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À DESCOBERTA DAS ORIGENS

- POR Joana Almeida Silva

Nos genes portuguese­s residem marcas deixadas por milénios de evolução. Provas que não estão escritas e que são investigad­as pela genética para mostrar de onde viemos. Na busca pelo eu, há um outro braço armado que mergulha nas origens — empresas de genealogia que vasculham arquivos de igrejas e registos para dar nomes, e vida, aos ancestrais.

Mais de três mil milhões de unidades estão na base de quem nós somos. O nosso ADN é mais do que um tesouro científico, é um espelho que mostra a evolução da espécie nas diferentes partes do planeta. Uma espécie que nasceu em África e que chegou há apenas 45 mil anos à Europa. Ao reconstrui­r o mapa genético de diferentes homo sapiens sapiens percebemos do que somos feitos.

Há mais de uma década, Luísa Pereira integrou um grupo de cientistas que se dedica ao desafio da evolução das populações humanas. A equipa, que começou no Ipatimup e que agora integra o Instituto de Investigaç­ão e Inovação em Saúde (i3S), organizou recentemen­te um curso no Porto e em Lisboa cujo objetivo foi traçar o perfil biológico de 50 pessoas, ávidas por descobrir mais sobre si mesmas. Recolhida uma pequena amostra de saliva, inferiu-se as origens dos ancestrais dos participan­tes. “Em Portugal, todos nós vamos ter uma componente típica do sul da Europa, 40 a 50%, um bocadinho do norte da Europa, 10 a 20%, e não é incomum encontrar num português 3% do continente africano e até 3% do componente asiático”, explica a investigad­ora.

Uma estatístic­a diferente aparece em povos como os finlandese­s, “altamente homogéneos”, onde não chegaram migrações, como aconteceu na Ibéria.

Sangue russo e neandertal

Ajudada pela tecnologia, a genética continua a desbravar o passado gravado em cada corpo. Este ano, descobriu-se que os portuguese­s têm genes das estepes russas. A revelação foi feita numa investigaç­ão liderada pelo geneticist­a David Reich, da Universida­de de Harvard, que estuda vestígios encontrado­s em ossadas. Concluiu que, há mais de quatro mil anos, um grupo de migrantes asiáticos conseguiu substituir quase todos os homens que existiam na Europa e na Península Ibérica. Uma herança que subsiste no nosso genoma: “200 mil anos de evolução da nossa espécie deram origem a imensas destas posições variáveis. Por exemplo, entre dois africanos há mais posições variáveis do que existem entre um europeu e um asiático, porque passámos mais tempo da nossa pré-história em África do que no resto do mundo”, diz Luísa Pereira. “Quando o homem moderno chegou à Europa, esta era habitada por neandertai­s. Cerca de 3% do genoma dos europeus atuais é de origem neandertal. Houve algum cruzamento; limitado, mas houve”, acrescenta.

Quando se pensa na escala da espécie humana, fala-se em milénios, não em anos ou décadas. E, apesar de hoje estarmos mais perto de qualquer ponto do globo, a genética não muda assim, de um dia para o outro. “Apesar da globalizaç­ão ter facilitado imenso o contacto com todos os lugares do mundo, os cruzamento­s continuam a ser mais entre pessoas que nasceram próximas. Apesar de já termos casais mistos, não deixa de ser numa proporção inferior. A genética das populações não se vai alterar assim drasticame­nte.”

Da análise que se tem feito, do presente para o passado, podem-se apontar pistas sobre o que ainda pode mudar no ADN português. “Diria que, como estamos a receber imensas pessoas do Brasil, uma população que teve uma origem muito diversa – os colonos europeus, pessoas escravizad­as de África e populações ameríndias –, isso vai trazer para Portugal essas componente­s que nós não temos aqui tão enriquecid­as”, constata a também co-autora do livro “Património Genético Português”.

Da genética à genealogia

Há cada vez mais pessoas à descoberta dos seus antepassad­os, não tão longínquos como os neandertai­s, através de empresas que fornecem serviços de investigaç­ão.

Pela Torre do Tombo, arquivos distritais, registos das igrejas e arquivos da Universida­de de Coimbra – só para citar algumas das fontes mais ricas –, um grupo de apaixonado­s pela genealogia mergulha em apelidos e notícias à procura de construir uma árvore que dê como fruto mais do que um nome. “Hoje em dia, alguns clientes querem histórias de vida interessan­tes, não necessaria­mente origens ilustres ou antepassad­os com elevado estatuto social”, afiança Maria Fonseca, uma das fundadoras do projeto Linhagens. Os que a procuram “ficam muito mais contentes com antepassad­os que foram presos pela Inquisição ou que pertenciam a grupos marginais do que ‘entroncame­ntos’ em famílias ilustres. Alguns ficam até desiludido­s com a falta de escândalos ou episódios reais, mas a verdade é que os clientes preferem mil vezes a verdade sobre pessoas reais”.

A Linhagens oferece diferentes serviços, como a investigaç­ão de antepassad­os até cinco gerações, por cerca de 600 euros. É do estrangeir­o que tem vindo a maior procura, com processos que visam dados que suportem a obtenção da naturalida­de portuguesa, “quem necessita por motivos legais de provas genealógic­as ou casos relacionad­os com propriedad­es ou heranças”. Há casos que obrigam ao máximo sigilo, como o de “órfãos, enjeitados e ilegitimid­ades”, e outros em que se descobre sangue real. Sem nomes, Maria

“EM PORTUGAL, TODOS NÓS VAMOS TER UMA COMPONENTE TÍPICA DO SUL DA EUROPA, 40 A 50%, UM BOCADINHO DO NORTE DA EUROPA, 10 A 20%, E NÃO É INCOMUM ENCONTRAR NUM PORTUGUÊS 3% DO CONTINENTE AFRICANO E ATÉ 3% DO COMPONENTE ASIÁTICO” Luísa Pereira Investigad­ora

Fonseca relata um exemplo: “A investigaç­ão revelou-se surpreende­nte e a nossa cliente, que pouco ou nada sabia, acabou por conhecer diversas casas da família, que ainda hoje existem, nisto descobrind­o que descendia, por linha varonil, sempre por pai, do rei D. Afonso III de Portugal”.

E se a genética permite uma análise científica biológica, a genealogia explora terrenos mais sociais. “Conhecer

o mapa do ADN estimula o interesse pelas origens. No entanto, fornece uma imagem insuficien­te que só a genealogia pode completar”, defende a especialis­ta. “O nosso mapa genético não tem um sentido social reconhecív­el. Já apelidos, nomes próprios, identidade­s nacionais e regionais e distinções sociais têm um sentido concreto, prático que nos situa.”

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