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“Estava con- vencido que me iam ma- tar. Escrevi no meu bra- ço com tinta permanente o número de telefone do meu ir- mão, para que quem encontrasse
ço direito. O impacto atira-o para o chão. De pistola em riste, o motociclista avança, “muito provavelmente para dar o tiro de morte”. “Consigo agarrar-lhe o braço e atiro a garrafa de refrigerante que lhe bate na cabeça”. O assassino afasta-se. Hiram espreita por baixo do carro. Vê como as “sapatilhas vermelhas” sobem à mota e arrancam.
Num México conturbado, as investigações que Hiram publica há décadas têm potencial letal: corrupção política e sindical, revenda ilegal de combustível e de licenças de táxis. Para o jornalista, “há coincidências” em que não deixa de pensar. “Sofro o atentado no momento em que regressam a Salina Cruz pessoas que eu denunciei há cinco anos. Se as autoridades não avançarem com a investigação, se ninguém for preso, tenho a certeza que me vão tentar matar outra vez.”
NO REINO DA IMPUNIDADE
O apelo desesperado de Hiram Moreno no final da conversa com a NM é um eco sem resposta num México onde “muitas vezes quem comete os crimes contra a imprensa são os mesmos que lhes deveriam brindar proteção”, diz Jan-Albert Hootsen, responsável do Comité de Proteção de Jornalistas (CPJ) no México. Uma referência à chamada “narcopolítica”, fusão do crime organizado com políticos e polícias, sobretudo a nível municipal.
Como se não bastasse, um relatório da organização Artigo 19, publicado no início do ano, avançou que 99,13% dos crimes contra jornalistas que deram entrada na Unidade Especial para o Atendimento de Delitos contra a Liberdade de Expressão (FEADLE, na sigla
em espanhol) continuam impunes.
“Matar um jornalista no México é como receber um cheque em branco”, atira Griselda Triana. Há dois anos, o marido, o icónico jornalista Javier Valdez, foi assassinado em Culiacán, estado de Sinaloa. Como em muitos outros casos, o processo deteve-se quando prenderam os autores materiais. “Falta agora saber quem deu a ordem para disparar”, aponta Griselda.
“A FEADLE é um reflexo de uma crise de justiça tremenda no país sem fim à vista”, considera Balbina Flores, representante de RSF no México. Jorge Sánchez, filho de Moisés Sanchez, jornalista assassinado há quatro anos, concorda, mas vai mais longe: “Deveriam investigar o organismo, para determinar se não funciona por mera negligência ou por cumplicidade”. O português Ricardo Neves, delegado de Direitos Humanos do escritório das Nações Unidas (ONU-DH) no México, entende as críticas, mas aponta: “O orçamento da FEADLE tem vindo a reduzir progressivamente e os valores para 2019 são uma terça parte do que era há cinco anos”. Há dois meses, a RSF e a associação mexicana Proposta Cívica (PC) enviaram ao Tribunal Penal Internacional (TPI) uma comunicação em que defendem que nos últimos 12 anos se cometeram crimes de lesa-humanidade contra os jornalistas mexicanos. O TPI analisa agora o documento. “Temos de deixar de encontrar desculpas e apurar responsabilidades”, comenta Sara Mendiola, diretora de PC. A FEADLE não respondeu ao pedido de entrevista da NM.
REFÚGIO E EXÍLIO
Sem garantias de justiça e de proteção no lugar de origem, a Cidade do México tornou-se refúgio para jornalistas de todo o país. Quando chegou à capital, Jesús Medina estava assustado. Acabava de chegar de Tetela del Volcán, estado de Morelos, onde uma perseguição cinematográfica com um helicóptero à mistura o obrigou a fugir às pressas. “Durante um ano, na Rádio Tlatoa, toquei os interesses das autoridades municipais e estatais, ao denunciar uma negociata que ia tirar à minha vila o acesso a um manancial de água. Estavam agora a cobrar-me o preço. Na mão, trazia uma Bíblia que a minha sogra me tinha dado e onde escrevi os números telefónicos que me podiam ser úteis”, conta à NM. “Estava convencido que me estavam a seguir e que me iam matar. Escrevi no meu braço, com tinta permanente, o número de telefone do meu irmão, para que quem encontrasse o meu corpo soubesse a quem ligar.” Nunca o apanharam. A 2 de outubro, Jesús contou a sua história à revista “Proceso”. Três dias depois, o Mecanismo de Proteção trouxe a mulher e os filhos para junto dele. “Só regressei uma vez a Tetela para trazer o meu cão, o Zombie. Tinha de arriscar. É o melhor cão do mundo”, sorri.
Leonardo Martinez também se refugiou na Cidade do México, mas a família não sabe. “Pensam que vim por trabalho”. Chegou há três meses, quando um cartel de narcotraficantes ameaçou metralhar
o jornal onde trabalhava. “Os cartéis são quem define a linha editorial. Quando há um ato violento relacionado com o narcotráfico, temos que lhes perguntar primeiro se a notícia pode sair”, explica. “Se um diz que sim e o outro diz que não, então é como jogar à roleta russa”, acrescenta Omar Bello, ex-colega de Leonardo no mesmo jornal, e que fugiu em 2017, depois de dois sequestros.
Leonardo não se habitua à Cidade do México, mas regressar a Zihuatanejo não é opção. Para obter o estatuto de vítima, teve de apresentar uma denúncia formal contra os dois cartéis que o ameaçaram. “Se regresso a casa, a investigação ativa-se de imediato e os narcotraficantes vão saber que os denunciei e isso é complicado.” Para Anabel Hernández, o México já não é opção. Em 2017, saiu do país para o exílio num lugar seguro. A conversa é por Skype. Sem números. Nem referência a lugares. Nos últimos 20 anos, Anabel fez uma série de investigações que a transformaram numa das jornalistas mais respeitadas no país. E, literalmente, num alvo a abater. Desde a publicação do polémico livro “Senhores do Narco”, o mundo começou a desabar. Em 2012, uma das fontes “mais sensíveis” de Anabel, o general Mario Arturo Acosta Chaparro, foi assassinado na
Cidade do México. Em 2013, homens armados entraram em casa da jornalista. “Puseram uma pistola na cabeça de uma criança de seis anos para que os pais lhe dissessem onde é que eu estava”, conta. Decide, então, partir para o que chama de “primeiro exílio” em São Francisco, nos Estados Unidos.
No vaivém em que se converteu a sua vida, regressou ao México para terminar um livro sobre a participação do Estado no desaparecimento de 43 estudantes em 2014. A bomba rebentou ainda antes de a obra ser publicada. Em 2016, é evacuada de urgência da apresentação do livro na cidade de Guadalajara. “Identificaram oito pessoas que me estavam a seguir desde que cheguei à cidade e que já tinham cercado o lugar onde eu estava com a audiência para o lançamento.”
A falta de proteção e segurança atirou-a novamente para um autoexílio que dura até hoje. “É uma vergonha para o México que um jornalista tenha que sair para o estrangeiro para poder continuar a investigar livremente o que acontece no seu próprio país”, comenta. Com Patricia Mayorga, Ana Lilia Pérez, Carmen Aristegui e Lydia Cacho, a jornalista Anabel Hérnandez pertence a um grupo de jornalistas mexicanas premiadas internacionalmente por defender com unhas e dentes a liberdade de expressão no país.
MECANISMO DE PROTEÇÃO ALVO DE CRÍTICAS
Uma destas “vergonhas” que Anabel aponta “tem nome e apelido”: Mecanismo de Proteção de Pessoas Defensoras de Direitos Humanos e Jornalistas. A repórter está adscrita desde 2013 a este órgão da Secretaria da Governação e as críticas são contundentes: “Categoricamente, não serve para nada”.
A entidade foi criada em 2012 para tentar dar resposta à crescente violência contra os defensores de direitos humanos e jornalistas. “Apoia-os com medidas de proteção no lugar de residência através de escoltas ou reforço da segurança das casas, por exemplo. Ou se a avaliação de risco determina que o perigo é elevado, apoia os jornalistas a ir para outro ponto do país, normalmente a Cidade do México, onde os ajuda com alimentação e habitação”, descreve o titular do órgão, Aarón Mastache.
À primeira vista, o plano é perfeito, mas são muitas as críticas. Os ho