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INTERNACIO­NAL ALCOÓLICA

- Rui Cardoso Martins POR

O homem não veio, mas o seu caso veio representá-lo sozinho no tribunal. O advogado oficioso não sabia sequer onde é que ele se encontrava. Tinha esperança de o localizar, talvez por telefone, uma vez o homem atendeu, e até combinaram, mas depois perdeu-o. Esse trabalho de localizaçã­o deverá agora caber à polícia. A juíza mandou chamar a técnica de reinserção social:

— Sabe o que veio hoje aqui fazer? Dar conta do sucesso em relação ao meu condenado. Ao meu... salvo seja!

A juíza perguntou à técnica se sabia porque é que o arguido tinha faltado a várias convocatór­ias judiciais. A técnica contou que, ao escreverem a morada, houve um erro nos serviços. Disso, ele não tinha culpa.

— Ah, já percebi, continuou a juíza, o homem não estava a faltar. A notificaçã­o é que ia para o número da porta errada, o que é suficiente para dar asneira...

— Nós, em Dezembro, falámos com ele depois de nos darem finalmente a morada correcta. Ele terminou em 21 de Abril deste ano a pena suspensa.

A juíza perguntou então se o homem mostrara sentido de responsabi­lidade, isto é, se cumprira o período de prova.

— Para nós a medida estaria terminada, ahhh...

— Isso é... nim? Parece-me que está com dúvidas.

A técnica de reinserção parou. Há uma coisa que tem de ser dita e o que tem de ser tem muita força.

— Bem, ele disse-me que tinha estado em Inglaterra a trabalhar uns meses, só que também não nos disse antes que ia trabalhar para fora do país, e era obrigado a dizê-lo ....

Dito isto, a técnica de reinserção respirou fundo. A juíza pediu-lhe que continuass­e o raciocínio.

— E ele é motorista, ainda por cima com problemas de alcoolismo... Motorista...

— Percebo que o seu nim, aqui, é não.

A juíza falou para a procurador­a da República, para os advogados, para toda a assistênci­a. Era o destino de um homem ausente, mas o seu problema ganhava corpo e peso à nossa frente. Imagino que não seja fácil tirar conclusões justas com tão poucos dados, mas para isso existe a experiênci­a.

— É que este senhor tem uma condenação de condução sob efeito de bebidas alcoólicas a 29 de Junho de 2017. Sendo que a pena estava suspensa quando não regularizo­u a sua situação e quando praticou outra vez este crime. Pois se uma das condições impostas era o controlo do alcoolismo, ele não cumpriu o que estava determinad­o no plano. Nunca mais entrou em contacto com a senhora técnica. E nunca foi à consulta de alcoologia.

É raro eu colocar situações externas, e menos ainda pessoais, quando conto estes casos de tribunal. Mas agora que vos escrevo sobre o caso do alcoólico ausente, lembro-me que assisti ao julgamento numa semana em que estive em Manchester, cidade operária inglesa, onde agora é comum ver jovens e velhos numa esquina aos caídos, de cara branca, cinzenta, verde. Bebem álcool, fumam spice (marijuana sintética). O governo lançava precisamen­te uma campanha para os ingleses em geral, homens e mulheres, passarem pelo menos dois dias por semana sem beber. E o nosso homem ausente lá deverá estar em Inglaterra, motorista português que bebe.

Para mais, neste instante em que escrevo, estou em Moscovo a olhar para um dos sete arranha-céus de mármore mandados construir por Estaline, o Leninskaya. Há pouco, na entrada da estação de metro da Praça Vermelha, vi os bêbedos da noite, deitados em posições torcidas nas escadas. São estes que às vezes amanhecem congelados, adormecend­o para sempre nas neves do país. Mas não está frio, ainda não está muito frio, o que é raro nesta altura, uma vez desci esta mesma escada a -25 ÛC, e desejo-lhes a melhor sorte. Há uma receita de cocktail do falecido escritor alcoólico e sem-abrigo Veneditkt Eroveev* que, além de cerveja, leva desinfecta­nte insecticid­a, óleo para travões, etc. É o Tripa de Cadela. “Bebam-no em grandes tragos quando aparecer a primeira estrela. Bastam dois tragos para a pessoa ficar tão inspirada que é possível aproximarm­o-nos a metro e meio de distância, cuspir-lhe no focinho, e ela nada dirá.”

* “De Moscovo a Petuchki”, trad. de José Manuel Milhazes Pinto, ed. Cotovia

O AUTOR ESCREVE DE ACORDO COM A ANTERIOR ORTOGRAFIA.

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JOÃO VASCO CORREIA
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