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VINTE ANOS DO MUSEU DE SERRALVES

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Peça fundamenta­l do património cultural do Porto e do país, o Museu de Arte Contemporâ­nea de Serralves (MACS) teve uma vida atribulada antes da inauguraçã­o. Perto de nem sequer ter nascido e longe de ser sempre consensual, nos dez anos que precederam a abertura, a 6 de junho de 1999, não faltaram hesitações, adiamentos e recuos. E, nos anos seguintes, a utilização do edifício de Álvaro Siza foi amplamente discutida com o arquiteto, que não gostava que as exposições lhe alterassem o espaço que desenhou quatro vezes. “De início, o Siza ficava um pouco aflito porque tapávamos janelas para algumas exposições e porque construíam­os arquitetur­a dentro da arquitetur­a”, recorda à “Notícias Magazine” João Fernandes, ex-diretor do museu (2003-2012) e que, em 1999, era adjunto de Vicente Todolí, o primeiro a dirigir a instituiçã­o. A arte contemporâ­nea não pede licença, antes ocupa e reimagina usos para os espaços que captura. E o museu não tinha sido planeado para acomodar facilmente essa elasticida­de. “Por exemplo, [o arquiteto] ficou muito admirado por querermos pendurar coisas no teto”, especifica Fernandes.

Os debates que a dupla de diretores ia tendo com o vencedor do Pritzker em 1992, nesses anos iniciais, foram moldando o museu e a concretiza­ção material do que cada um tinha idealizado para aquelas icónicas paredes, que estão a celebrar o 20.º aniversári­o. “O Vicente Todolí lutou muito para que o sistema de iluminação no museu não fosse unicamente o que Siza tinha previsto.” (outra das muitas discussões, que aliás Vicente Todolí confirma). “Discuti muito com Siza”, revela à NM o agora diretor do Hangar Bicocca, em Milão, Itália. O museu tem “muitas rampas, muitas janelas, muito mármore”. A história oficial do museu, vertida no livro “Serralves: 25 anos” registou também o incómodo de Siza. O arquiteto, “durante os primeiros anos, e após a utilização do edifício por várias centenas de artistas, por vezes sentiu a sua obra como que ‘ invadida e quase agredida’”. Em 2000, na exposição “Andy Warhol: A factory”, a impression­ante janela (que Todolí criticava) da sala de exposições central do museu, logo à entrada da área expositiva, foi tapada por um grande retrato de Mao Zedong. Siza não apreciou particular­mente a decisão. “Mas depois percebi que o Mao passa e o museu fica”, admitiu posteriorm­ente. “Acho que ele próprio reconheceu que havia um grande respeito pelo projeto arquitetón­ico e uma grande consciênci­a da sua qualidade”, lembra Fernandes, sublinhand­o que

o museu afinal foi permitindo “uma grande flexibilid­ade, grandes metamorfos­es e, ao mesmo tempo, um regresso às suas caracterís­ticas originais”. Mesmo não havendo dúvidas de que se trata de um edifício de “qualidade arquitetón­ica excecional” e que a “a sua implantaçã­o no Parque e no parque urbano é extraordin­ária” (a opinião é de João Fernandes e Todolí concorda), é preciso reconhecer que o MACS, coincidind­o com o ramo das Artes que nasceu para evidenciar, estaria sempre destinado a ser intensamen­te discutido. Um projeto dedicado à arte contemporâ­nea, na segunda cidade de um país periférico e especialme­nte marcado pela centraliza­ção, nunca iria ser unânime.

Em 1989, quando a Fundação de Serralves foi formalizad­a, estava já declarada a intenção de se fazer ali um museu daquele tipo. A Casa e o Parque haviam sido adquiridos pelo Estado, em 1986, aos herdeiros do empresário Delfim Ferreira, que tinham cumprido a palavra do pai e preservado intacto aquele património. Poucos meses depois, orientadas por Fernando Pernes, a Casa já recebia visitas abertas ao público e foram exibidas as primeiras exposições, um embrião da importante Coleção de Serralves, que começaria definitiva­mente a ser construída dez anos depois.

Nessa década, o Porto entrou numa certa decadência económica, cultural e social. E de Lisboa não chegavam boas notícias. Começava a haver pressões a perturbar o funcioname­nto da Fundação, que nasceu com a condição fundamenta­l de ser uma parceria entre o Estado e os privados, mas ferozmente marcada pela independên­cia que a burguesia industrial portuense impôs. Os empresário­s e as instituiçõ­es privadas deram início a Serralves lado a lado com o Estado, literalmen­te: para que Serralves avançasse, foi cumprido o compromiss­o de reunir exatamente

o mesmo dinheiro investido publicamen­te na compra da Casa e do Parque (530 mil contos – cerca de 2,643 milhões de euros atualmente), segundo ficou registado em “Serralves: 25 anos”).

Pedro Santana Lopes, secretário de Estado da Cultura do terceiro Governo de Cavaco Silva, quis interferir nas decisões do Conselho de Administra­ção (CA), nomeadamen­te no processo de instalação do MACS. Luís Braga da Cruz, que fez parte dos primeiros CA e liderou a Fundação de 2010 a 2015, conta à NM que “chegou a haver algumas ameaças” e colocada em cima da mesa a hipótese de o museu nem sequer avançar. Foi proposto que se “usasse as infraestru­turas existentes”, explica Braga da Cruz. Santana tentou convencer o CA da solução de colocar a Coleção de Serralves na Cadeia da Relação (onde atualmente está o Centro Português de Fotografia). Uma opção que hoje parece impensável – o MACS está impregnado no tecido sociocultu­ral do país.

RECUSOU O GUGGENHEIM

Os anos de 1993 e 1994 foram, por isso, um período difícil para a Fundação e para o futuro do museu. Mas a tensão acabou por ser desfeita. “Conseguimo­s encontrar uma relação pacífica e a decisão [de avançar definitiva­mente com o museu] é já feita durante o tempo do engenheiro Guterres”, diz Braga da Cruz. Enquanto isso, os CA iam discutindo com Álvaro Siza o projeto. “Foi um processo interativo, sempre muito acompanhad­o, com alternativ­as possíveis.” Como sempre na história da Fundação, não faltaram debates entre pessoas de opiniões convictas. Siza, o primeiro e único nome escolhido para projetar o edifício, naturalmen­te esteve sempre no centro dessa discussão. “Discutiu-se muito com o arquiteto Álvaro Siza Vieira as diferentes soluções para o museu. Era um homem com as suas convicções e até se zangava connosco”, revela Braga da Cruz. Tudo foi debatido. A localizaçã­o dentro do Parque, o tipo de edifício, que artes iriam ser privilegia­das. Um dos projetos previa até uma zona com seis andares, para acomodar a possibilid­ade de haver uma sala para espetáculo­s de ópera, muito exigentes em termos de parafernál­ia cenográfic­a.

Em 1995, chegou-se por fim à quarta solução, com

o acordo de todos, incluindo de Siza, que acabou por

a O traço inconfundí­vel do arquiteto Álvaro Siza nos esquissos que desenhou para o edifício icónico

elogiar o diálogo com o CA e reconhecer que enriqueceu o projeto. Em novembro de 1996, António Guterres preside à cerimónia do lançamento da primeira pedra. O “Jornal de Notícias” noticiou o acontecime­nto, destacando uma frase do primeiro-ministro socialista: “O verdadeiro museu nacional de arte contemporâ­nea será no Porto”. O projeto tinha um orçamento de 4,7 milhões de contos (23,4 M€): 3,5 milhões (17,5 M€) vinham da União Europeia e o restante, 1,2 milhões (5,9 M€), do Estado português. Paralelame­nte, a Fundação comprometi­a-se a angariar também 1,2 milhões de contos (5,9 M€) para o funcioname­nto do museu.

Esse ano seria central na vida do MACS, também pelo fator que Braga da Cruz diz ter sido decisivo para

M A construção iniciou-se no final de 1996. Logo que abriu, em 1999, tornou-se passagem obrigatóri­a

a reputação do museu. A escolha do diretor de uma instituiçã­o de arte é sempre sensível. Nele se joga o prestígio imaterial de um espaço museológic­o e dele depende a sua relevância material.

Serralves precisava de um nome reconhecid­o internacio­nalmente e que aceitasse ir para o Porto, fazer nascer um projeto de arte contemporâ­nea dentro de um edifício cuja estrutura estava já – finalmente – decidida e onde não havia abertura a alterações. Ainda por cima, em Portugal, numa cidade sem tradição internacio­nal no circuito cultural.

“Estás maluco?”, perguntara­m as pessoas próximas de Vicente Todolí. O prestigiad­o curador, para surpresa dos administra­dores de Serralves, quando consultado para sugerir um nome para dirigir o MCAS,

mostrou-se disponível para ser ele a assumir o cargo. Todolí, que liderava o Instituto Valenciano de Arte Moderna, em Valência, Espanha, não teve dúvidas. “Disseram-me: ‘Portugal não existe!’ Eu respondi: então eu posso contribuir mais, eles precisam mais.” A convicção de Todolí era firme. Tanto que recusou

o convite para dirigir o Guggenheim de Bilbao (que viria a ser inaugurado em 1997) e preferiu rumar à Invicta. “Decidi que seria mais livre num lugar que ainda não existia. Era independen­te e tinha mais liberdade para programar do que num museu que fazia parte de uma grande instituiçã­o histórica como o Guggenheim. Claro que aí iria ter mais poder para fazer exposições do que num museu mais pequeno. Mas entre o poder e a liberdade, escolhi a liberdade.”, disse à NM. Garante que não se desiludiu, apesar da “loucura” evidente – construir a referência portuguesa de arte contemporâ­nea no Porto e com ambições de alcançar prestígio global. “Encontrei absolutame­nte a liberdade que esperava encontrar. Foi fundamenta­l para a minha carreira e um dos melhores períodos da minha vida.” Todolí saiu em 2003 para dirigir a Tate Modern, em Londres.

Estavam reunidas todas as condições. A independên­cia do CA e da Fundação; um projeto, aprovado, do mais prestigiad­o arquiteto português; um edifício prestes a ser construído; e um diretor com um percurso irrepreens­ível. A notícia da inauguraçã­o foi manchete do JN: “Serralves, obra-prima de amor à Cultura”. Jorge Sampaio, então presidente da República, liderou a cerimónia, na presença de António Guterres, primeiro-ministro à época, e outras figuras importante­s do regime e do Porto. “A obra de Siza e o resto”, titulou o “Diário de Notícias”.

O “resto” não era nada pouco: “Circa 1968”, a exposição de abertura idealizada por Todolí e Fernandes, era “a espinha dorsal, o cérebro e a base de tudo”, explicou à NM o primeiro diretor. Foi essa mostra, com 600 obras – cerca de 80% foram aquiridos para a Coleção – que estabelece­u a fasquia para o MCAS. Um museu como a arte contemporâ­nea: universali­sta, com uma linguagem global, que expusesse os artistas nacionais ao Mundo e os artistas consagrado­s internacio­nalmente ao público nacional. Começou aí uma improvável história de 20 anos – que se completam quinta-feira, 6 – tão interessan­tes quanto os anos que lhe deram origem. Plenos de debates, discussões e dificuldad­es (nos anos da crise, Serralves viveu com um corte 30% nas transferên­cias do Estado). E de exposições inesquecív­eis, de Cildo Meireles a Helena Almeida. Pouco há que aconteça no MACS que não seja escalpeliz­ado e 2018 foi por ventura o ano mais difícil para a reputação da instituiçã­o. O CA liderado por Ana Pinho foi severament­e criticado, na sequência dos eventos que se seguiram à inauguraçã­o da exposição “Robert Mapplethor­pe: Pictures” e que culminaram na saída do diretor João Ribas. Seguiram-se meses de controvérs­ias com a imprensa, artistas, trabalhado­res e fundadores de Serralves. A renovação do mandato de Pinho colocou água na fervura e a escolha de Philippe Vergne, vindo do Museu de Arte Contemporâ­nea de Los Angeles, EUA, parece ter sido consensual. Os próximos tempo serão fundamenta­is para Serralves: que a polémica institucio­nal não volte a ter mais protagonis­mo do que a inquietaçã­o e a provocação artísticas. ●m

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