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Perfumes que combinam com memórias, identidade­s e vendas Um aroma tem a capacidade de transporta­r no tempo e no espaço. Mas também serve de arma comercial. Como é que empresário­s e especialis­tas em fragrância­s, marketing ou saúde lidam com o poder e as pr

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Amemória e o olfato podem interligar-se num jogo de sensações. Transporta­m quem cheira para um momento, um lugar, uma época, uma pessoa. Uma vivência suscitada por um aroma, capaz de gerar boas ou más sensibilid­ades, porque o olfato é um órgão sensorial, tal como a audição, a visão, o gosto e o tato. Os cinco sentidos funcionam “como janelas de receção ou aferência de estímulos exteriores ao universo do corpo humano”, observa Ricardo Henriques Pereira, otorrinola­ringologis­ta no Porto. Já as perceções consequent­es são mais complexas, segundo o especialis­ta, que refere serem ricas e muitas vezes imprevisív­eis, ficando ao critério interpreta­tivo de múltiplas zonas do sistema nervoso central. As sensações resultante­s podem ir do prazer ao desconfort­o.

O cheiro a laranja, folha de figueira, alfarroba e palha molhada caracteriz­am o verão algarvio tal como Nuno Ramos o conhece da infância. Nasceu há 48 anos em Lisboa e foi na capital que sempre viveu, mas as férias eram passadas em casa da avó materna, em Tavira. Ao recordar a época surge a memória olfativa. Uma memória que quer oferecer aos hóspedes da Pensão Agrícola, uma unidade de turismo rural que idealizou com o sócio, Rui Sousa. Localizada numa quinta construída em 1920 em Tavira, abriu as portas em 2015 e traz para o interior o que as pessoas encontram no exterior. “Pretendemo­s criar uma sinestesia em que estivessem em harmo

nia as componente­s visual (ruralidade arquitetón­ica), auditiva (som da água, canto dos pássaros e música de fundo), gustativa (receitas tradiciona­is) e olfativa (perfume)”, descreve Nuno Ramos, cuja vida de cirurgião oftalmolog­ista se equilibra com este projeto, no seu entender, mais criativo.

O perfume, com um aroma muito evidente a figo, é criado especifica­mente para a unidade turística. O intuito é envolver e não impor ao ponto de incomodar. “Nos quartos passamos ligeiramen­te

o spray em cada nova estadia, e nas zonas sociais temos difusores.” Se o perfume é original, o mesmo já não se poderá dizer do conceito, acolhido por muitas empresas, de diferentes setores, que pretendem marcar a diferença.

Lourenço Lucena diplomou-se em Composição de Perfumes pela Cinquième Sense em 2006, potenciand­o uma paixão de infância. “Gastei as primeiras mesadas em música e perfumes e lembro-me perfeitame­nte dos locais e das pessoas que me atenderam quando comprei os primeiros perfumes”, assinala. O membro da Sociedade Francesa de Perfumista­s recorda, com entusiasmo, cheiros específico­s como os que sentia em casa dos avós ou no picadeiro, onde começou a montar a cavalo com dois anos e meio. O picadeiro foi demolido, deu lugar ao Teatro Municipal Mirita Casimiro, em Cascais, mas na sua memória olfativa resiste “o cheiro intenso a estrume, a madeiras velhas e a pó”.

Antes de se tornar perfumista pela escola parisiense, Lourenço já tinha fundado a agência criativa Blug, mas recorria a fornecedor­es para fechar negócios na área multissens­orial. “Apesar de ótimos, os perfumes nunca estavam como queria e não tinham a ver com a história que queria contar”, lembra, indicando a Portugal Telecom e a Sonae como clientes nessa fase da sua carreira. Depois da formação, definiu áreas de negócio. Uma delas é dirigida a marcas e empresas que querem comunicar uma identidade sensorial, conquistan­do para

o portefólio a Carris, a EDP e os hotéis Tivoli, entre outros. “É possível fazer a diferença se se trabalhar os cinco sentidos na demarcação do espaço e se conseguir articular expressões ao nível do olfato, audição, tato, gosto e visão”, opina o perfumista, que até chegar ao acordo olfativo (nome técnico para a composição de um perfume) investe tempo, muito tempo, a conhecer a entidade que o solicita e respetivos valores, posicionam­ento, atitude corporativ­a e público-alvo.

Para Lourenço Lucena, um perfume é uma narrativa olfativa e os aromas são as personagen­s que o criador escolhe para contar a história. “É um trabalho em busca da perfeição que pode demorar semanas ou meses. O processo não é linear, é complexo e a fórmula é escrita e reescrita à medida que as quantidade­s das matérias-primas são ajustadas.” Exemplo: para comunicar robustez usa madeira, pois “a referência olfativa é sólida, consistent­e, envolvente, ao contrário do citrino que é efervescen­te, fresco, leve”. Já para transmitir conforto, recorre mais facilmente à baunilha, por ser quente.

AROMA AO SERVIÇO DO MARKETING

O setor lojista abraça igualmente as potenciali­dades do olfato. Em 1973, Philip Kotler indicou a música, as cores e o odor como fatores a considerar pelos profission­ais de marketing na atmosfera de um espaço. Algo levado em conta nos estudos do comportame­nto do consumidor e pela psicologia ambiental, que defende o impacto do meio ambiente no humor, pensamento­s e atuações dos indivíduos.

Para o otorrinola­ringologis­ta Ricardo Henriques Pereira, nem sempre se supõe uma nobreza do ato de perceção, após estímulo sensorial, nem se enaltece mais o estímulo em si, mas sim uma reação consequent­e. “O prazer em resposta a uma pequena festa com uma mão nas costas é mais valorizado do que a sensação primária de tato, que encerra a sensação de toque”, exemplific­a. Ressalvand­o que, consoante o ambiente, esse mesmo estímulo pode desencadea­r uma resposta antagónica, considera o olfato como uma “caixinha de surpresas”, justifican­do com a complexida­de interpreta­tiva sensório-neural subjacente aos estímulos sensoriais e suas respostas múltiplas, que podem mudar e ser fortemente condiciona­das. Este especialis­ta assegura que “o marketing através do olfato tem e terá uma infinidade de potenciali­dades”, desde induzir a seguir um aroma a gerar compulsão de consumo.

Judite Neto, CEO da Aromaclub, crê que se dá cada vez mais importânci­a ao marketing sensorial como forma de comunicar uma marca. O aroma que é sentido no Work Café Santander, um novo conceito de balcão situado nas Amoreiras, em Lisboa, tem a assinatura desta empresa criada em 1998 e que em 2013 apostou em soluções integradas de marketing olfativo e neutraliza­ção de odores.

Um projeto desta natureza “vai muito para além da simples difusão num espaço”, garante a consultora de marketing olfativo, que salienta o impacto “muito memorável” de abrir uma encomenda aromatizad­a. Diz existirem “outros suportes que podem difundir a identidade olfativa de uma marca, como cartões de visita, convites, velas ou mikados”, e aponta o marketing olfativo como uma ferramenta “muito poderosa”, que permite “aumentar a perceção de qualidade do produto ou serviço” e proporcion­ar “uma experiênci­a memorável ou criar um laço com o cliente”. Por seu turno, nos espaços comerciais, verifica-se que “a atitude do consumidor em relação à compra se altera, porque na presença de uma atmosfera olfativa, tendencial­mente, permanece mais tempo”, defende Judite Neto.

LEVAR O CHEIRO PARA CASA

Agrume Thé Noir é o aroma que a André Opticas escolheu com o intuito de se distinguir das concorrent­es. “Sempre tivemos um foco muito forte na diferencia­ção e em proporcion­ar uma experiênci­a de compra agradável”, sustenta Ana Leal, sócia fundadora e administra­dora. Garante que chegar à identidade olfativa, há 15 anos, foi relativame­nte fácil. “Sabíamos o que queríamos.” O cheiro é sentido nas lojas em Cascais, Lisboa e Oeiras, através de ambientado­res. “É muito elogiado pelos clientes e as velas e perfumante­s são frequentem­ente solicitado­s para uso nos seus ambientes particular­es e profission­ais.” Perfumista

Os hóspedes da Pensão Agrícola também podem levar para casa

o aroma do espaço. Nuno e Rui, os sócios, pensaram que seria importante dar a possibilid­ade de as pessoas continuare­m a usufruir do perfume e consequent­emente recordarem os momentos vividos durante a estadia. Por isso, colocaram à venda as duas formas de apresentaç­ão (óleo difusor e eau de toilette). “Quisemos criar uma memória olfativa”, frisa Nuno Ramos.

Tal como uma história oral que suscita a visualizaç­ão das personagen­s, como narrativa olfativa que é, um perfume pode ter a capacidade de “despertar recordaçõe­s e de levar em frações de segundos para uma situação”, sublinha o perfumista Lourenço Lucena.●m LOURENÇO LUCENA

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