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DOR CRÓNICA, DOR QUE MÓI

Contínua e persistent­e, interfere com as rotinas, com as tarefas de casa, com o trabalho, com a vida. Estudo revela que há mais de três milhões de portuguese­s com dor crónica nos cuidados de saúde primários.

- BEM-ESTAR los POR Sara Dias Oliveira

Uma crise ciática, uma dor na coluna intensa e forte, o corpo sem capacidade de reação, dois meses sem conseguir trabalhar. Seguiu as indicações do costume: medicação, reabilitaç­ão, exercício físico. Não correu bem. Lesões musculares, mais um período de baixa, e as dores não passavam. Foi há quase uma década e hoje Catarina Marques, com 47 anos, recorda o percurso até chegar a confirmaçã­o de dor crónica que lhe afeta a coluna. Foram quase sete anos até perceber o que tinha.

A mãe convenceu-a a ir ao seu reumatolog­ista, que quis tirar a limpo o que se passava. Não era um quadro normal de uma doença reumática e não foi fácil chegar ao diagnóstic­o.

“Não foi assim tão simples. Nem com radiografi­as, nem com ressonânci­as, nem com análises se sabia que doença era”, conta. As dores persistiam, períodos sem conseguir trabalhar no seu emprego no Ministério da Educação, tarefas difíceis de cumprir. “Passei um período complicado que afetou a minha vida. Deixei de fazer uma série de coisas, foi um esforço brutal”, recorda. “Aprendi a lidar com a doença, houve muita coisa que tive de fazer de maneira diferente.” Assumiu o problema na sua cabeça e no emprego sempre com o incondicio­nal apoio da família. E tudo isso foi fundamenta­l. “No fundo, aprendi a gerir a doença.” Bateu à porta da Liga Portuguesa Con

tra as Doenças Reumáticas, criou um núcleo de apoio a doentes com dor crónica, contactou com outras pessoas, começou a participar em atividades, tal como congressos, dentro e fora do país. “Apesar da dor crónica ser muito prevalente, não só em Portugal como na Europa e no Mundo, e o impacto social da dor ser à escala global, cada doente sente e sofre esse impacto todos os dias na sua vida, o que obriga à reinvenção do eu, interfere com a representa­ção identitári­a”, comenta. “É uma doença invisível e solitária, mas ninguém está sozinho nessa questão, e é preciso falar do assunto.”

Maria Lurdes Leitão demorou mais de 40 anos a perceber que dor era aquela, com muita ansiedade, desespero e uma ligeira depressão pelo meio. Tinha dificuldad­es em colocar em palavras a dormência, o formigueir­o, as picadas, aquele latejar nas pernas, nos pés, nos braços, nos cotovelos, nas costas. Tudo vinha de vários lados. “A dor não era localizada, não sabia explicá-la. Era uma dor interna que não sabia onde estava”, recorda.

Há mais de 30 anos, diagnostic­aram-lhe uma hérnia discal, foi operada, ficou melhor da perna, passados uns anos voltou a piorar, com mais dores. Inflamatór­ios, analgésico­s, muita fisioterap­ia. “Passei por vários médicos, mas com pouco êxito porque a dor continuava.” Maria Lurdes Leitão, hoje com 69 anos, reformada, não deixou de trabalhar no atendiment­o de um centro de saúde, apesar de dias e dias de sacrifício. “Acordava com uma dor aqui, outra dor ali.” Há um ano e meio, percebeu o que realmente tinha numa consulta médica: dor neuropátic­a associada ao sistema nervoso, uma dor crónica. Passou a controlar a dor com medicação diária. “Sinto-me muito melhor”, garante.

Uma doença, não um sintoma

A dor é considerad­a crónica quando, de forma contínua ou recorrente, existe há pelo menos três meses, ou quando persiste para além do curso normal de uma doença aguda ou da cura da lesão que lhe deu origem. A patologia mais frequente é a lombalgia, seguindo-se dor nos membros inferiores e superiores, ombros e região cervical. É transversa­l a quase todas as doenças, pode vir de qualquer lado.

A dor é, em si, uma doença e não um sintoma, e interfere com as rotinas do dia-a-dia, responsabi­lidades familiares e domésticas, trabalho, lazer, descanso, sono. “A dor crónica, e consequent­e incapacida­de, diminui substancia­lmente o estado de saúde do indivíduo e a sua qualidade de vida, com impacto negativo na vida dos familiares, cujo grau é frequentem­ente subestimad­o”, sublinha Raul Marques Pereira, médico de Medicina Geral e Familiar que criou a primeira consulta de Dor numa unidade de saúde familiar em Portugal, em Lethes, Ponte de Lima. “A dor é um processo complexo que compreende interações entre as vias do sistema nervoso central

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RUI MANUEL FONSECA/GLOBAL IMAGENS Maria Lurdes Leitão passou por vários médicos até chegar ao diagnóstic­o: dor neuropátic­a associada ao sistema nervoso
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O estudo “Chronic Pain Care: Prevalênci­a e Caracteriz­ação da Dor Crónica nos Cuidados de Saúde Primários”,

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