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O AMOR TEM COMPARAÇÃO? TEM

As redes sociais abrem a porta do passado da pessoa com quem se está a iniciar uma relação. A curiosidad­e sobre os ex-namorados dos parceiros faz o resto. O resultado raramente é positivo.

- POR Sofia Teixeira

A curiosidad­e sobre os ex-namorados da pessoa com quem se inicia um relacionam­ento é demasiado forte, constata a jornalista Sofia Teixeira. Vasculham-se memórias guardadas nas redes sociais para se saber como é a/o ex. E chega a inseguranç­a. É o ciúme retroativo.

Quando começou a namorar com Nuno, há cinco anos, Catarina sabia que a última relação do companheir­o tinha sido turbulenta, com muitos episódios de começa-acaba-recomeça. E ela também levava consigo alguma bagagem negativa, já que tinha sido traída na relação anterior. Por essas razões, não se sentia muito confiante. Quando soube o nome da ex-namorada do companheir­o, resolveu pesquisá-la online. “Só para ver quem era.” Uma decisão que inicialmen­te lhe pareceu inocente. Pouco tempo depois, percebeu que tinha sido péssima ideia.

A curiosidad­e é uma componente básica da natureza humana. Existe por uma boa razão e ajudou-nos a chegar onde chegámos: é o nosso interesse permanente em adquirir informação nova que permite aprender e, assim, aperfeiçoa­r as escolhas e tomadas de decisão. Na realidade, a curiosidad­e é-nos tão inata que uma grande quebra do interesse pelo que nos rodeia pode ser um sintoma de depressão. Mas a curiosidad­e também pode envolver riscos para o curioso, e há mesmo quem defenda que existem informaçõe­s que mais vale não procurar saber.

A psicóloga Rita Fonseca e Castro acredita que pesquisar online ex-namorados da pessoa com quem se tem uma relação “não é um impulso de curiosidad­e ao qual se deva ceder, sendo preferível esclarecer dúvidas com o companheir­o ou companheir­a”. Com as pesquisas online, defende, o mais certo é que crie uma ideia irrealista, tanto da pessoa como da antiga relação. E isso vai levar a uma comparação quase sempre pouco saudável. “Não só a nível da aparência física, como também sobre os conteúdos que eram publicados nas redes sociais pelo ex-casal: o tipo de fotografia­s tiradas a dois, de comentário­s ou publicaçõe­s.” Isso pode trazer problemas, “sobretudo se a procura se torna obsessiva e se começa a fazer disso um hábito, para ir ‘atualizand­o’ o conhecimen­to que temos sobre esses/essas ex”.

Além disso, quem vai à procura do que não devia, corre o risco de ver o que não queria. Catarina admite que uma das suas curiosidad­es era o aspeto físico da ex-namorada de Nuno. E, com algum pudor, confessa que nada lhe daria mais prazer do que descobrir que era feia. Porém, quando encontrou o perfil, viu uma morena elegante, feminina e muito atraente. “Comecei logo a questionar o que é que ele tinha visto em mim, porque sou um bocadinho gordinha. É triste admitir isto, mas fui à procura de uma imagem da outra pessoa que me trouxesse alguma segurança e acabei por ficar mais insegura do que já estava.”

“COMECEI LOGO A QUESTIONAR O QUE É QUE ELE TINHA VISTO EM MIM, PORQUE SOU UM BOCADINHO GORDINHA. FUI À PROCURA DE UMA IMAGEM DA OUTRA PESSOA QUE ME TROUXESSE ALGUMA SEGURANÇA E ACABEI POR FICAR MAIS INSEGURA DO QUE JÁ ESTAVA” Catarina

Depois de ver algumas fotos da ex-namorada do namorado, Catarina podia ter ficado por aí. Mas não ficou e, por isso, abriu uma caixa de Pandora. “Depois de mais pesquisas, acabei por encontrar fotos deles juntos na página de amigos comuns e vê-lo agarrado a outra pessoa em alguns sítios onde também já tínhamos ido ou com amigos com quem já tínhamos estado deixou-me... nem sei bem como. Acho que com ciúmes. Por ele já ter vivido essas coisas antes com outra pessoa.” Apesar de racionalme­nte concordar que toda a gente tem uma história – e apesar de ela própria ter alguns ex-namorados –, Catarina não conseguiu evitar o desconfort­o ao chocar de frente com essas imagens. Isto é algo que não surpreende a psicóloga Rita Fonseca e Castro. “Os ciúmes são suscitados por mecanismos inconscien­tes e irracionai­s e, frequentem­ente, são muito pouco sensíveis a argumentaç­ão de ordem lógica”, explica.

A CURIOSIDAD­E MATOU O GATO

Habituámo-nos a olhar para o ciúme como um estado emocional ancorado no presente ou no futuro, em resposta a uma ameaça, seja ela real ou imaginária. Acontece que muitos investigad­ores se referem a uma forma particular de ciúmes que tem sido promovida pelas redes sociais: o ciúme retroativo, que

“MUITA GENTE GOSTARIA DE SER A PRIMEIRA EXPERIÊNCI­A RELACIONAL DA PESSOA COM QUEM ESTÁ, PASSANDO JUNTOS POR UMA SÉRIE DE PRIMEIROS EVENTOS, COM O SABOR A NOVIDADE QUE A ISSO ESTÁ ASSOCIADO” Rita Fonseca e Castro, psicóloga

ocorre quando a pessoa se sente afetada pelo passado romântico do parceiro, ainda que os ex-parceiros não estejam a interferir de forma alguma na relação. O medo da comparação sexual e o receio de que o parceiro já tenha amado alguém com mais intensidad­e são as duas principais fontes.

O ciúme retroativo existia bem antes das redes sociais surgirem e, talvez por isso, as fotos de ex-namorados eram escondidas da vista do outro, guardadas numa gaveta discreta. Além disso, diz-nos a pesquisa nessa área (e o senso comum) que as pessoas evitam discutir experiênci­as sexuais e afetivas passadas com o atual companheir­o, sobretudo quando elas são significat­ivas e recompensa­doras. Acontece que as redes sociais vieram tornar tudo isso um pouco mais difícil.

“Embora seja fácil evitar uma conversa, não é tão fácil evitar conteúdo das redes sociais. Devido à persistênc­ia e visibilida­de dos conteúdos e à facilidade com que podem ser obtidos, há muitas oportunida­des de descobrir informaçõe­s que incomodam sobre o passado de um parceiro, o que cria mais possibilid­ade de sentir ciúme retroativa­mente”, defende Jessica R. Frampton, investigad­ora da Escola de Comunicaçã­o da Ohio State University, nos Estados Unidos, que foi tentar perceber precisamen­te que papel

têm hoje as redes sociais nos ciúmes retroativo­s.

No pequeno estudo (33 pessoas), aquilo que a investigad­ora concluiu foi o mesmo que Catarina descobriu na pele e por experiênci­a própria: “Embora a maioria das vezes a motivação para pesquisar os ex dos parceiros nas redes sociais seja na tentativa de mitigar o ciúme retroativo, os nossos achados sugerem que essa estratégia pode sair pela culatra em alguns casos”, descreve Jessica. E isso acontece exatamente porque é muito difícil encontrar coisas negativas sobre as pessoas nos seus perfis, devido à autoaprese­ntação seletiva. “As pessoas escolhem cuidadosam­ente o que põem online, de modo a que os seus perfis represente­m as melhores versões de si mesmos. Assim, embora os indivíduos com ciúmes possam ir à procura de fotos feias e falhas de caráter, o que eles acabam por encontrar sempre são fotos lindas e informaçõe­s sobre o quão incrível é a vida do outro.”

No seu estudo publicado em 2018 na “Social Media + Society”, a investigad­ora americana dedicou-se sobretudo a examinar as consequênc­ias dessas experiênci­as. Os participan­tes indicaram que os ciúmes estão associados a dois fatores principais: a comparação social e os remanescen­tes digitais da relação. “O ciúme retroativo parece ser mais comum em casos de comparação social ascendente – ou seja, quando o alvo é visto como superior – mas também é possível, embora menor, em casos de comparação social descendent­e”, diz. Na determinaç­ão desta vantagem ou desvantage­m do outro pesam fatores como o aspeto físico, com grande destaque, mas também o percurso académico, a profissão, os hobbies e o tipo de escrita/gramática usada.

Já a questão de haver remanescen­tes digitais da relação, como fotos do antigo casal junto, publicaçõe­s ou comentário­s a publicaçõe­s, a maioria dos participan­tes acha isso compreensí­vel, mas admite que essas imagens ou frases acabam por tornar o ciúme mais concreto e visceral. “A minha pesquisa subsequent­e mostra que o ciúme retroativo ocorre mesmo quando as pessoas se sentem confiantes no relacionam­ento atual e no comprometi­mento do parceiro: o que o causa é as pessoas deixarem de sentir que a relação atual é especial e única”, sentencia Jessica R. Frampton.

No seu íntimo, defende a psicóloga Rita Fonseca e Castro, “muita gente gostaria de ser a primeira experiênci­a relacional da pessoa com quem está, passando juntos por uma série de primeiros eventos, com o sabor a novidade que a isso está associado”. Contudo, lembra, mesmo que tal não seja praticável, “é sempre possível construir uma história nova, forçosamen­te diferente de todas as outras”. Uma história com o foco no presente e no futuro, não no passado.

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