesse outra hipótese não sei”, e aqui a mãe de R olha para ele, obscurece-se e fala uma única vez baixinho para dizer que não gosta que “eles entrem nesses trabalhos, mas eles é que sabem, que um homem sem trabalho não é nem pode ser ninguém”.

REDE COM 30 PORTUGUESE­S ILEGAIS

Bergasa, a aldeia no vale de La Rioja que a “Notícias Magazine” visitou, e que é frequente poiso de portuguese­s sazonais, é basicament­e uma rua, uma igreja pequena, que já foi branca, fechada e casas baixas de fachada lisa, sem jardins, muitas delas em cru por pintar. À volta a paisagem é majestosa, com o largo vale do Rio Ebro que nasce na cordilheir­a Cantábrica e vai até ao Mediterrân­eo, os campos pontilhado­s de vinhas ordenadas e tosquiadas como bonsais, pinheiros, ciprestes e grandes choupos com folhas multicolor­es a outonar, aqui e ali colunas de fumo das queimadas que já se estão a fazer. É onde está La Rioja, a primeira DOC de Espanha, o terceiro maior país produtor de vinho mundial.

Mas, ali, em Bergasa, o povo é de pouca fala, sobretudo se o assunto é o trabalho ilegal. Ninguém ignora que ele existe, que há portuguese­s ali, mas ninguém se descose, nas ruas, na Junta, no café, só o alcaide aceitará, e a custo, falar. “Oficialmen­te, não sabemos nada dos ilegais. Sabemos que são portuguese­s, convivem connosco perfeitame­nte, não sabemos que problemas passam ou possam ter, nem temos que saber”, diz Angel Ferrero, alcaide de Bergasa há 15 anos, que sublinha que as autoridade­s não lhe dizem nada. “Só me incomoda o mau nome que a terra possa a ter, ser notícia por tráfico de pessoas e coisas más. E nada mais lhe posso dizer.”

Foi ali em Bergasa e em Alcanadre, outro “pueblo” dormitório de aspeto tristonho com 900 habitantes e seis cafés a 30 quilómetro­s dali onde vamos já conhecer M, português de 50 anos vindo ilegal do Portugal litoral, que se desenrolar­am no início do mês as operações policiais que juntaram o SEF, a PJ e a Guar-

“Umas condições de merda, seis homens por quarto em beliches, sem janelas, sem televisão.” R, 20 anos, e a vida em Bergasa, “pueblo” de 90 habitantes, gente de poucas falas e que fica a meia hora de carro da quinta, em Mendávia, para onde iam trabalhar

dia Civil, provocando notícias em toda a Península Ibérica. Na altura, foram identifica­dos e presos quatro portuguese­s suspeitos de tráfico de outros portuguese­s para fins de exploração laboral – foram libertados no dia a seguir; um deles será Abílio, o “Patrono” –, e desmantela­da a rede que envolvia 30 portuguese­s vítimas de trabalho ilegal, sem contratos, sem descontar para a Segurança Social.

“Durante a investigaç­ão foi possível determinar como os alegados autores aliciavam as suas vítimas em Portugal, em ambientes sociais extremamen­te vulnerávei­s, oferecendo-lhes condições de trabalho ilusórias”, diz o comunicado do dia 2 da Guardia Civil. “Transporta­vam-nos para Navarra e La Rioja para realizar trabalhos agrícolas nas diferentes campanhas, em condições precárias e violando muitos dos seus direitos.”

O comunicado detalha: “As condições de trabalho incluíam dias muito superiores ao regulament­ado e com um sistema de remuneraçã­o em que um dos detidos, conhecido como ‘Patrono’, recebia o total de salários, fazendo ele próprio a distribuiç­ão, descontand­o a parte que considerav­a adequada para habitação e manutenção”. E mais. “O ‘Patrono’ tinha várias pessoas, de nacionalid­ade portuguesa, que desempenha­vam tarefas de controlo sobre as vítimas nos locais onde pernoitava­m, onde estavam apinhadas e em condições totalmente anti-higiénicas e anti-sanitárias. Nessas acomodaçõe­s, de acordo com as próprias vítimas, em três ou quatro quartos podiam dormir mais de 25 pessoas, às quais o ‘Patrono’ cobrava 20 euros/dia a cada um pela comida e o albergue precário”.

“É tudo isso e muito mais, isso é uma seita, é gente que não interessa nem ao Espírito Santo”, diz logo M (o seu nome fica oculto também para proteção), o

português de 50 anos emigrado em La Rioja desde que se divorciou em 2011 e se viu desemprega­do de longa duração. Ele conta que andou intermiten­temente cinco anos a trabalhar para o “patrono” Abílio e os seus mandantes em várias “fincas” espanholas a quem vendiam a mão-de-obra ilegal. “É escravatur­a moderna, não tenho dúvida nenhuma, é uma tristeza, é o que é, éramos vendidos por atacado e as grandes quintas, as ‘fincas’, pactuam com isso porque querem baixar os custos legais do trabalho. Aqui na Rioja circula muito dinheiro, milhões, a Espanha é o maior exportador de vinho do Mundo, mas para nós é como se tivéssemos uma máfia a trabalhar para outra máfia em que nós somos duplamente aldrabados.” Ele relata as más condições do albergue de Alcanadre onde o grupo de Abílio tem uma herdade de quatro casas precárias – “já dormi com dez homens em beliches, todos empilhados num quarto de 6x3 metros, uma casa de banho imunda para todos” –, a péssima comida empapada – “é comida para porcos, ouvi eles dizerem do comer que faziam para nós” –, as burlas à fiscalidad­e – “são parasitas, não pagam impostos, não declaram rendimento­s, não fazem seguros aos trabalhado­res, não descontam para a segurança social e quando o fazem é para inscrever alguns, sem eles saberem, no fundo de desemprego, no ‘paro’, e depois ficam-lhes com o subsídio todo, chega aos 800 euros”. M afirma que Abílio era o mandante e que o seu principal ajudante, um homem alto e largo, dá pelo nome de Carlos e que ambos foram detidos na operação do início do mês, mas que “já estão cá fora e continuam no seu labor, que é há uns 17 ou 18 anos endrominar e explorar outros portuguese­s. Todos os conhecem cá e lá, são quatro famílias, têm mulheres e crianças, mas são violentos, intimidam, ameaçam, o que fazem é nojento”, diz M. “Não é que fosse melhor abusar de estrangeir­os, mas quando vemos nossos a explorar os nossos e ainda por cima no estrangeir­o parece que é pior, não é? Canalha, é o que eles são!”. E M detalha o procedimen­to nos vencimento­s, num modus operandi que é sempre igual. “É assim, se as ‘fincas’ pagam 50 ou 60 euros por dia, eles ficam sempre com mais de metade. Normalment­e, entregam 20 euros ao trabalhado­r, às vezes menos, e descontam tudo dos gastos que eles inventam para nós. Toda a gente sabe que é assim, incluindo os que continuam a deixar-se enganar.” Não é só enganado repetidame­nte quem quer, diz M, é enganado quem não tem horizontes: “São pessoas de necessidad­es, não têm conhecimen­tos nem formação e depois têm medo e não se sabem defender. Alguns são de cabeça simples, compreenda, outros são alcoólicos ou gostam de fumar os seus ‘porros’ [haxixe] e depois ficam alheados da miséria da sua situação. É muito triste, é uma nojeira que se aproveitem deles”. Mas também M, que aparenta ser destemido e saber mais do que os demais, nunca se queixou às autoridade­s, nunca denunciou oficialmen­te o que viu. Diz que o fará se lhe perguntare­m, mas por agora só aduz esta certeza: “Trabalhar para essa escumalha é que nunca mais! Nem que tenha que morrer de fome”.

ESPANHA AUMENTA A LUTA

O tráfico de pessoas, que a nível internacio­nal surge em cena na convenção da ONU de 2000, envolve a captação de trabalhado­res com artifício e logro, transferên­cia para outro país ou local e um propósito final de exploração com supressão de liberdade. A exploração laboral é ainda pouco divulgada, ainda subestimad­a e essa luta em Espanha, que é recente, enfrenta lacunas le-

gais e está a pôr a descoberto cenários insuspeito­s. Neste caso, as vítimas são geralmente homens que trabalham na agricultur­a, em empresas têxteis, restaurant­es ou, no caso das mulheres, em bares ou serviços de índole doméstico. Nos dois últimos anos, 534 pessoas foram presas em Espanha e haverá agora 23 mil pessoas em situação de risco. Mas os especialis­tas detetam problemas de definição legal: “A lei exige uma profunda reforma que esclareça conceitos. É muito difícil determinar o que é exploração pura e laboriosa e quais são as condições abaixo das normas. Há ações e há sentenças, mas é necessário uma maior clareza legislativ­a. É um objetivo do combate ao tráfico por definir”, diz o gabinete do Relator Nacional sobre Tráfico, uma figura institucio­nal criada há quatro anos. O quadro é este: “De 2012 a 2016, 5 695 pessoas foram libertadas em Espanha pelas forças de segurança da sua escravidão como vítimas de tráfico em exploração sexual ou laboral”, segundo o Ministério do Interior. “Após as mudanças legais adotadas de 2010 a 2015, que impulsiona­ram a luta contra este flagelo, esta é a primeira fotografia aproximada de um fenómeno que tem sido largamente ignorado”, diz o relator, “um negócio que já quase excede o tráfico de drogas e de armas”.

AINDA SEM ACUSAÇÃO, MAS NEGAM TUDO

Onde estão agora os 30 portuguese­s detetados na operação policial e que advirá aos quatro alegados mandantes? O gabinete de comunicaçã­o da Guardia Civil de Navarra responde por escrito que “o caso está em segredo de justiça”, mas adianta que “as vítimas não estão inscritas em nenhum processo administra­tivo ou judicial” e que “podem continuar a laborar em Espanha porque são cidadãos da UE”. Adianta ainda que “as quintas onde eles laboravam não foram encerradas” e que isso “só poderá suceder quando for finalizada a instrução judicial e se outorguem as responsabi­lidades que podem ter tido nos factos”. Quanto a Abílio, o ajudante Carlos e os outros dois portuguese­s presos (mas libertados 24 horas depois), a Guardia Civil de Navarra disse à NM que “ainda não foi feita a acusação formal. Houve uma primeira acusação policial”, que “agora estamos na fase da instrução judicial que, juntamente com a Fiscalia, fará tramitar os factos aos órgãos judiciais penais”. Só depois haverá a acusação final e o julgamento, “que decorrerá em Espanha”.

Em Portugal também não há notícia dos 30 portuguese­s, as autoridade­s não revelam de onde são, nem se voltaram a casa. Do Observatór­io para o Tráfico de Seres Humanos (OTSH), um gabinete na dependênci­a do Ministério da Administra­ção Interna, dizem à NM que ninguém os contactou e que nas cinco Casas de Acolhiment­o e Proteção nenhum deles deu entrada. “Se formos solicitado­s temos meios de os ajudar”, disse Manuel Albano, relator do OTSH. “Estarão a ser apoiados em Espanha ou ainda podem contactar-nos, mas até agora, oficialmen­te, nada sabemos deles”, disse o relator.

Nos dias que passou em La Rioja, a NM tentou por três vezes falar com o “patrono” Abílio na sua herdade onde a polícia desarticul­ou a rede ilegal. É uma quinta de aspeto desarranja­do já fora da povoação, com carros desmontado­s nas traseiras e peças espalhadas, restos de obras por arrumar, plásticos e lixos dispersos nos matos, quatro casas de ar rudimentar, a maior em cor-de-rosa sujo, uma garagem onde era o ‘comedor’ e uma impressão geral de desleixo. Só que Abílio nunca estava, estava sempre para chegar, mas nunca chegou. E Carlos e os outros comparsas, que incluíam nesses dias um homem e duas mulheres portuguesa­s, disseram que o “patrono” não os deixava falar. Do pouco que disseram, negaram tudo, “é tudo mentira, não havia aqui 30, havia quatro e eram legais”. “Somos famílias trabalhado­ras, honestas, não nos metemos nessas coisas, se calhar o ‘patrono’ é mas é bom de mais e os outros têm inveja, está-se a ver.” E as mulheres, que saíram imediatame­nte com ar inquisitiv­o, fecharam a conversa a falar mal do seu país: “O nosso Portugal não vale nada, está cada vez pior”, disse uma de ar grave. “Não gosto do meu país”, disse a outra que saíra à rua de roupão, “no nosso país ninguém vive, só sobrevive”.

LOS VITIS, OS GÉMEOS, EXPLICAM PORQUÊ

“Os romenos, os portuguese­s e os marroquino­s são os preferidos aqui para o trabalho sem papéis e desses é o que há mais”, diz sem problemas Jesus Ignácio Judas, irmão gémeo de João Pedro Judas, 50 anos, agricultor­es espanhóis nascidos em Alcanadre e conhecidos ali como Los Vitis. Têm uma pequena vinha na orla do povoado e um “olivo” que dá azeitonas curadas e azeite. Chegando a hora da poda, que está a chegar, eles contratam pessoal de fora. “Nós, os espanhóis, os de cá, somos muito mais fiscalizad­os, temos que ter sempre tudo em ordem, seguros, contratos, segurança social e nunca trabalhamo­s com ilegais, não compensa, em todas as campanhas a Guardia aparece sempre cá”, diz Jesus, o mais garrido dos irmãos Judas. “Não queremos cá intermediá­rios a sacar o nosso ou o dos trabalhado­res”, junta João Pedro, “a última vez que usamos um, já faz tempo, era um ‘gitano’ português que andava de Mercedes e maços grossos de notas enroladas que sacava do bolso, dessa vez andei sempre de pistola no trator. E uma vez tive que lha apontar, ela vinha com uma ladainha e umas contas esquisitas, ó tio, nunca mais, foi a última vez”. E depois os dois explicam como se avalia um bom trabalhado­r. “São três coisas que tens que ver: a cara, a roupa que trazem e o que comem. A cara é preciso saber lê-la, descortina­r se têm vontade verdadeira de trabalhar, isso vê-se. A roupa e a forma como se põem também são para avaliar, um homem que não tem orgulho em si, que não sabe estar, não há de ter orgulho no trabalhar. E depois há a comida, é pôr-lhes o prato à frente e ver como comem, quem não serve para comer não vai certamente servir para trabalhar.”

“SITUAÇÃO FORA DE CONTROLO”

Em Portugal, onde no primeiro trimestre deste ano o SEF realizou 984 ações de fiscalizaç­ão de que resultaram apenas 11 inquéritos, a situação está descontrol­ada. É o que diz Acácio Pereira, do Sindicato da Carreira de Investigaç­ão e Fiscalizaç­ão do SEF. “Os números dos relatórios não refletem a realidade. Em 2017, só 20 inquéritos foram levantados em 5 852 ações inspetivas – e só houve 15 em 2016, 18 em 2015, 22 em 2014. São valores ridículos que espelham uma enorme falta de meios. Sentimos um pulsar no terreno que nos diz que há um grande défice de fiscalizaç­ão nesta área”, assegura. E mantém que “a situação está fora de controlo” e que “é claramente necessário um reforço de meios para o terreno e isso depende da vontade política”.

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A imensidão de Mendávia “ajudou” a esconder a rede que explorava 30 portuguese­s. Nos dois últimos anos, 534 pessoas foram presas em Espanha e haverá agora 23 mil pessoas em situação de risco
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Jesus Ignácio Judas, irmão gémeo de João Pedro Judas, 50 anos, são agricultor­es espanhóis. “Romenos, portuguese­s e marroquino­s são os preferidos aqui para o trabalho sem papéis e desses é o que há mais”, diz o primeiro

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