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Quando o corpo ganha vida própria
Uma em cada cinco crianças tem tiques. Quase sempre são benignos, às vezes mal se notam, mas também podem ser intensos e perturbar a vida familiar e escolar. A informação é chave para eliminar a incompreensão alheia.
Opiscar de olhos e o franzir de nariz de Tomás começou pelos 11 anos, em situações pontuais, quando ficava nervoso. Depois houve um dia em que, num momento de maior stresse, foi como se tivesse sido ligado um interruptor que ninguém conseguia desligar. “Era assustador e aflitivo. Os olhos e o nariz não paravam quietos, fazia aqueles movimentos de dez em dez segundos”, conta Maria Machado (nome fictício), madrinha e uma das principais cuidadoras. Tomás iniciou consultas de neuropediatria e fez terapia cognitivo-comportamental. Conseguiu manter um bom desempenho escolar e nunca se sentiu excluído ou gozado. “A única alteração foi deixar de ir a uma atividade extracurricular de teatro. Pediu para sair porque não se sentia confortável. Os professores estavam sensibilizados para o problema e os outros meninos de início perguntavam-lhe porque é que ele fazia aquilo, e ele respondia apenas que não sabia, mas não conseguia evitar.” Não foi necessária medicação, e em pouco mais de um ano o tique desapareceu. Hoje, com 14 anos, Tomás está livre de tiques há mais de um ano. A situação foi passageira, como na maioria dos casos.
Os tiques são vocalizações ou movimentos involuntários, súbitos, breves e rápidos, que ocorrem de forma repetitiva e recorrente. Podem ser motores ou vocais, simples ou complexos, transitórios ou crónicos (ver caixa). Afetam quatro vezes mais rapazes do que raparigas e são muito frequentes: estima-se que 25% de todos os meninos têm tiques durante a infância, sendo que na maioria dos casos é uma situação benigna e transitória.
Os tiques são de etiologia desconhecida, uma expressão complicada que quer dizer algo simples: a sua origem não está bem esclarecida. “Sabe-se que há interferência quer de fatores genéticos, quer ambientais – como baixo peso ao nascer, consumos da mãe durante a gestação, traumatismos cranianos graves e algumas infeções – que podem servir como desencadeantes ou mo- duladores. E pensa-se que possa também haver um fator autoimune associado”, explica a pediatra do neurodesenvolvimento Mónica Pinto. De acordo com a médica, estes fatores podem causar um desequilíbrio nos neurotransmissores cerebrais, com aumento da atividade da dopamina, que causam modificações em algumas áreas do cérebro. “São movimentos com uma base neurobiológica, embora possam ser agravados em situações de stresse ou com uso de estimulantes.”
Susan Scheftel, Professora de Psicologia Médica em Psiquiatria do Centro de Treino e Investigação Psicanalítica da Universidade de Columbia, EUA, reforça a necessidade de deixar muito claro que os tiques têm uma base neurobiológica e não são uma manifestação psicossomática. “As origens são orgânicas, são impulsos que partem do lado mais primitivo do cérebro e dos gânglios basais, que controlam o movimento. Não são um distúrbio psicológico e não têm um significado simbólico, como alguns psicanalistas mais antigos gostam de pensar.” Isto é importante, frisa a investigadora, porque os pais, professores e restantes pessoas “precisam de entender que a criança não está a fazer estas coisas ‘de propósito’ e isso pode ser difícil de entender nos casos de ações perturbadoras, como dizer palavrões ou atirar coisas.”
Os tiques são involuntários, pese embora com algum esforço e foco a criança possa conseguir suprimi-los por um breve período. “Mas ele acaba por ter de sair. É como um de nós tentar suprimir uma tosse quando está num local em que sabe que não deve tossir: podemos conseguir controlá-la alguns instantes, mas saímos a correr e de-
“A CRIANÇA NÃO FAZ ESTAS COISAS ‘DE PROPÓSITO’ E ISSO PODE SER DIFÍCIL DE ENTENDER” Susan Scheftel Professora