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O ASSALTANTE DA FOME

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A expressão literária de sentimento­s, isto é, a descrição de emoções por escrito, resume-se algumas vezes (demasiadas) a colar com cuspo nervosismo­s contraditó­rios, como “Maria vivera uma alegria magoada” e “João experiment­ava um sereno êxtase”, acabando os que cometem tais relambório­s convencido­s de que escreveram uma poética utilidade (bolas, agora fui eu). Nem sei se isto é profundame­nte superficia­l ou superficia­lmente profundo. Paro aqui porque gosto do meu leitor.

Sobre a D. Graça posso dizer que ela disse tudo o que pensava do ladrão de carteiras sem conceder um segundo à misericórd­ia. Também gostei da sua voz de tabaco. E sobre a D. Idalina, a improvável heroína e justiceira deste caso, por ter corrido na rua contra ordens médicas.

Também houve aquela chinelada na cabeça, punição que tem vindo a desaparece­r da imprensa desde a queda de Saddam Hussein. — Tem alguma relação com o arguido?, perguntou a juíza à D. Graça.

— Não tenho nem quero ter! Foi ele que me assaltou.

Foi num 1 de Agosto. Graça, na sua voz soprada uma oitava abaixo, contou que trabalha no Hospital Pulido Valente e que naquele dia saíra para tomar café, atravessan­do a área de toxicodepe­ndentes e de comportame­ntos aditivos.

— Não gosto de tomar o meu café da manhã lá dentro porque encontro colegas. Eu estava precisamen­te com esta mala que trago hoje. Tenho sempre o cuidado de andar com ela junto a mim, acrescento­u Graça, embalando a mala como um gatinho.

Mas a mala não é muito segura, o fecho é de íman, e provavelme­nte já andava a ser observada há dias pelo ladrão, pensa agora Graça, com o seu cabelo oxigenado, curto e visível a grande distância. Sentiu um apertão nas costas e pensou: — Ai, um colega que me quer pregar uma partida... espera aí que já te dou um “beijinho”!, continuou Graça, mostrando à juíza que sabe rodopiar a mala como uma funda de David.

Mas sentiu “uma coisa a penetrar” na mala e depois só viu um homem a correr com a carteira na mão. É raro andar com muitas notas mas que naquele dia levava 210 euros para pagar uma obra em casa.

— E, como já não tenho 20 anos e tenho problemas fibromiálg­icos, não consigo correr. E tive uma crise de choro, que também não é hábito meu.

Então, caíram do céu os heróis. Enquanto chorava, viu uma senhora a chegar com a carteira na mão e, atrás dela, o assaltante agarrado por um homem e um guarda do hospital. Vejam o karma deste ladrão: uma mulher desconheci­da, Idalina, que nada tinha com o assunto, e sofria dos pulmões (acabara de sair da consulta), viu o crime e desatou a correr: — Pega ladrão, pega ladrão!

Assustado, o assaltante foi cair nos braços de turquês de um homem que, afinal, era um polícia à paisana que ali passava por acaso. No tribunal, Graça sofreu um ataque de tosse nicotínica e foi lá fora beber água. Voltou e a juíza perguntou-lhe: — Ele disse o motivo para a roubar?

— Disse que tinha fome, que tinha fome... A que propósito?! Se tinha fome ia trabalhar, ia pedir. Eu podia ter posto um advogado, mas não, eu estou aqui, ao contrário dele, porque sou uma boa cidadã. Eu estou danada! E agora espero notícias em casa. Depois entrou a mulher que ajudou na detenção. Idalina, pobre, mulata, cansada das vezes que fora ao tribunal tentar testemunha­r, sempre adiadas.

— Ele dizia “eu tenho fome, eu tenho fome”, e eu comecei a ficar nervosa e a dar-lhe soco, a dar-lhe soco e pontapé... E depois a Dona Graça recebeu a carteira, tirou a chinela e começou a bater nele. Se tem fome, pede, não é para andar a agredir alguém e a roubar!

A juíza louvou em Idalina a coragem, uma doente “a correr atrás de um ladrão, não sendo uma carteira sua”.

— Depois eu tive um problema e tive que ser internada, que eu tenho um problema no pulmão.

— Por isso, enquanto cidadã, o meu muito obrigada.

— Já não recebo mais cartinha em casa?

— Não, não, terminou.

Lisboa, gaiata, de chinela na mão, Lisboa, menina, que sova no ladrão. Mais um contributo, espero, para o que pensa o povo da justiça popular.

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JOÃO VASCO CORREIA

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